Exmo. Senhor
Presidente da Câmara Municipal
de Lamego
Rua Padre Alfredo Pinto Teixeira
5100 – 150 Lamego
 
 
Vossa Ref.ª
Proc. 000.05.00
Of.º n.º 3313
 
 
Vossa Comunicação
03/03/2014
Nossa Ref.ª
Proc. Q-6085/12 (UT1)
 
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 2/A/2015
 
(alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação dada pela Lei n.º 17/2013,
de 18 de fevereiro)
 
 
Assunto: domínio público – uso comum – estacionamento tarifado – dístico para moradores – taxa municipal
 
Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, e em face da motivação seguidamente apresentada, recomendo a V. Exa. que proponha à Assembleia Municipal:
 
A alteração da Tabela Geral de Taxas e Licenças e Tarifário de Água, Drenagem de Águas Residuais e Resíduos Sólidos em vigor no concelho de Lamego no sentido de (i) conformar o valor da taxa liquidada pelo designado «cartão mensal de morador» com os princípios da proporcionalidade, da equivalência e da justa repartição dos encargos públicos e (ii) precedendo revisão da fundamentação económica e financeira.
 
§1.º – Considerações preliminares
Apreciei uma queixa deduzida por oposição dos moradores ao valor de uma taxa a liquidar mensalmente pela renovação do designado cartão de morador, previsto nos artigos 9.º a 14.º do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada em vigor no município de Lamego[1].
Este regulamento permite às pessoas singulares que residam em rua sujeita a estacionamento de duração limitada obterem a isenção da tarifa, contanto que não disponham de estacionamento privativo ou não disponham de lugares de estacionamento gratuito num raio de 150 metros do local de residência.
O título da isenção designa-se «cartão de morador».
É atribuído apenas um cartão de morador por cada fogo de habitação (n.º 3 do artigo 11.º).
A obtenção desse cartão, contudo, obriga ao pagamento mensal de uma taxa que, de acordo com a Tabela Geral de Taxas e Licenças e Tarifário de Água, Drenagem de Águas Residuais e Resíduos Sólidos, tem o valor de € 60,00[2].
É este valor que alguns residentes na Rua D. João da Silva Campos Neves, na Praceta Arantes de Oliveira e na Rua do Columela contestam, por considerarem manifestamente excessivo.
Ao nosso pedido inicial de informações respondeu V. Exa. através do ofício n.º 7400, de 18 de junho de 2013.
Perante o teor dos esclarecimentos prestados, entendeu-se solicitar explicações complementares.
Transmitiu-nos o Senhor Vice-Presidente, através do ofício n.º 3313, de 3 de março de 2014, considerar devidamente fundamentado o tributo, já que a taxa fixada teria tido em conta o custo social suportado pelo município com a gestão do estacionamento e parques.
Não se pronunciou, todavia, sobre as considerações expostas no nosso ofício n.º 13050, de 11 de novembro de 2013.
Não podemos concordar com esta posição, pelos motivos que se expõem.
 
§2.º – Enquadramento e princípios a que obedecem as taxas municipais
As taxas são tributos com natureza sinalagmática, cujo elemento distintivo em face dos impostos é a bilateralidade: à satisfação de uma concreta necessidade do particular sucede uma contraprestação específica por parte de uma pessoa coletiva pública (ou investida de poderes públicos) havendo de permitir reconhecer um benefício individualizado.
Os impostos encontram-se constitucionalmente vinculados ao princípio da capacidade contributiva (artigo 104.º da Constituição); já as taxas têm de conformar-se com um mínimo de proporcionalidade entre o valor a liquidar e os encargos específicos que a prestação de um bem ou de um serviço importam para a comunidade.
A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro (LGT) determina que o regime geral das taxas deve constar de lei especial.
No que respeita aos municípios, trata-se da Lei n.º 53‑E/2006, de 29 de dezembro, que aprovou o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (RGTAL).
Ao retomar a definição enunciada no artigo 4.º da Lei Geral Tributária, este regime especial considerou que
 
«as taxas das autarquias locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias locais, nos termos da lei».
 
Atendendo à estrutura bilateral, a criação e a alteração das taxas municipais fundamentam-se nos princípios da equivalência jurídica, da proporcionalidade (artigo 4.º do RGTAL) e da justa repartição dos encargos públicos (artigo 5.º do RGTAL). Estes princípios convergem para o fim de impedir a criação de taxas municipais arbitrárias e garantir a proteção dos contribuintes.
Por outro lado, consagra-se o princípio da justificação económico-financeira do quantitativo das taxa (alínea c), do n.º 2, do artigo 8.º) segundo o qual o regulamento que cria ou altera as taxas deve conter a adequada fundamentação económico-financeira do seu quantitativo, designadamente os custos diretos e indiretos, os encargos financeiros, amortizações e futuros investimentos realizados ou a realizar pelo município.
Este específico dever de fundamentação é um meio para aferir a proporcionalidade do tributo, procurando evitar práticas arbitrárias ou excessivas na fixação do quantitativo das taxas e proteger o particular que beneficia da prestação pública ou que vê removido um obstáculo a determinada conduta e que, assim, passa a conhecer os motivos por que o valor a liquidar é este e não outro. A falta de justificação económico-financeira permite declarar a nulidade do regulamento omisso (corpo do n.º 2 do artigo 8.º).
O mesmo deverá valer para a fundamentação obscura, contraditória ou insuficiente (n.º 2, do artigo 125.º, do Código do Procedimento Administrativo).
A incidência objetiva das taxas municipais, exemplificada no artigo 6.º, admite que incidam sobre utilidades prestadas aos particulares ou geradas pela atividade dos municípios[3], designadamente pela gestão do tráfego e de áreas de estacionamento.
Veremos até que ponto podem ir estes tributos.
 
