Sua Excelência
O Presidente da Assembleia da República
Palácio de S. Bento
1249-068 Lisboa
– por protocolo –
Lisboa, 3 de maio de 2018
Sua referência Sua comunicação Nossa referência
S-PdJ/2018/3645
Q/5982/2017
Assunto: Leis eleitorais
RECOMENDAÇÃO N.º 2/B/2018
(alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
As questões de direito eleitoral têm ocupado ao longo do tempo este órgão do Estado, seja por iniciativa própria, seja por impulso dos cidadãos. Por esse modo, em dis-tintos momentos foi o Parlamento destinatário de recomendações do Provedor de Justiça, parte das quais mereceu subsequente acolhimento favorável na legislação eleitoral. Outras, porém – e sem prejuízo de iniciativas legislativas a seu tempo encetadas, relevando da te-mática exposta –, não lograram prosseguimento imediato. Acresce que o devir dos tempos permite desvelar novos reptos.
Neste exato circunstancialismo não se desconhece, por outro lado, o conjunto de recentes iniciativas, dirigidas, nomeadamente, à alteração das leis eleitorais e do regime jurídico do recenseamento eleitoral.
Deixando intocado aquele que é o espaço próprio da ação política dos órgãos de soberania, dirijo-me à Assembleia da República, na pessoa de Vossa Excelência, com o propósito de reavivar e reiterar anteriores recomendações do Provedor de Justiça em ma-téria eleitoral e, neste ensejo, assinalar as preocupações que nesta matéria têm sido ulti-mamente suscitadas junto deste órgão do Estado.
I. Candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos eleitores
A este respeito e a título preliminar, regista-se favoravelmente a superação da dis-paridade de tratamento conferido às candidaturas apresentadas ao mesmo ato eleitoral (concretamente, às eleições dos órgãos das autarquias locais) por grupos de cidadãos elei-tores face às candidaturas apresentadas por partidos políticos e coligações partidárias, em relação à utilização de símbolo próprio nas campanhas eleitorais e nos boletins de voto.
Tratava-se de diferenciação há muito feita notar – veja-se a Recomendação n.º 4/B/2010 , reiterada em 2011 e 2013 . As alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 1/2017, de 2 de maio, à Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais vieram dar final-mente acolhimento positivo a tal exortação, franqueando a representação simbólica própria e distintiva das candidaturas de grupos de cidadãos.
Não obstante, subiste ainda neste domínio outra disparidade, igualmente anteci-pada na referida Recomendação n.º 4/B/2010 e subsequentes reiterações, no que especifi-camente concerne à sujeição a imposto sobre o valor acrescentado (IVA).
Nesta matéria específica e conforme realçado, por último, em Relatório anual de atividades apresentado a esse órgão de soberania, «a desigualdade económica resultante da isenção do pagamento do IVA apenas no primeiro caso [candidaturas autárquicas partidá-rias] configura situação lesiva da igualdade de oportunidades para candidaturas admitidas pelo texto constitucional em paridade.»
Neste enquadramento, recordo que, em matéria de IVA, o Provedor de Justiça formulou já recomendação no sentido da concessão, às candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos, de idêntica isenção, de que beneficiam as candidaturas apresentadas por partidos políticos ao abrigo do disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais) , ou, em alternativa, da eliminação desta isenção para os partidos políticos.
É neste exato e estrito quadro – i.e. da ponderação das soluções de jure condito no momento em que me dirijo a Vossa Excelência – que me posiciono, para uma vez mais fazer notar ao Parlamento que, por força dos citados segmentos normativos, apenas os partidos políticos – e já não as candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos eleitores – estão isentos do IVA na aquisição e transmissão de bens e serviços que visem difundir a respetiva mensagem política ou identidade própria, e nas transações de bens e serviços em iniciativas para angariação de fundos.
