Sua Excelência
O Presidente da Assembleia da República
Palácio de S. Bento
1249-068 Lisboa
– por protocolo –
Lisboa, 2 de agosto de 2018
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Q/5140/2015 Q/5777/2017 |
RECOMENDAÇÃO N.º 3/B/2018
(alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
Assunto: Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto. Sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor
Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, recomendo à Assembleia da República, na pessoa de Vossa Excelência, que:
Em observância do princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), sejam adotados os procedimentos necessários à alteração do artigo 11.º do sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor, criado pelo artigo 4.º da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, que consta do anexo a essa lei, da qual faz parte integrante.
1. A Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, criou o sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor (cfr. artigo 4.º e respetivo anexo).
2. Os debates parlamentares testemunham a controvérsia que, quer no plano da política-criminal quer no plano jurídico-constitucional, a criação do registo gerou (cfr., entre outras, Declaração de voto do Deputado do PSD, Paulo Mota Pinto, por ocasião da votação e aprovação, na generalidade, da Proposta de Lei n.º 305/XII/4.ª [DAR I Série N.º 81/XII/4 2015.05.02 (págs. 54 e 62-63)]).
3. Também na comunidade jurídica encontramos reflexões que manifestam reservas relativamente à bondade da solução legislativa (cfr. Maria João de Carvalho Vaz, “O registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores: um mal desnecessário”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. 57, n.º 1 (2016), pp. 145-167).
4. Não obstante, com a presente recomendação não pretendo questionar a solução legislativa consistente na criação de um sistema de registo de identificação criminal autónomo e específico, uma vez que considero que com tal solução está o legislador a assegurar o cumprimento de deveres estaduais de proteção de direitos fundamentais dos menores.
5. Com efeito, apesar de todas as reservas manifestadas sobre a eficácia de um sistema de registo para efeitos de prossecução da política criminal neste domínio, entendo, justamente em virtude da natureza controvertida da matéria bem como da existência de estudos científicos com conclusões opostas, que cabe ainda na margem de apreciação do legislador o juízo sobre a sua adequação e necessidade.
6. No entanto, e embora seja esse o meu entendimento, não deixo de reconhecer que a conformidade constitucional de um sistema de registo com as características daquele criado pelo artigo 4.º da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, na medida em que consubstancia uma restrição de direitos e liberdades individuais, depende de as soluções encontradas pelo legislador na conformação do regime legal observarem o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2).
7. Ora, ao não contemplar a possibilidade de, após um determinado período de tempo, que cabe ao legislador fixar, a requerimento do interessado, ser iniciado um procedimento de reavaliação individual da sua situação – nessa avaliação ponderando-se fatores tais como o decurso do tempo sem a ocorrência de factos que sugiram perigosidade para a sociedade em termos de ainda se justificar as restrições às liberdades inerentes à sua inscrição no registo – com vista ao cancelamento da sua inscrição no registo, o regime legal estabelecido no artigo 11.º, do anexo, constitui uma ingerência desproporcionada no direito ao bom nome e reputação e no direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, ambos consagrados no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
8. Com efeito, de acordo com a atual redação do artigo 11.º do sistema de registo de identificação criminal [de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores], deverá entender-se que os prazos aí fixados para o cancelamento da inscrição no registo são limites máximos, que não podem, em caso algum, ser ultrapassados.
Tal não significa, no entanto, que esses prazos devam também ser limites mínimos.
Dito de outro modo, mesmo dentro dos prazos legalmente fixados, a manutenção da inscrição no registo tem que ser justificada, sob pena de ser ilegítima.
9. Note-se que, nos casos de maior gravidade, a inscrição no registo mantém-se impreterivelmente por 20 anos após o cumprimento de pena ou medida de segurança, ou a colocação em liberdade condicional (artigo 13.º, n.º 3, alínea d), ex vi artigo 11.º, do anexo).
10. Ora, a única forma de tornar operante a justificação da manutenção da inscrição no registo é estabelecer um regime de reavaliação individual periódica, a requerimento do interessado, para determinar o nível atual de risco para a sociedade ou o seu grau de perigosidade[1].
11. Ao não contemplar tal possibilidade e ser indiferente à própria evolução comportamental do agente, o regime legal, além de não criar adequadamente incentivos de ressocialização, viola o princípio da proporcionalidade, pois o objetivo da lei de, através de uma identificação de quem esteja inscrito no registo, prevenir o risco de ocorrência de futuras agressões, protegendo outros menores de se tornarem potenciais vítimas, sendo em si mesmo legítimo, pressupõe que quem esteja inscrito no registo continue a ser, face a uma avaliação objetiva do seu estado que deve ser feita periodicamente, um potencial agressor.
12. Dito de outro modo, se, em geral, o sistema de registo é justificado por razões de prevenção especial, quer no sentido de evitar a reincidência quer na socialização do agente, tal justificação esgota-se na verificação de uma situação de efetiva perigosidade do agente, desaparecendo a partir do momento em que o risco de reincidência é infirmado pela sua não ocorrência ao longo de um determinado período de tempo ou numa situação em que comprovadamente a ressocialização do agente se tenha logrado, em termos de o mesmo não representar mais um risco para a sociedade.
13. Em sentido semelhante, no Reino Unido, face a um regime legal que previa que a inscrição no registo e inerentes deveres de notificação se mantinham ao longo de toda vida (Secção 82 do Sexual Offences Act 2003), o United Kingdom Supreme Court declarou tal regime incompatível com o artigo 8.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [CEDH], por constituir uma ingerência desproporcionada no direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar aí consagrado[2].
14. Essa decisão analisa a pertinente jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [TEDH] (cfr. parágrafo 24-34), com particular destaque para o acórdão B.B. c. França, n.º 5335/06, de 17 de Dezembro de 2009, em que o TEDH considerou que o regime francês não violava o artigo 8.º da CEDH justamente porque nele, ao estabelecer-se a possibilidade de cancelamento da inscrição no registo a requerimento do interessado, a ingerência no direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar aí consagrado não era desproporcionada à finalidade de política criminal prosseguida através da inscrição no registo (no mesmo sentido, acórdão M.B. c. França, n.º 22115/06, de 17 de Dezembro de 2009).
15. À luz da fundamentação da jurisprudência do TEDH, é legítima a interpretação segundo a qual um regime jurídico de um Estado que não preveja expressamente a possibilidade de, a requerimento do interessado, ser cancelada a sua inscrição no registo, consubstancia uma ingerência desproporcionada no direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, em violação do artigo 8.º da CEDH.
16. A alteração, quanto a este aspeto, do regime constante da Lei n.º 103/2015, de 4 de agosto, não apenas tornará tal regime conforme com as exigências da CEDH, de acordo com a jurisprudência atrás referida, mas também conforme com a Constituição da República, que axiologicamente converge – no que à tutela das liberdades individuais diz respeito – com a Convenção Europeia.
17. Dando esse ponto por assente e avançando na análise daquele que deve ser o sentido da alteração a efetuar pelo legislador, é importante que fique claro que não quero, de modo algum, sugerir que a solução passaria por prever a possibilidade de o interessado provar que não constitui já um risco para a sociedade.
18. Tal seria um regime legal ainda insatisfatório, porque violador do princípio da proporcionalidade, na medida em que faria recair sobre o interessado o ónus da demonstração da sua não perigosidade.
19. O ponto de partida deve ser justamente o inverso. A legitimidade da manutenção da inscrição no registo depende da demonstração positiva de que tal é necessário, o que, pressupõe, naturalmente, a previsão de um regime de reavaliação periódica, devendo ser facultada ao interessado a possibilidade de requerê-la após um determinado período de tempo a fixar pelo legislador.
20. A eventual dificuldade de prova, por parte do interessado, de que já não representa um risco para a sociedade não parece ser argumento bastante para que se exclua in limine a possibilidade de cancelamento da inscrição no registo antes de decorrido o prazo máximo legalmente estabelecido.
21. Por outro lado, também não é convincente o argumento baseado na maior propensão para a reincidência neste tipo de crimes. Além de tal ideia ser especulativa e contestada (cfr. J.J. Prescott & Jonah E. Rockoff, Do Sex Offender Registration and Notification Laws Affect Criminal Behavior?, 54 J.L. & Econ. 161 (2011)), essa circunstância poderá servir, quando muito, para justificar a existência de um sistema de registo autónomo e específico, mas não para a exclusão da possibilidade de cancelamento da inscrição no registo antes de decorrido o prazo legal.
Note-se que a própria previsão legislativa de um prazo máximo – e, portanto, a não-opção por um regime de inscrição no registo a título vitalício – sugere que a própria lei parte do pressuposto de que o risco de reincidência se não mantém indefinidamente.
22. Se a não previsão de um procedimento de reavaliação com vista ao cancelamento da inscrição no registo é, em geral, injustificada, ela é particularmente agressiva naquelas situações em que a inscrição no registo se aplica a quem, no momento da entrada em vigor da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, já havia sido condenado e inclusivamente já tinha cumprido integralmente a pena ou medida de segurança que lhe foi aplicada.
23. Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, do sistema de registo, anexo à Lei 103/2015, aplica-se a cidadãos nacionais e não nacionais residentes em Portugal condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor, mesmo naquelas situações em que os factos punidos tenham ocorrido antes da entrada em vigor da referida lei.