§3.º – Limites da autonomia regulamentar e tributária
É da competência das câmaras municipais «deliberar sobre o estacionamento de veículos nas vias públicas»[4] e propor à assembleia municipal a criação ou alteração de taxas neste âmbito[5].
As taxas a criar, contudo, não podem ser outras se não as que resultem de um uso privativo de bens públicos, da prestação de um bem ou serviço individualizado ou da remoção de um impedimento genérico por necessidade de conferir os pressupostos de um ato permissivo (licenças, autorizações, isenções).
O Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada do município de Lamego prevê que, pela emissão de um «cartão de morador», seja devida uma taxa mensal, no valor de € 60,00.
Desde logo, é de admitir que a obtenção do «cartão de morador» importe os emolumentos proporcionais ao encargo para os serviços.
            Ao contrário da generalidade dos municípios que isentam os moradores da tarifa de estacionamento nas imediações do local de residência, limitando-se a liquidar emolumentos pela atribuição do dístico, o município de Lamego entendeu estipular um encargo mensal fixo pelo próprio uso da via pública.
            Tradicionalmente, o estacionamento automóvel nas ruas e demais lugares públicos constituía um uso comum do domínio público, em condições de generalidade, igualdade, liberdade e gratuidade[6].
Independentemente de qualificar este uso comum como ordinário ou extraordinário, parece legítimo tributá-lo ao ponderar a escassez de lugares e a intensidade do uso individual (maior do que na simples circulação).
O acesso ao local de residência, contudo, diferencia os moradores, de tal modo que lhes é reconhecido um interesse legalmente protegido[7] no uso da rua, por contraste com o simples interesse de facto que caracteriza a situação jurídica dos demais utentes.
Justifica-se, por conseguinte, um tratamento que privilegie o estacionamento automóvel dos moradores em comparação com a generalidade dos utentes.
Se o estacionamento é tarifado, os moradores podem ser isentos da tarifa ou beneficiarem de uma redução substancial. E o maior ou menor encargo com a tarifa deverá depender do tipo de uso: ou continua a ser um uso comum ou é facultado um uso privativo (na hipótese de cada morador dispor de um certo lugar na via pública para seu uso exclusivo).
Estas tarifas não podem, todavia, infringir os princípios consagrados no regime geral das taxas dos municípios.
O princípio da equivalência jurídica garante apenas a legalidade de uma taxa e constitui expressão da sua estrutura comutativa, inexistente na relação jurídica de imposto.
É uma vertente daquilo que os autores designam por «equivalência económica», aquela a que se reporta o artigo 4.º do RGTAL, não obstante a sua epígrafe, e que permite apurar a legalidade do montante de uma taxa.
Desta norma resulta que os pressupostos da equivalência económica, a que as taxas devem obediência, se prendem com imposições de proporcionalidade, não podendo o seu quantitativo ultrapassar o custo da atividade pública nem ir além do benefício auferido pelo particular.
Para concretização do princípio da proporcionalidade, o valor nunca poderá ser manifestamente excessivo ou intolerável.
O facto de se mencionar a proximidade de um parque de estacionamento explorado por um agente privado (parque coberto e vedado) com um preço de € 38,00 pelo mesmo tipo de prestação indicia, no mínimo, que uma taxa de € 60,00 por um lugar na via pública é excessiva.
É superior, em cerca de 36,7%, ao da avença mensal praticada no parque comercial.
E dado que o lugar de estacionamento no parque coberto fica assegurado pelo pagamento da avença, haver ou não lugares disponíveis na via pública é algo que o município não está em condições de garantir.
Quer isto dizer que o carão de morador não faculta um uso privativo da via pública, mas somente um uso comum.
Isto seria motivo bastante para rever o valor da taxa.
Aprofundando, confrontemos a situação com os demais requisitos legais.
Estabelece o n.º 1, 2.ª parte, do artigo 4.º, do RGTAL que o valor das taxas não ultrapasse o custo da atividade pública local.
A fundamentação económica ou financeira (artigo 8.º do RGTAL) está ligada a este requisito e destina-se a permitir aos contribuintes conhecerem custo ou valor das prestações que lhes são dirigidas.
A fundamentação que nos foi apresentada não permite identificar os elementos que levaram à determinação do custo para o município da prestação que dá lugar a esta taxa, designadamente os custos diretos, indiretos ou os encargos financeiros da atividade.
Com efeito, no que respeita ao custo da atividade pública local, da justificação apresentada no anexo II da Fundamentação Económica e Financeira das Taxas e Outras Receitas do Município de Lamego não resultam elementos que possibilitem alcançar uma conclusão satisfatória.
Naquele documento é indicada a metodologia do levantamento da informação utilizada na fixação das taxas e explicada a fórmula de cálculo dos custos tidos em conta. Porém, não é clara a identificação dos elementos que, em concreto, levaram à determinação dos valores imputados tais como o custo de mão-de-obra, o custo de estrutura de suporte e o custo social.
O custo de mão-de-obra pode indistintamente reportar-se à emissão do cartão ou à manutenção do espaço público correspondente a um lugar de estacionamento à superfície.
Ignoram-se os aspetos considerados como custo social e que dissipam a dúvida legítima acerca da imputação de outros encargos com prestação de serviços, uma vez que parece tratar-se de taxa reportada ao uso privativo do espaço público.
Nem na resposta do Senhor Vice-Presidente se encontra elucidação suficiente; limita-se a explicar que o custo social suportado pelo município é de € 79,56, remetendo mais explicações para o Anexo II da Fundamentação Económica e Financeira das Taxas e Outras Receitas do Município de Lamego.
Acresce que tanto a análise da Tabela Geral de Taxas e Licenças como do Anexo II da Fundamentação Económica e Financeira das Taxas e Outras Receitas do Município de Lamego suscitam sérias reservas quanto à justificação económica e financeira do quantitativo das taxas locais.
O Anexo II estabelece uma fórmula genérica que é aplicada a todos os tributos previstos nos Capítulos I a XIV da Tabela Geral de Taxas e Licenças e Tarifário de Água, Drenagem de Águas Residuais e Resíduos Sólidos e que abrangem tipos completamente distintos de taxas[8].
A mesma equação é usada para o cálculo de taxas relativas à prestação de um serviço público, à utilização privada de bens do domínio da autarquia ou à remoção de obstáculos jurídicos, sem que se observem especificidades no cômputo dos encargos que justificam taxas tão distintas como, por exemplo, os emolumentos de uma certidão, a taxa para apreciação de um pedido de licenciamento de instalações de armazenamento e abastecimento de combustíveis ou pela emissão de um alvará de licença de obras de construção civil.
Não parece que este critério universal respeite o princípio da justificação económica e financeira de cada taxa. Nem se mostra apto a garantir a proporcionalidade e a razoabilidade de cada taxa no propósito de prevenir a arbitrariedade do valor fixado e de proteger e informar o particular.
Por último, quando nos propusemos saber qual o benefício auferido pelo particular (n.º 1, in fine, artigo 4.º) como justificação daquela taxa – terceiro requisito do princípio da equivalência económica que fundamentaria esta taxa – percebemos que o mesmo não foi contabilizado.
E não terá sido contabilizado porque, ao invés de calcular esse benefício, tal como determina aquela norma, o município optou por considerar a circunstância de existir nas proximidades do local referido na queixa um estacionamento público, explorado por uma empresa participada pela Câmara Municipal de Lamego.
Empresa que apresenta resultados financeiros negativos e cujo negócio, nas palavras de V. Exa. «seria irremediavelmente arruinado se tivesse concorrência a preço inferior no espaço público».
O que vale por dizer que não foi o benefício do utilizador que orientou a fixação do valor da taxa, mas o aviamento de uma empresa comercial que não é, apenas, alheia à relação jurídico-tributária, como aufere vantagens concorrenciais da aplicação de uma taxa excessiva e desproporcionada pelo estacionamento na via pública.
E nem se argumente que a ponderação do estacionamento público, explorado por empresa participada pela Câmara Municipal de Lamego que apresenta resultados financeiros negativos, tivesse como fim desincentivar a prática de certos atos ou operações, como previsto no n.º 2, do artigo 4.º, do RGTAL.
Como V. Exa. não pode deixar de reconhecer, mesmo admitindo que uma taxa local possua aptidão extrafiscal no sentido de incitar ou desincentivar determinada conduta, esta aptidão deve ser orientada para a concretização de políticas ambientais, urbanísticas ou sociais. Não pode, através de uma taxa municipal, procurar incrementar- ‑se a utilização de determinado equipamento para benefício de uma terceira entidade, estranha à relação jurídico-tributária município/particular, subvertendo-se toda a lógica subjacente ao princípio da proporcionalidade.
O efeito dissuasor ou moderador permitido às taxas municipais não pode, de modo algum, constituir o seu fim determinante[9].
Se o motivo principalmente determinante de uma taxa municipal é outro que não o retributivo, o ato criador dessa taxa é inválido por desvio de poder.
 
§4.º – Conclusões
A)    A determinação da taxa mensal de € 60,00 pelo cartão de morador revela-se ilegal por inobservância dos princípios da equivalência económica, da proporcionalidade da taxa e da justa repartição dos encargos públicos (n.º 1, do artigo 4.º e n.º 1, do artigo 5.º, do RGTAL).
B) O quantitativo desta taxa deverá ser revisto à luz daqueles princípios e fixado em montante inferior, sem interferência de elementos estranhos à relação sinalagmática estabelecida pela utilização do um lugar de estacionamento na via pública ou interesses de entidades externas à relação jurídico-tributária.
C)    Impõe-se que a fundamentação económica e financeira desta taxa, e eventualmente de outras taxas e receitas do município de Lamego, seja clarificada, em termos que permitam afastar qualquer reserva quanto à sua validade.
 
Dignar-se-á V. Exa., em cumprimento do disposto no n.º 2, do artigo 38.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, transmitir-me, dentro de 60 dias a contar da receção desta recomendação, a posição que vier a adotar.
 
O Provedor de Justiça
 
 
José de Faria Costa


[1] Aprovado pela Assembleia Municipal de Lamego em 26 de abril de 2012 e publicado através do edital n.º 447/2012, no Diário da República, 2.ª série, n.º 89, de 8 de maio de 2012.
[2] Capítulo IX, artigo 6.2.
[3] Nesta linha, cf. n.º 2, do artigo 20.º, da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro).
[4] Alínea rr), do n.º 1, do artigo 33.º, da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro.
[5] Alínea b), do n.º 1, do artigo 25.º, da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro.
[6] Cf. Oliveira, Mário Esteves de, Direito Administrativo I, Lisboa, 1977, pp. 440 e ss.
[7] Idem, p. 455.
[8] Capítulo I – Prestação de Serviços Diversos; Capítulo II – Taxas de Urbanização e Loteamento; Capítulo III – Higiene e Salubridade; Capítulo IV – Cemitérios; Capítulo V – Ocupação do domínio público; Capítulo VI – Emissão e autenticação de horários de abertura dos estabelecimentos comerciais de venda ao público e de prestação de serviços; Capítulo VII – Publicidade; Capítulo VIII – Mercados e feiras; Capítulo IX – Outras taxas e licenças em vigor; Capítulo X – Licenças de veículos afetos ao transporte em táxis; Capítulo XI – Tarifário da Prestação de serviços de Abastecimento de Água e Tratamento de Águas Residuais e Recolha de Resíduos Sólidos; Capítulo XII – Instalação e Funcionamento dos Recintos de Espetáculos e Divertimentos Públicos; Capítulo XIII – Licenças Especiais de Ruído; Capítulo IV – Parque Biológico Serra das Meadas.
[9] Neste sentido, cf. Vasques, Sérgio, «Regime das Taxas Locais», Cadernos IDEFF, n.º 8, 2008, Coimbra, pp. 113 e ss.