A Sua Excelência

O Ministro das Finanças

Avenida Infante D. Henrique, 1, 1.º Andar

1149-009 Lisboa

 

 

– por protocolo –

 

 

 

 

Lisboa, 19 de dezembro de 2016

 

Assunto: Reposição de quantias indevidamente recebidas por trabalhadores que exercem funções públicas

 

 

Recomendação n.º 6/B/2016

(alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da

Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)

 

 

Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, e pelos motivos seguidamente expostos, recomendo a Vossa Excelência que:

I. Clarifique o regime aplicável à reposição de dinheiros públicos, quando esta pressupõe a anulação de atos administrativos constitutivos de direitos à obtenção de prestações pecuniárias devidas pela prestação de trabalho em funções públicas;

II. Promova a imposição de limites e o aperfeiçoamento das regras aplicáveis à compensação dos créditos emergentes da obrigação de restituir dinheiros públicos com os créditos salariais.

 

I — Considerações introdutórias

A apresentação de diversas queixas ao Provedor de Justiça por trabalhadores que exercem funções públicas tem confrontado este órgão do Estado com decisões de reposição de montantes avultados, que foram estavelmente abonados como contrapartida da prestação de trabalho, durante períodos que podem ascender a cinco anos, com base em decisões ou normas regulamentares de cuja validade os trabalhadores não podiam duvidar.

Mercê da densidade e complexidade dos regimes jurídicos pertinentes, é comum verificar-se que a confiança na validade de tais decisões é partilhada pelos órgãos administrativos responsáveis pelo processamento das retribuições e sustentada e confirmada por despachos, orientações, informações, pareceres, relatórios, etc., de que os trabalhadores têm conhecimento e que só mais tarde vêm a ser postos em causa, em regra após ações inspetivas ou por determinação de outros órgãos. Raros foram os casos expostos ao Provedor de Justiça em que a ilegalidade do pagamento de remunerações e abonos a repor era manifesta ou não podia ser contestada à luz de atendíveis argumentos jurídicos[1].  

Observou-se também que, com frequência, os órgãos ou serviços se limitam a comunicar aos interessados que foi determinada a reposição de um certo montante ou abono sem, contudo, explicitar os motivos pelos quais se consideraram que tais quantias eram, afinal, indevidas. Verificado o erro ou o vício, e sempre que possível, as entidades competentes tendem a compensar os créditos apurados com os créditos devidos aos trabalhadores a título de remuneração, ou outros créditos emergentes da relação jurídica de emprego. E casos há em que a compensação de créditos não obedece a qualquer limite nem, deste modo, é precedida de qualquer comunicação.

Sublinho que qualquer pessoa deve poder confiar que no final do mês vai receber um determinado montante de salário, o que é fundamental para a organização e planificação da vida de qualquer trabalhador. Saber que, em qualquer momento, e desconhecendo o que motiva tal decisão, se pode ser confrontado com o dever de devolver quantias avultadas, ou de suportar uma significativa redução da remuneração mensal para satisfazer tal dívida, não apenas mina a confiança dos trabalhadores no Estado-empregador, como é suscetível de gerar uma insegurança dificilmente suportável.

A instrução destes procedimentos de queixa evidenciou, assim, a pertinência de promover uma revisão do Regime de Administração Financeira do Estado[2], com vista a uma mais equilibrada conciliação do interesse público na recuperação de verbas indevidamente despendidas com o direito fundamental à retribuição do trabalho, à luz dos princípios da juridicidade administrativa, da segurança jurídica, da tutela da confiança e da boa‑fé. Este órgão do Estado concluiu, em especial, que urge clarificar o prazo após o qual se pode confiar na estabilização dos atos de processamento de remunerações[3] e definir claramente os procedimentos e limites a que deve obedecer a reposição de verbas indevidamente recebidas através de compensação com créditos remuneratórios.

Com esse intuito, propus à antecessora de Vossa Excelência o aperfeiçoamento do regime jurídico de reposição de dinheiros públicos, que encontra positivação nos artigos 36.º a 40.º do RAFE. As propostas então formuladas[4] foram objeto de apreciação pela Direção-Geral do Orçamento, sobre a qual recaiu a decisão do então Secretário de Estado Adjunto e do Orçamento de promover «a constituição de um grupo de trabalho de revisão do Decreto-Lei n.º 155/92»[5].

