A Sua Excelência

O Secretário de Estado da Cultura

Palácio Nacional da Ajuda

1349-021 Lisboa

 

 

V.ª Ref.ª

Ofício n.º 6392

DBC/DPIMI/UCC

P.20005/11-10/2/CL/116

V.ª Comunicação

20/06/2013

Nossa Ref.ª

Proc. Q-6342/12 (UT 1)

 

 

RECOMENDAÇÃO N.º 6/A/2014

(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)

 

 

ASSUNTO: património cultural – classificação – imóvel de interesse público – zona de proteção – princípio da proporcionalidade – desvio de poder

 

 

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, e em face da motivação seguidamente apresentada, RECOMENDO a V. Exa que:

 

I)       Tome a iniciativa de alterar o conteúdo da zona de proteção especial à Casa LG …, sita em Caxias, concelho de Oeiras, que resulta da Portaria n.º 740-AO/2012, de 12 de dezembro, de modo a refletir uma ponderação razoável dos vários interesses legítimos relevantes e a cumprir as obrigações decorrentes do princípio da proporcionalidade, concretizadas nas especificações próprias do artigo 43.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro.

 

II)    Determine a revogação do despacho interpretativo do artigo 43.º, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, praticado, em 10/03/2010, pelo chefe de gabinete do então secretário de Estado da Cultura, sobre a Informação n.º 654379 DSBC/DRCN/10, da Direção Regional da Cultura (Norte).

 

III) Oriente a Direção-Geral do Património Cultural e as direções regionais de cultura para adaptarem progressivamente as zonas especiais de proteção que tenham sido delimitadas em circunstâncias análogas e com termos semelhantes, ou seja, abrindo mão de especificar as limitações e restrições excessivas sobre os imóveis abrangidos.

 

IV) Oriente esses mesmos órgãos no sentido de promoverem a participação prévia dos municípios, não apenas quanto ao ato de classificação, como também quanto ao conteúdo imposto por meio das zonas especiais de proteção e suas vicissitudes.

 

V)    Na eventualidade de se encontrarem em fase adiantada planos integrados ou planos de pormenor de salvaguarda para as áreas a proteger (artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro), sejam compreendidas estas medidas nesses instrumentos e atribuída prioridade à sua tramitação.

 

Consigno que foram atendidas as explicações prestadas pelos serviços superiormente dirigidos por Vossa Excelência.

 

 

§1.º – Considerações preliminares

 

 

1.       Apreciámos uma queixa relativa à zona especial de proteção delimitada em redor da Casa LG …, sita à Rua…, em Caxias, concelho de Oeiras, imóvel classificado de interesse público pelo disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 740-AO/2012, de 12 de dezembro (Diário da República, 2.ª série, n.º 248, de 24 de dezembro de 2012).

 

2.       Opõe o queixoso, em defesa da proprietária de um imóvel compreendido na zona especial de proteção, que foi preterida a audição da Câmara Municipal de Oeiras, incumprindo-se o disposto no artigo 41.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro.

 

3.       A proposta sujeita à participação não definia as limitações nem os condicionamentos, suscitando dúvidas aos interessados acerca do exato alcance que viria produzir[1].

 

4.       A omissão do enunciado das restrições concretamente impostas às zonas especiais de proteção compaginava-se com instruções superiores sobre como interpretar o disposto no artigo 43.º do citado diploma[2].

 

5.       A Direção-Geral do Património Cultural foi interpelada pelos meus colaboradores e limitou-se a renovar as considerações já anteriormente replicadas ao queixoso.

 

6.       Em suma, o disposto no citado artigo 43.º, n.º 1, prevê a faculdade de especificar zonas non ædificandi e outras condições, o que, literalmente, não lhes deixaria dúvidas[3]:

 

«Ao inserir a palavra ”podendo especificar” (…), o legislador permitiu, sem sombra de dúvida, que uma ZEP possa apenas ser definida pela sua área – na esmagadora maioria dos casos superior a uma ZEP standard – aplicando-se aqui as normas constantes do artigo 43.º da LPC e 51.º, n.º 1, do DL 309/2009.»

 

7.       Razões semelhantes levam a Direção-Geral do Património Cultural[4] a considerar que os órgãos municipais, só excecionalmente têm algo a dizer acerca da concreta definição das restrições:

 

«Ora bem, se a entidade competente da administração central define para uma determinada ZEP somente uma área, não necessita, nem deve (…), envolver a câmara municipal na definição da mesma» autarquia para a elaboração. A opção da chamada da autarquia para a elaboração conjunta de uma determinada ZEP relativa a imóvel de âmbito nacional, é um poder conferido por lei ao órgão da administração central responsável pela proteção do património cultural de âmbito nacional. Poder que se transforma em dever se numa ZEP forem inseridos elementos referentes a atribuições/competências do município onde se encontre o imóvel classificado.»