Este estado de coisas representa para as candidaturas de grupos de cidadãos um significativo agravamento com os bens e serviços utilizados na realização da campanha eleitoral. Conforme ficou evidenciado na pretérita Recomendação n.º 4/B/2010:
«Será lícito (…) afirmar que o esforço financeiro pedido para a mesma actividade de divulgação e persuasão do eleitorado é onerado em mais de um quinto suple-mentar para os grupos de cidadãos eleitores, aliás em regra mais carecidos de di-vulgação, dada a precariedade da sua existência, por contraste com os partidos po-líticos.
Em segundo lugar, a venda de bens a terceiros, designadamente do denominado material de propaganda, ficará também dificultada (ou, pelo menos, onerada) com a necessidade de cobrança a esses terceiros do IVA aplicável. Quanto a este aspec-to, poder-se-á afirmar que o Estado incentiva o apoio a candidatos apresentados por partidos, ao abdicar do IVA que seria normalmente cobrado e a tornar inte-gralmente destinado aos cofres da candidatura o valor com que o cidadão apoiante entende poder ou dever contribuir.
A mesma entrega monetária, feita hipoteticamente pelo mesmo cidadão, beneficia em 100% a candidatura do partido A e em apenas cerca de 80% a candidatura apresentada pelo grupo de eleitores B.»
Deste modo, o excesso no regime fiscal aplicável às candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos eleitores, que tem como contraface o benefício fiscal concedido às candidaturas dos partidos políticos, não acomoda, antes fere, o princípio ancorado na alí-nea b) do n.º 3 do artigo 113.º da Constituição, que determina a igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas nas campanhas eleitorais.
Deste modo, reitero a recomendação já anteriormente dirigida, por mais de uma vez, à Assembleia da República, no sentido de que:
«seja concedida às candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos eleitores a isenção do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) de que beneficiam, nos termos das alíneas g) e h) do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, as candidaturas apresentadas por partidos po-líticos (e coligações partidárias) ou, em alternativa, a eliminação desta isenção para os partidos políticos».
II. Regime do exercício do voto antecipado: a situação específica dos funcionários diplomáticos colocados no estrangeiro e dos familiares que com eles residam
A questão do alargamento da possibilidade do voto antecipado mereceu anteri-ormente a atenção do Provedor de Justiça, tal como manifestada nas Recomendações n.os 9/B/99 , 3/B/2003 , 9/B/2005 e 4/B/2010.
Pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, o legislador procedeu à altera-ção do regime jurídico das eleições do Presidente da República, da Assembleia da Repúbli-ca, dos órgãos das autarquias locais, do Parlamento Europeu e dos referendos nacional e local, estendendo, de modo significativo, o universo de cidadãos eleitores potencialmente abrangido pelo regime do exercício do voto antecipado.
Sem embargo, à luz do direito vigente, merece ainda ponderação a situação espe-cífica dos funcionários diplomáticos colocados no estrangeiro e dos familiares que com eles residam. Trata-se de matéria que foi já objeto de deliberação da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e que mais recentemente ocupou, em sede parlamentar, os trabalhos da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias .
Ora, no horizonte normativo que enquadra o estabelecimento de relações diplo-máticas entre Estados, assim como em atenção ao estatuto profissional do círculo subjetivo aqui visado, importa ter presente que os funcionários diplomáticos «devem residir na área do posto ou serviço em que exerçam o seu cargo», sendo que os «funcionários em serviço no estrangeiro podem conservar o seu domicílio voluntário em Portugal, não podendo, em nenhuma circunstância, ser prejudicados pelo facto de se encontrarem fora do País em serviço do Estado» (vejam-se os n.os 1 e 2 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40-A/98, de 27 de fevereiro ). De outro modo dito: residindo fisicamente num outro Estado, têm a faculdade legal de manter o seu domicílio em território nacional, o que não pode deixar de refletir-se, outrossim, em matéria de recenseamento eleitoral.
Contudo, diferentemente de outros universos de cidadãos eleitores, relativamente aos quais a legislação eleitoral, em atenção à situação específica de eleitores recenseados no território nacional e deslocados no estrangeiro (inclusive, por força de determinada condi-ção profissional) , procedeu à respetiva individualização em sede do exercício do voto antecipado, não foi essa, até à data, a opção do legislador quanto ao círculo específico dos funcionários diplomáticos.