Ainda que da evolução de tais trabalhos não tenha chegado notícia a este órgão do Estado, o parecer da Direção-Geral do Orçamento exprimia o acolhimento de algumas das sugestões formuladas, no sentido de serem ponderadas as especificidades do problema da reposição de quantias indevidamente recebidas como contrapartida da prestação de trabalho, no âmbito de uma Administração Pública que, enquanto entidade empregadora, se distanciou assinalavelmente da prefigurada pelo legislador em 1992.

Uma das principais preocupações que motivaram essa tomada de posição, reitero, era a questão do prazo em que pode ser determinada a reposição dos montantes indevidamente abonados aos trabalhadores, quando esta implica a anulação administrativa de atos constitutivos de direitos. Questão que, como adiante se exporá, tem suscitado dificuldades aos serviços e aos tribunais administrativos, e que este órgão do Estado esperava que pudesse vir a ser ultrapassada com a entrada em vigor do novo Código do Procedimento Administrativo[6].

Com efeito, entre as mais relevantes alterações introduzidas pelo novo CPA destacam-se as inovações em matéria de revisão dos atos administrativos que não se esgotam na distinção entre a revogação (extintiva) e a anulação administrativa (com fundamento em invalidade). Foram repensados e densificados os «condicionalismos» da anulação administrativa e identificadas as circunstâncias em que à Administração é concedido o poder de anular atos constitutivos de direitos no prazo mais longo de cinco anos:

«a) Quando o respetivo beneficiário tenha utilizado artifício fraudulento com vista à obtenção da sua prática; b) Apenas com eficácia para o futuro, quando se trate de atos constitutivos de direitos à obtenção de prestações periódicas, no âmbito de uma relação continuada; c) Quando se trate de atos constitutivos de direitos de conteúdo pecuniário cuja legalidade, nos termos da legislação aplicável, possa ser objeto de fiscalização administrativa para além do prazo de um ano, com imposição do dever de restituição das quantias indevidamente auferidas» (n.º 4 do artigo 168.º).

À luz da redação deste preceito parecia tornar-se claro que, salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b), os atos constitutivos do direito à retribuição só poderiam ser objeto de anulação administrativa, com imposição do dever de repor as quantias indevidamente recebidas, no prazo de um ano, porquanto a alínea c) do n.º 4 não se aplica aos atos de processamento de remunerações. O que sucede por não se encontrar prevista a possibilidade de aqueles serem objeto de fiscalização administrativa para além desse mesmo prazo.

No entanto, as considerações então tecidas por este órgão do Estado mereceram, por parte da Direção-Geral do Orçamento, a seguinte reação:

«somos de opinião que os atos administrativos que estão na base dos procedimentos de reposição de dinheiros públicos encontram, relativamente à sua anulação, regulamentação expressa no art. 168.º, nº 4, alínea c), do novo Código do Procedimento Administrativo, norma que mantém inalterado o prazo prescricional de cinco anos consignado no art. 40.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 155/92, uma vez que permite a anulação administrativa dos mesmos atos por igual período».[7]      

Posteriormente veio a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público adotar orientação coincidente.[8]

Segundo creio, esta posição distancia-se do espírito reformador do regime de anulação de atos constitutivos de direitos consagrado no novo CPA e vem renovar o receio de que o problema da conciliação entre este regime e o regime de reposição de dinheiros públicos continue a gerar dificuldades e a confrontar os trabalhadores com decisões que, frustrando expetativas legitimamente depositadas na validade e regularidade dos atos praticados pela Administração, impõem aos visados consequências, não raras vezes, muito gravosas.

II — O regime de reposição e o regime de anulação administrativa dos atos administrativos constitutivos de direitos a prestações pecuniárias devidas pela prestação de trabalho

As decisões de reposição de montantes indevidamente recebidos por trabalhadores vinculados por uma relação jurídica de emprego público implicam, em regra, a retificação ou a revisão de atos administrativos, constitutivos de direitos a prestações pecuniárias devidas pela prestação de trabalho, anteriormente adotados pela Administração.

É certo que é controversa a qualificação de cada ato isolado de processamento, liquidação e pagamento de remunerações, como um autónomo ato administrativo constitutivo de direitos. Salvo no que diz respeito ao ato que primeiramente define a posição jurídica de um trabalhador quanto ao seu estatuto remuneratório – consensualmente qualificado como um ato constitutivo de direitos[9], porquanto é neste momento que se dão por verificados e reunidos os pressupostos para que ao trabalhador seja devido um certo montante retributivo (v.g., se pode ser integrado numa determinada posição remuneratória ou se exerce as suas funções em condições tais que justifiquem a atribuição de determinado suplemento) – esta questão continua a dividir a doutrina e a jurisprudência[10]. No entanto, a corrente jurisprudencial maioritária vai no sentido de assumir que:

«Cada acto de processamento de vencimentos constitui, em princípio, um verdadeiro acto administrativo, e não uma simples operação material, já que, como acto jurídico individual e concreto, define a situação do funcionário abonado perante a Administração e que, por isso, se vai sucessivamente firmando na ordem jurídica, se não for objecto de oportuna impugnação ou revogação.»[11]

Assim, e a fim de determinar o regime a que deve obedecer a reposição de quantias indevidamente recebidas, importa, antes de mais, identificar o tipo de «erro» que está na origem dos pagamentos indevidos: estes podem resultar de um erro material ou contabilístico (v.g., um mero lapso no processamento ou na liquidação, erro de cálculo ou erro informático) que reclama uma simples retificação; ou resultar de um erro quanto aos pressupostos de facto ou de direito do processamento, caso em que os vícios geradores de invalidade devem convocar o regime de anulação dos atos administrativos.[12]

No primeiro caso, crê-se não haver dúvida de que o regime de reposição de montantes indevidamente recebidos previsto no RAFE é especialmente vocacionado para a retificação dos erros de cálculo ou erros materiais detetados neste tipo de atos, devendo ser afastada a aplicação das normas gerais sobre a retificação (artigo 174.º do CPA).

Já quando está em causa uma decisão de reposição que pressupõe um juízo sobre a invalidade dos atos que titularam os pagamentos indevidos, deve reclamar-se a devida convocação e ponderação dos interesses públicos e dos princípios jurídico-constitucionais que inervam o regime jurídico de anulação de atos administrativos: de um lado, o interesse público na reposição de verbas indevidamente despendidas e o princípio da juridicidade[13], a reclamar a reintegração da normatividade violada; do outro, os legítimos interesses e expetativas dos particulares de boa-fé, a exigir a intervenção dos princípios da tutela da confiança[14] e da segurança jurídica[15].

Não cuido aqui, note-se, de uma pura contraposição: o interesse público na remoção da invalidade não se satisfaz com a aplicação de qualquer critério de decisão que, tornando absoluto o interesse na restituição de verbas indevidamente despendidas, sacrifique a legítima confiança depositada pelos particulares na estabilidade e validade dos atos adotados pela Administração, assim «repondo a legalidade», enquanto ofende o direito. Como sintetizavam, a propósito do recentemente revogado CPA, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, referem que:

«se os princípios da legalidade e da prossecução do interesse público favorecem prima facie a revogação de actos administrativos ilegais ou tidos por inconvenientes, os princípios da tutela da confiança (…) e do respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos particulares (…) podem apelar à manutenção dos mesmos actos; no mesmo sentido depõe, aliás, a função estabilizadora dos actos administrativos (…). O regime jurídico da revogação constante do CPA visa, precisamente, atingir um ponto de equilíbrio entre a necessidade de reintegração da legalidade e da boa administração e as exigências de estabilidade, segurança e previsibilidade da actuação administrativa (…).»[16]