 

8.       Por seu turno, a Câmara Municipal de Oeiras confirmou ter sido notificada para se pronunciar em audiência prévia, mas não considerou insuficientes os elementos. De resto, já tinha prestado informações ao extinto IPPAR e reconhecido que a zona especial não justificava objeções da sua parte.

 

9.       A Direção Regional de Cultura do Norte, em casos semelhantes, tinha assinalado contingências de ordem circunstancial para poder concretizar as especificações de cada zona especial de proteção[5]:

 

«A aplicação do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 309/2009 implica um estudo rigoroso das tipologias e morfologias das áreas em questão, da sensibilidade arqueológica, dos usos do solo, das dinâmicas e expetativas urbanísticas e das condições socioeconómicas da população, levada a cabo – para ser credível – por uma equipa multidisciplinar. Exige ainda uma atenta consulta dos interessados e das autarquias, com quem se deve trabalhar em parceria nesta matéria. Trata-se de uma tarefa de grande responsabilidade, que não pode ser realizada com base numa abordagem rápida, de tipo empírico ou impressionista.»

 

10.   Encontrar-se-ia iminente, ao tempo, a caducidade de múltiplas iniciativas de classificação (artigo 78.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro[6]) e, por conseguinte, urgia concluir os procedimentos, ainda que sacrificando «a necessária ponderação e qualidade, propostas de zonamento e restrições»[7].

 

11.   O gabinete do antecessor de Vossa Excelência aquiescera. Pelo menos para os procedimentos iniciados antes da publicação do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, não haveria necessidade de especificações, até porque isso representaria uma aplicação retroativa da lei.

 

12.   Observo, desde já, que a homologação da informação parcialmente transcrita pelo já citado[8] despacho de 11/03/2010 do chefe de gabinete do então secretário de Estado da Cultura, infringiu normas de competência, pois aos chefes de gabinete dos membros do Governo não é permitido senão exercer os poderes – próprios ou delegados – que, ao tempo, se encontrassem expressamente enunciados no Decreto-Lei n.º 262/88, de 23 de julho[9].

 

13.   O centro das questões controvertidas parece-me delimitado. Trata-se da interpretação do disposto no artigo 43.º, n.º 2 a n.º 4, da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro (Bases da Política e Regime de Proteção e Valorização do Património Cultural), e do disposto no artigo 43.º, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, no que diz respeito à servidão administrativa designada zona de proteção constituída nas imediações de um imóvel ou de um conjunto de imóveis classificados ou em vias de classificação.

 

14.   Por um lado, importa saber se é obrigatória e com que alcance a intervenção municipal. Por outro lado, saber se cada uma das zonas de proteção obriga a uma especificação das limitações e restrições impostas aos proprietários dos imóveis afetados ou se, pelo contrário, é de admitir uma aplicação supletiva pelo máximo de sacrifícios previstos na lei (artigo 43. º do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro).

 

15.   Os imóveis classificados beneficiam de uma zona geral de proteção (artigo 43.º, n.º 1), no interior de um perímetro de 50 metros, traçado a partir do polígono que representa os limites externos do imóvel ou do conjunto de imóveis classificados.

 

16.   A julgar-se insuficiente, pode, por portaria, ser estabelecida uma zona mais vasta (n.º 2). Designa-se zona especial de proteção. Traçada do mesmo modo, pode ir muito além dos 50 metros e, ao contrário das primeiras, pode incluir zonas non ædificandi (n.º 3).

 

 

§2.º – Da natureza jurídica e estatuto das zonas especiais de proteção

 

 

17.   Zonas gerais e especiais, ambas constituem verdadeiras servidões administrativas (n.º 4), nomeadamente por condicionarem a urbanização e a edificação, com prevalência sobre os planos municipais ou especiais de ordenamento do território.

 

18.   Por isso, os órgãos municipais não podem admitir operações que «alterem a topografia, os alinhamentos e as cérceas e, em geral, a distribuição de volumes e coberturas ou o revestimento exterior dos edifícios» sem o parecer favorável da Direção-Geral do Património Cultural ou das direções regionais (onde existam).

 

19.   As servidões administrativas, por definição, delimitam negativamente o aproveitamento edificatório. Delas resultam situações jurídicas passivas propter rem, como, por exemplo, o ónus de preferência em favor do Estado na venda ou dação em pagamento dos imóveis incluídos em zonas de proteção (artigo 37.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro).

 

20.   Contudo, a proteção e a valorização do património classificado não se reduz a este meio. É por isso que, por meio do artigo 44.º, n.º 1, ficou o legislador incumbido de encontrar «outras formas de assegurar que o património cultural se torne elemento potenciador da coerência dos monumentos, conjuntos e sítios que o integrem, e da qualidade ambiental e paisagística».

 

21.   Ideal, no quadro legislativo, seria aprovar um plano de pormenor de salvaguarda por iniciativa municipal (artigo 53.º, n.º 1) ou de um plano integrado por iniciativa da administração central (n.º 2).

 

22.   Até lá, «a concessão de licenças, ou a realização de obras licenciadas, anteriormente à classificação (…) dependem do parecer prévio favorável da administração do património cultural competente» (artigo 54.º, n.º 1).

 

23.   Parece razoável que os particulares conheçam de antemão as limitações com as quais se irão confrontar doravante. Parece ainda razoável que, em cada zona especial, se poupem os proprietários a limitações sem utilidade para a proteção ou valorização do imóvel classificado – não raro, a centenas de metros – ou que não se adequem à concreta configuração espacial.

 

24.   Uma vez que o sacrifício especial recai sobre a conformação de direitos seus, é justo que conheçam, com alguma margem de certeza e de segurança jurídica, os principais impedimentos a que ficam sujeitos, designadamente em matéria de obras de alteração exterior ou de ampliação.

 

 

§3.º Da participação municipal

 

 

25.   Justifica-se plenamente aplicar o regime geral da constituição das servidões administrativas, consagrado, até há pouco, no Decreto-Lei n.º 181/70, de 28 de abril.

 

26.   Até há pouco, pois entrou em vigor, em 29 de junho de 2014, com a Lei n.º 31/2014, de 30 de maio (Bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo) um novo quadro normativo das servidões administrativas (artigo 33.º), mas que, no essencial, o reproduz. 

 

27.   O aviso público e a audiência dos interessados estendem-se do momento constitutivo (artigo 1.º, n.º 1) até cada uma das ampliações ou agravamentos das onerações (n.º 2) e a participação municipal obrigatória importa que à câmara municipal sejam dadas a conhecer a área, encargos e restrições a impor (artigo 2.º, n.º 1), para poder formular «as observações que lhe parecerem convenientes» (artigo 5.º, n.º 2).

 

28.   De modo a que a participação dos interessados não seja um exercício fútil e possa considerar aspetos de legalidade e de mérito – como a «inutilidade da constituição ou alteração da servidão ou a sua excessiva amplitude e onerosidade» (artigo 4.º) – bem se vê como é indispensável conhecer, em concreto, as limitações que se preveem.

 

29.   Há de concluir-se, pois, pela obrigatoriedade da participação municipal, conquanto o seu parecer não seja vinculativo (artigo 98.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo).

 

30.   É certo que no artigo 25.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, apenas se obriga à audiência prévia dos municípios quando do ato de classificação, sem se fixar que essa participação incida na constituição de uma zona especial de proteção.

 

31.   Não é menos certo, contudo, mostrar-se precipitado o afastamento de uma participação mais extensa com base neste preceito, porquanto a classificação e a constituição da zona de proteção podem praticar-se no mesmo ato e ao mesmo tempo ou ficar relegada esta última para os 18 meses subsequentes (artigo 42.º, n.º 1), conservando-se até lá a zona provisória de proteção, observada ao longo do procedimento (em vias de classificação).

 

32.   Como tal, não podem restar dúvidas. Sem prejuízo da articulação da Direção-Geral do Património Cultural com as câmaras municipais, de forma a ser constituída uma unidade autónoma de planeamento (artigo 41.º, n.º 2) e de ser divulgada a consulta pública no boletim e sítio eletrónico do município (artigo 46.º, n.º 2), é obrigatório o parecer municipal sobre a constituição, ampliação ou agravamento da servidão administrativa, em cumprimento do artigo 5.º n.º 2, do Decreto-Lei n.º 181/70, de 28 de abril.

 

33.   Vejamos, em seguida, os exatos termos do conteúdo de uma zona especial de proteção.

 

 

§4.º – Conteúdo da zona especial de proteção: discricionariedade administrativa e limites

 

 

34.   Esse conteúdo reflete o exercício de um poder discricionário, o que, quanto mais não seja, obriga o motivo principalmente determinante das opções adotadas a convergir para o fim de «proteção e valorização do bem imóvel classificado» (artigo 43.º, n.º 1), concretizado no «enquadramento paisagístico do bem imóvel e as perspetivas da sua contemplação» (artigo 43.º, n.º 2) assim como a respeitar os princípios gerais de direito administrativo.

 

35.   Depois, não se trata de discricionariedade plenamente criativa ou de decisão, mas em boa parte, e segundo a terminologia tradicional, de discricionariedade optativa ou de escolha