Acresce que, diferentemente do que se observa naquelas situações , não se en-contra igualmente acautelada na lei vigente, para efeitos de modificação do modo do voto, a situação dos familiares que residam com os funcionários diplomáticos colocados no ex-terior.
Sem embargo de a situação deste corpo profissional poder recair no âmbito subje-tivo das normas vertidas em distintas leis eleitorais que autorizam o voto antecipado a «[t]odos os eleitores (…) que, por força da representação de qualquer pessoa colectiva dos sectores público, privado ou cooperativo, das organizações representativas dos trabalhado-res ou de organizações representativas das actividades económicas, e, ainda, outros eleitores que, por imperativo decorrente das suas funções profissionais, se encontrem impedidos de se deslocar à assembleia de voto no dia da eleição» , o exercício do direito fundamental em questão torna-se de difícil praticabilidade, senão mesmo impossível (desde logo, nos casos em que não esteja previsto o voto antecipado no estrangeiro).
Entretanto, a Proposta de Lei n.º 77/XIII (“Altera a Lei Eleitoral da Assembleia da República e a Lei Eleitoral do Presidente da República”) vem sendo já apontada como propugnando solução tendente à superação das dificuldades à votação que atualmente afe-tam os funcionários diplomáticos e os familiares que com eles vivam, porém em âmbito circunscrito às eleições de âmbito nacional.
Neste horizonte, e em vista da procura das soluções mais ajustadas à eliminação dos atuais obstáculos na legislação eleitoral vigente, não posso, por conseguinte, deixar de fazer notar as imperiosas razões de justiça que justificam um tratamento adequado dos funcionários diplomáticos colocados no estrangeiro, tanto mais quanto são certas as res-ponsabilidades que aos mesmos estão legalmente cometidas no quadro das circunscrições eleitorais externas. Quanto aos familiares eleitores que com eles vivam, não se vislumbra, outrossim, razão para que a respetiva situação seja menos merecedora de tutela, quando confrontada com outros círculos de familiares de cidadãos eleitores recenseados no terri-tório nacional mas deslocados no estrangeiro (e que com eles vivam). Na verdade, a manter-se inalterado o presente estado de coisas, continuará a sacrificar-se o direito de voto daqueles que acompanham quem está investido em funções de representação externa do Estado, missão pública de elevadíssimo interesse, e por causa da mesma, não devendo o legislador relegar, quanto ao universo subjetivo que nos ocupa, o reconhecimento que se lhe impõe em termos do exercício de um direito político fundamental.
Pelo que acaba de ser exposto, recomendo que:
seja acautelada, nas diversas leis eleitorais e em ponderação das soluções técnicas mais adequadas, a situação específica dos funcionários diplomáticos (e equiparados) deslocados no estrangeiro, bem como dos seus cônjuges ou equiparados, parentes ou afins, que com eles vivam, assegurando-lhes modalidade compatível de exercício do direito de voto.
III. Exercício do direito de voto por cidadãos residentes no território continental e colocados profissionalmente nas Regiões Autónomas (e vice-versa)
Outra situação trazida à atenção do Provedor de Justiça respeita à situação dos ci-dadãos eleitores que, mantendo a sua residência habitual no território continental (e, por conseguinte, recenseados na corresponde circunscrição eleitoral), estão deslocados, por exigências da respetiva carreira ou atividade profissional, nas Regiões Autónomas – será, por exemplo, o caso de militares aí colocados em comissão.
Prevendo apenas a lei vigente, em atenção a determinadas razões profissionais, a modalidade do voto antecipado a exercer junto do presidente da câmara do município em cuja área o eleitor interessado se encontra recenseado , a situação que ora nos ocupa (bem como, naturalmente, a sua inversa: i.e. eleitores que, mantendo o direito a ser considerados residentes nas Regiões Autónomas, estão deslocados no continente por razões profissio-nais) sempre implicará uma deslocação entre arquipélagos e continente, o que, para além das situações de impedimento profissional propriamente dito, onera em demasia os eleitores deslocados nas circunstâncias descritas.
De outro modo dito, na ausência de previsão legal para as situações em causa, que franqueie uma modalidade de exercício do voto efetivamente adequada ao distanciamento e separação geográficos aqui patentes , não será excessivo afirmar que o universo de eleitores ora visado encontra-se, na prática, impossibilitado de exercer um direito fundamental de participação política.
Neste horizonte, no quadro das soluções possíveis, tendentes a alargar e a agilizar o exercício do direito de voto (nomeadamente antecipado e ou em mobilidade), bem como em vista dos trabalhos em curso no Parlamento para alteração das leis eleitorais e do regime jurídico do recenseamento eleitoral, recomendo:
a adoção de medidas que visem o aprofundamento da participação dos cidadãos nos atos eleitorais, superando-se a ausência da possibilidade de votação em local diferente da área de recenseamento, nomeadamente nos casos em que os eleitores, mantendo a sua residência habitual no continente, estejam deslocados por razões de carreira ou atividade profissional nas Regiões Autónomas e vice-versa.
IV. Exercício do direito de voto por cidadãos portugueses residentes no estrangeiro
A questão do exercício do direito de voto pelos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro tem sido objeto de queixa ao Provedor de Justiça, dando conhecimento de situações, nomeadamente, de atrasos na receção do boletim de voto, em moldes inviabili-zadores da participação no ato eleitoral respetivo, ou dando conta das dificuldades na des-locação a embaixadas ou consulados portugueses, designadamente, para efeitos do voto presencial, nas eleições que o preveem.
A este respeito não se desconhecem os resultados da apreciação da Petição n.º 247/XIII, solicitando a simplificação das leis eleitorais na parte relativa ao exercício do direito de voto pelos portugueses residentes no estrangeiro.
Assim, e ainda de acordo com o propósito que subjaz à recomendação formulada no ponto anterior, recomendo agora:
a adoção, dentro da coerência do sistema, das medidas adequadas a promover a mais ampla par-ticipação do universo eleitoral integrado pelos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro nos atos eleitorais a que são chamados, no exercício daquele que é um direito fundamental de participação política, com forte relevância, ademais, no sentimento de pertença e proximidade à comunidade nacional, malgrado a distância física.
V. Uniformização da legislação eleitoral
Por último, e na linha do que há muito vem sendo defendido por este órgão do Estado , não posso deixar de assinalar o status quo vigente em matéria de direito eleitoral, permanecendo, como é patente, o regime aplicável à eleição dos titulares dos órgãos do poder político disperso por um conjunto de diplomas legais e respetiva legislação com-plementar.
Conforme tem expressado o Provedor de Justiça, não obstante o esforço que, em todo o caso, vem sendo feito no sentido de uma maior harmonização, tal dispersão legisla-tiva tende a promover a coexistência, no âmbito das diversas leis eleitorais, de soluções legais diferenciadas para a mesma realidade, aparentemente sem que razões substantivas o justifiquem, como o ilustram, desde logo, as matérias tratadas na presente iniciativa.
Nestes termos, reitero recomendação ao Parlamento, na pessoa de Vossa Exce-lência, no sentido de que
seja assumida a intenção de assegurar uma progressiva uniformização das matérias que relevam do âmbito da legislação eleitoral, sem perder, naturalmente, de vista a reserva de iniciativa legislativa que quanto às mesmas compete, nos termos constitucionalmente recortados, às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas.
Em consideração, justamente, dessa repartição constitucional, tomo a liberdade de dar conhecimento da presente Recomendação a Suas Excelências a Presidente da Assem-bleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
Esperando que a presente iniciativa possa merecer o acolhimento nos termos que o alto critério desse Parlamento entender mais adequada, apresento a Vossa Excelência os meus mais respeitosos cumprimentos,
A Provedora de Justiça
(Maria Lúcia Amaral)