Diversamente, o regime de reposição de quantias indevidamente recebidas consagrado no RAFE não tem no seu horizonte este «ponto de equilíbrio», próprio de um regime de anulação de atos administrativos constitutivos de direitos. Embora considere, em certos aspetos, a boa ou a má-fé do destinatário da decisão (vide o n.º 3 do artigo 38.º e o n.º 2 do artigo 39.º), não define quaisquer «condicionalismos» e não determina o momento a partir do qual os atos, ainda que inválidos, devem estabilizar-se em prol da segurança jurídica e da proteção da confiança dos destinatários. Estabelece, apenas, no n.º 1 do artigo 40.º, um prazo de prescrição que não deveria, em rigor, ser confundido com o prazo de anulação.[17]

Não obstante, a conciliação entre as disposições relativas à reposição de dinheiros públicos[18] e as normas que proibiam a anulação administrativa de atos constitutivos de direitos, após o decurso do prazo de um ano, gerou divergências no seio da jurisprudência administrativa. Acabou por se consolidar a orientação segundo a qual o prazo previsto pelo CPA deveria prevalecer, sempre que as decisões de reposição de remunerações implicassem uma decisão tácita quanto à validade do ato que previamente definiu o montante remuneratório.[19] A sujeição ao prazo mais curto de um ano era, pois, a mais consonante com o que se entendia ser uma ponderação razoável dos princípios da legalidade, da segurança jurídica e da proteção da confiança em matéria de anulação dos atos administrativos constitutivos de direitos, quando os interessados se encontram de boa-fé.

Note-se, aliás, que uma vez que se entende que cada ato de processamento de retribuição constitui um ato administrativo autónomo, em caso de os atos serem praticados pela Administração com vícios geradores da respetiva anulabilidade, ao particular é concedido um prazo de três meses para os impugnar[20]. Assim, quando a Administração erra no cômputo da retribuição em prejuízo do trabalhador, decorridos três meses da prática do ato, pode em teoria opor-lhe a sua inimpugnabilidade[21]. Seria, pois, dificilmente justificável que os mesmos atos, praticados com vícios de idêntica natureza e gravidade, adquirissem estabilidade no prazo de três meses, quando contestados pelos particulares, e no prazo de cinco anos, quando revistos por iniciativa da Administração.

A entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2005 (Lei n.º 55‑B/2004, de 30 de dezembro), que aditou o n.º 3 do artigo 40.º do RAFE, veio todavia confundir novamente o âmbito dos regimes de anulação e de reposição. E acabou por impor uma rutura com aquela que era já uma corrente jurisprudencial constante e sustentada, uma vez que no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2009, o STA veio a determinar que:

«O despacho que ordena a reposição nos cofres do Estado de quantias indevidamente recebidas, dentro dos cinco anos posteriores ao seu recebimento, ao abrigo do art. 40º, nº 1 do DL nº 155/92, de 28 de Julho, não viola o art. 141º do Código do Procedimento Administrativo, atento o disposto no nº 3 do art. 40.º do DL nº 155/92, de 28 de Julho, preceito de natureza interpretativa introduzido pelo art. 77º da Lei nº 55-B/2004, de 30 de Dezembro».[22]

A esta alteração legislativa não terá sido alheia a influência do direito da União Europeia, o qual, em matéria de reposição de subvenções abonadas com recurso a verbas da União, opôs ao regime interno de revogação de atos administrativos a necessidade de haver prazos mais dilatados para a respetiva anulação.[23] Contudo, a jurisprudência e a doutrina[24] sempre foram alertando para a precariedade própria deste tipo de atos que, concedendo apoios ou subsídios, fazem depender tal atribuição da observação de condições que só a posteriori podem ser verificadas pela Administração. Nestes casos, o beneficiário sabe, ou deve saber, que o direito à obtenção das prestações só poderá dar-se por consolidado se, e quando, a Administração confirmar que foram observadas as condições da sua atribuição. A este propósito, o STA salientou que:

«Efectivamente, a diferença pode estar na necessidade de defender a boa-fé do beneficiário», a qual impõe que se distingam estes atos daqueloutros «em que os pressupostos são reunidos na fase instrutória pela Administração e por ela analisados antes da prolação do acto final». [25]

