Sua Excelência
O Presidente da Assembleia da República
Palácio de São Bento
1249-068 LISBOA
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S-PdJ/2015/16557
Q/6433/2012 (UT6)
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Lisboa, 17 de fevereiro de 2016
Assunto: Organizações de moradores. Omissão legislativa (artigos 263.º a 265.º da Constituição da República Portuguesa)
Recomendação n.º 1/B/2016
(alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)
Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, recomendo à Assembleia da República que:
Seja promovida a elaboração e aprovação do regime jurídico das organizações de moradores, nos termos previstos pelos artigos 263.º, 264.º e 265.º, da Constituição da República Portuguesa.
Foi solicitada a atenção do Provedor de Justiça para a ausência de normas legais que estabeleçam uma disciplina das organizações de moradores, contempladas pelo legislador constituinte no Capítulo V, Título VIII, da Parte da Constituição reservada à Organização do Poder Político (atuais artigos 263.º a 265.º, da Constituição)[1].
A Lei Fundamental, dando testemunho da relevância assumida por estas organizações no contexto pós-revolucionário, prevê que as organizações de moradores sejam constituídas para «intensificar a participação das populações na vida administrativa local»(n.º 1, do artigo 263.º) e esboça uma caracterização da sua composição, da estrutura e da atividade que se pretende que as mesmas coletividades exerçam.
De acordo com a Constituição, as organizações de moradores:
a) Reúnem moradores residentes «em área inferior à da respectiva freguesia», que poderão ser demarcadas pela assembleia de freguesia, por iniciativa desta, ou mediante requerimento dos moradores associados, em caso de conflito (n.ºs 1 e 2, do artigo 263.º);
b) São compostas por uma assembleia de “residentes inscritos no recenseamento da freguesia” (n.º 2, do artigo 264.º), que detém o poder de eleger e destituir o órgão executivo, ou seja, a comissão de moradores (n.º 3, do artigo 264.º);
c) Têm direito de petição perante as autarquias locais para prossecução dos interesses que representam (alínea a), do n.º 1, do artigo 265.º) e de participação na assembleia de freguesia (sem direito a voto, nos termos da alínea b), do n.º 1, do mesmo artigo); e
d) «Realiza[m] as tarefas que a lei lhes confiar ou os órgãos da respectiva freguesia nelas delegarem» (n.º 2, do artigo 265.º).
No entanto, escassas são as menções às organizações de moradores que é possível encontrar na legislação nacional. Não chegou nunca a ser aprovada a lei que, nos termos expressamente determinados na Constituição, devia fixar «[a] estrutura das organizações de moradores» (n.º 1, do artigo 264.º) e explicitar as «tarefas» que a estas organizações competiria realizar (n.º 1, do artigo 265.º).
A Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, previa, no seu artigo 18.º, que pudessem ser delegadas nas organizações de moradores «tarefas administrativas que não envolvam o exercício de poderes de autoridade, nos termos que vierem a ser regulamentados». Esta norma foi revogada pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (alínea c), do n.º 1, do artigo 3.º), que contudo passou a prever que pudesse ser autorizada pela assembleia de freguesia «a celebração de protocolos de delegação de tarefas administrativas entre a junta de freguesia e as organizações de moradores» (alínea h), do n.º 1, do artigo 9.º), competindo ao órgão executivo da autarquia «discutir e preparar (…) protocolos de delegação de tarefas administrativas que não envolvam o exercício de poderes de autoridade» (alínea k), do n.º 1, do artigo 16.º).
Também com os municípios poderão ser celebrados acordos de colaboração, nos termos do n.º 1, do artigo 46.º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (inicialmente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro), que prevê poder
«[a] gestão das infra-estruturas e dos espaços verdes e de utilização colectiva (…) ser confiada a moradores ou a grupos de moradores das zonas loteadas e urbanizadas, mediante a celebração com o município de acordos de cooperação ou de contratos de concessão do domínio municipal».
Por sua vez, no que respeita ao direito de petição, a Lei n.º 43/90, de 10 de agosto (alterada e republicada pela Lei n.º 45/2007, de 24 de agosto) remete para legislação especial a disciplina do exercício de direito de petição pelas organizações de moradores ante as autarquias locais (alínea c), do n.º 2, do artigo 1.º do citado diploma) – legislação esta que, ao que foi possível apurar, tão-pouco foi aprovada.