No momento em que a Administração adota a decisão de prestar a retribuição a um trabalho estão reunidos, e podem por esta ser verificados, os pressupostos da atribuição da parte mais relevante da remuneração, ou seja, da remuneração base e dos suplementos remuneratórios de caráter permanente e de montante fixo, eventualmente abonados ao trabalhador. Quanto aos montantes que não são regularmente auferidos (tais como ajudas de custo ou subsídio de transporte) ou que dependem da prestação de um certo número de horas de trabalho efetivo (v.g., o subsídio de refeição ou o suplemento devido pela prestação de trabalho suplementar), apesar de serem já «verificáveis» no momento em que é definido o montante a pagar ao trabalhador, são normalmente computados em momento posterior. Efetivamente pode haver factos determinantes da realização de descontos (v.g., por falta de assiduidade) ou do processamento esporádico de montantes a mais que os serviços nem sempre conseguem verificar oportunamente, tornando-se prática usual que aqueles se projetem na remuneração prestada, só um ou dois meses depois de terem ocorrido.

Em qualquer caso, não se vê como pode sustentar-se que estamos perante o tipo de «atos constitutivos de direitos de conteúdo pecuniário cuja legalidade, nos termos da legislação aplicável, possa ser objeto de fiscalização administrativa para além do prazo de um ano, com imposição do dever de restituição das quantias indevidamente auferidas», a que se refere a alínea c), do n.º 4, do artigo 168.º do novo CPA. Como esclarece Vieira de Andrade, a hipótese contemplada nesta alínea pressupõe «a existência de um regime legal específico de precariedade de direitos a prestações pecuniárias, na prática fundamentalmente associado a ajudas europeias, reguladas por normas supranacionais.»[26] E não se conhece nenhum regime específico que preveja ou regulamente «a precariedade» do direito às prestações retributivas, nem tal vocação pode ser atribuída ao artigo 40.º do RAFE. Este consagra apenas um prazo de prescrição, não atribuindo à Administração a competência para, no prazo de cinco anos, apreciar se estavam ou não reunidas as condições para que ao trabalhador fosse prestado um determinado montante a título de retribuição. Como tal, a menos que se pretenda ficcionar que os atos de processamento de retribuição estão permanentemente sujeitos à condição de a Administração não ter errado na apreciação dos factos ou na interpretação e aplicação do direito, não podem estes merecer o tratamento que a lei reserva aos atos precários.

            Parece, assim, como oportunamente defendi, que, à luz do novo Código, os atos administrativos constitutivos do direito à obtenção de prestações retributivas só poderiam ser anulados no prazo de um ano, após o qual não podem dar origem ao dever de repor (n.º 2 do artigo 168.º), salvo quando os beneficiários tenham recorrido a artifícios fraudulentos para a sua obtenção (nos termos da al. a), do n.º 4, do artigo 168.º).

            Esta posição pressupõe que a adoção de um novo regime legal de anulação de atos administrativos constitutivos de direitos, que veio consagrar soluções e prazos diferenciados (como desde há muito alguma doutrina vinha reclamando[27]), e que expressamente explicitou os «condicionalismos» a que deve obedecer a anulação no prazo mais dilatado de cinco anos, deveria decisivamente afastar a aplicação das disposições do RAFE. Mesmo que não se entenda, como André Folque afirma, que o n.º 3 do artigo 40.º do RAFE caducou[28], mal se compreenderia que a profunda e refletida revisão do CPA quanto a este regime tivesse sido empreendida, para que tudo permanecesse inalterado: continuando a aplicar-se, por força da supracitada norma interpretativa, as normas do RAFE, mesmo quando a reposição de dinheiros públicos pressupõe a anulação de atos administrativos constitutivos de direitos, que assim ficaria «liberta» da obediência aos «condicionalismos» previstos no novo Código.

Também a mais recente jurisprudência do STA parece pressupor a prevalência das normas do novo CPA, mas em termos que não se afiguram plenamente esclarecedores. Efetivamente, apesar de se ter afirmado em acórdão de 1 de junho de 2016[29] que a «questão da aplicação do controverso n.º 3 do artigo 40.º do DL n.º 155/92» é uma «questão que, aliás, o novo CPA já veio resolver no seu artigo 168.º», também se refere que:

«(uma vez que não houve revogação expressa daquela alínea [subentende-se, do n.º 3, do artigo 40.º do RAFE]), não parece que vá continuar a colocar-se nos tribunais da jurisdição administrativa o problema do prazo prescricional aplicável nos casos de reposição de quantias remuneratórias indevidamente pagas.»

Decorrido um ano de vigência do novo CPA temo, contudo, que o problema continue a suscitar decisões e juízos administrativos divergentes, com evidente prejuízo da uniformidade ou igualdade de tratamento destes casos pela Administração e pelos tribunais administrativos, assim como da estabilidade e previsibilidade da atuação administrativa. Está, outrossim, em causa, a equidade e razoabilidade do ordenamento jurídico, já que, também à luz de um princípio de ponderação entre o interesse público e os direitos e interesses legítimos dos particulares (n.º 1 do artigo 266.º da Constituição), é dificilmente justificável que os atos de processamento de remunerações, quando praticados em prejuízo do trabalhador e do direito à retribuição do trabalho, possam estabilizar-se no prazo de três meses, enquanto idênticos atos, padecentes de vícios de igual gravidade, se estabilizam no prazo de cinco anos quando em causa está o interesse na restituição de verbas públicas, mesmo que o beneficiário do ato esteja de boa-fé.

Razões pelas quais recomendo a V. Ex.ª que adote as medidas necessárias para clarificar que o regime de anulação de atos administrativos constitutivos de direitos, consagrado no novo CPA, prevalece sobre as normas do RAFE, sempre que esteja em causa a anulação de atos constitutivos de direitos, para o que se afigura recomendável a revogação expressa do n.º 3 do artigo 40.º do RAFE e a promoção de uma interpretação adequada e uniforme das normas do novo CPA.

 

III — A satisfação dos créditos emergentes da reposição de verbas públicas através da compensação com os créditos remuneratórios

Enquanto regime de execução de decisões que impliquem a restituição de montantes indevidamente recebidos a qualquer título, o RAFE prevê que a reposição possa ser efetuada através de compensação, por dedução não abatida, ou por pagamento através de guia (n.º 1 do artigo 36.º), sendo certo que a compensação deve ser adotada «sempre que possível» quando os devedores sejam trabalhadores da Administração Pública (n.º 2 do mesmo artigo).[30]

Assim, para assegurar que as verbas reentram rapidamente nos cofres do Estado, os serviços tendem a proceder à compensação através da dedução das quantias a repor nas remunerações auferidas pelos trabalhadores, independentemente da natureza do abono prestado a mais ou da circunstância que gerou o dever de repor[31]. Não prevendo o RAFE qualquer limite máximo para os descontos que podem ser efetuados, casos há em que os órgãos competentes determinam a dedução da totalidade da remuneração[32] ou de montantes que excedem amplamente o limite máximo de um sexto previsto nos regimes laborais (n.º 3 do artigo 174.º da Lei dos Trabalhadores em Funções Públicas (doravante designada por LTFP) e n.º 3 do artigo 279.º do Código do Trabalho); ou de um terço, previsto na lei processual civil (artigo 738.º do Código do Processo Civil).

Esta prática contende abertamente com a especial proteção conferida pelo ordenamento jurídico português aos créditos salariais[33]. Relembre-se que o princípio da intangibilidade da retribuição preside à regra de que os créditos que o empregador detenha sobre o trabalhador não podem ser compensados com retribuição em dívida, salvo nos casos especialmente previstos (vide o n.º 2 do artigo 174.º da LTFP e o n.º 2 do artigo 279.º do Código de Trabalho[34]). Ademais, a lei nega ao próprio trabalhador a possibilidade de dispor dos créditos salariais na sua totalidade (artigos 175.º da LTFP e 280.º do Código de Trabalho) bem como veda aos órgãos judiciais a possibilidade de, em sede de execução, penhorar por completo as remunerações, bem como quaisquer prestações que «assegurem a subsistência do executado» (artigo 738.º do Código do Processo C