Assim, não parecem restar dúvidas de que estamos perante uma omissão legislativa inconstitucional[2], porquanto a Constituição impõe ao legislador que sejam adotadas medidas legislativas claramente dirigidas quanto à fixação da «estrutura das organizações de moradores» (nos termos do n.º 1, do artigo 264.º, «[a] estrutura das organizações de moradores é fixada por lei …»); e quanto à definição das competências destas organizações (nos termos do n.º 2 do artigo 265.º, «[à]s organizações de moradores compete realizar as tarefas que a lei lhes confiar…»), tudo sendo necessário para conferir exequibilidade ao estatuto constitucional de relevo pretendido para esta figura associativa.
Trata-se, pois, de
«uma incumbência ou “imposição”, não só claramente definida quanto ao seu sentido e alcance, sem deixar ao legislador qualquer margem de liberdade quanto à sua própria decisão de intervir (isto é, quanto ao an da legislação) – em tais termos que bem se pode falar, na hipótese, de uma verdadeira “ordem de legislar” – como o seu cumprimento fica satisfeito logo que por uma vez emitidas (assim pode dizer-se) as correspondentes normas»[3].
É certo que, tal como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, poder-se-á defender que,
«[n]a falta de normas legais, rege o princípio de auto-organização, dentro dos limites deste artigo [264.º], não podendo a constituição e o funcionamento das organizações – que são resultado de um direito constitucional dos cidadãos – estar dependentes de regulamentação legal»[4].
Não menos seguro será afirmar que não deixarão de ser reconhecidas a capacidade e a legitimidade das associações de moradores regularmente constituídas para exercer os direitos e aceder aos meios de representação e defesa dos interesses dos moradores, nos mesmos termos em que são outorgados para defesa de interesses coletivos às associações ou outras formas de organização coletiva que a lei reconheça.
É contudo igualmente inegável que o legislador constituinte pretendeu atribuir a estas organizações um estatuto especial, do qual, por falta das pertinentes normas legais, nunca puderam beneficiar.
De igual modo e no quadro da recente reorganização administrativa territorial autárquica,[5] com extinção, por agregação, de muitas freguesias, pode assumir renovada importância esta figura, que reúne por definição moradores em área parcelar das novas autarquias criadas, permitindo a continuidade da representação de interesses específicos de povoações que passaram a partilhar com outras os órgãos da autonomia local.
Em sentido confluente, a existência e valorização da figura constitucional em causa permitirá às autarquias locais uma melhor articulação com as populações pelas mesmas servidas.
Razões pelas quais assinalo à Assembleia da República a bondade de se suprir esta omissão inconstitucional, promovendo-se a entrada em vigor de regime jurídico adequado aos termos previstos na Constituição, designadamente nos seus artigos 263.º a 265.º.
Na expectativa de que tal seja possível, durante o ano que vê cumprir-se o quadragésimo ano de vigência da Constituição, de 2 de abril de 1976, apresento a Vossa Excelência, Senhor Presidente da Assembleia da República, os meus mais respeitosos cumprimentos,
O Provedor de Justiça,
(José de Faria Costa)
[1] Na redação que resultou da Revisão Constitucional de 1989. Na versão originária, estas organizações eram designadas por organizações populares de base territorial.
[2] Assim claramente o afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 548.
[3] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 276/89, de 28 de fevereiro, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19890276.html. Como esclarece Gomes Canotilho, «[a]s ordens de legislar, diferentemente das imposições constitucionais (que são determinações permanentes e concretas), traduzem-se, em geral, em imposições únicas (isto é: imposições concretas mas não permanentes) de emanação de uma ou várias leis necessárias à criação de uma nova instituição ou à adaptação das velhas leis a uma nova ordem constitucional.» in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Ed., Coimbra: Ed. Almedina, 2003, p. 1035.
[4] Canotilho, J. J. Gomes/Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª Ed. revista, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 787-788.
[5] Iniciada em 2012 com a aprovação do regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica (Lei n.º 22/2012, de 30 de maio) e concretizada, no que às freguesias diz respeito, pela Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro.