Ex.mo Senhor
Presidente da Câmara Municipal de Anadia
Largo do Município – Ap. 19
3781-909 ANADIA
Vª Ref.ª |
Vª Comunicação 26.jan.2012 |
Nossa Ref.ª Proc. R-2021/10(A1) |
Assunto: Urbanismo – obras – legalização – primado da materialidade subjacente.
RECOMENDAÇÃO N.º 8/A/2012
(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
I
Do contraditório proporcionado pela instrução
1. Dei por concluída a apreciação de uma queixa apresentada contra uma operação urbanística, em São João da Azenha, executada em imóvel de …, por se considerar inadequado o exercício dos poderes de polícia urbanística da Câmara Municipal de Anadia.
2. Trata-se de obras de construção de um edifício para habitação composto por rés-do-chão e primeiro andar, de par com uma vedação em estacaria de madeira.
3. Os trabalhos indiciaram a prática de uma infração contraordenacional, o que levou o Posto Territorial de Sangalhos da Guarda Nacional Republicana a lavrar o auto de notícia n.º 7/354/09, em 30/7/2009.
4. Instaurado pela Câmara Municipal de Anadia o processo contraordenacional n.º 6/2010, concluir-se-ia pela prática do ilícito de mera ordenação social previsto e punido nos termos do artigo 98.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (na versão da Lei n.º 60/2007, de 4 de setembro).
5. Com efeito, fora executada, sem licença municipal, a demolição de uma anterior edificação e a construção de uma nova, além do mais, fora do perímetro urbano, em solos protegidos pela Reserva Ecológica Nacional e pela Reserva Agrícola Nacional (artigo 4.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas b), c) e f)).
6. A Câmara Municipal presidida por V. Ex.a. aplicou à arguida uma coima no valor de € 21,500,00, decisão notificada por meio do ofício n.º 6622, de 12/11/2010.
7. Como porém a aplicação da coima não permite, por si, repor a legalidade urbanística, bem andou a Câmara Municipal ao intimar a infratora para requerer a legalização das obras. De outro modo, seria prematura e eventualmente desproporcionada uma ordem de demolição (artigo 106.º).
8. Condição essencial, por se tratar de solos classificados na REN, era a de ser obtido parecer favorável da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional – Centro (artigo 23.º do Decreto-lei n.º 166/2008, de 22 de agosto), e por se tratar de solos classificados na RAN, o parecer da Entidade Regional da Reserva Agrícola Nacional (artigo 23.º do Decreto-lei n.º 73/2009, de 31 de março).
9. Instámos por várias vezes a Câmara Municipal a informar-nos acerca da sequência dada ao processo de legalização. Em resposta, foi-nos transmitido que, uma vez interposto recurso da aplicação da coima, encontrava-se sustada a ponderação de medidas de tutela da legalidade. Tão-pouco a infratora requerera a legalização, a despeito da citada intimação de 12/11/2010.
10. Perante este facto, o Senhor Provedor Adjunto, por minha delegação, expôs a V. Ex.a., por ofício de 23/11/2011, o nosso entendimento de que a interposição do recurso judicial de aplicação da coima não podia nem devia afetar a legalização da obra ou a sua demolição, como primeiramente fora considerado.
11. Contrapôs V. Ex.a., por ofício de 30/11/2011, que a tanto obstava o princípio da separação de poderes.
12. Apresentava, contudo, o teor da sentença de 22/6/2011, do Tribunal Judicial da Comarca do Baixo Vouga/Anadia (proc. 619/10.8T2AND, Juízo de Instância Criminal), em cujo teor se fixaram factos relevantes, independentemente de ter mantido parcialmente o ato municipal sancionatório.
13. Assim, verificara-se que o imóvel não se encontrava integrado na Reserva Agrícola Nacional.
14. E que, embora classificado na Reserva Ecológica Nacional e fora dos perímetros urbanos, estaria em revisão o Plano Diretor Municipal de Anadia, a qual contava já com o parecer favorável da CCDR-Centro para remover o imóvel da Reserva Ecológica Nacional e requalificá-lo nos solos urbanizados.
15. Por esta razão, suspendia a aplicação da coima na estrita parte correspondente ao ilícito próprio da violação do regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional.
II
Do princípio do interesse público ao primado da materialidade subjacente
16. Como questão controvertida apresenta-se, pois, a de saber se, perante a sentença, devem as autoridades municipais abster-se de providenciar pela reposição da legalidade urbanística – seja por via da legalização da obra, seja por via da sua demolição.
17. Sem quebra da consideração por V. Ex.a., entendo que é o princípio da separação de poderes a impedir que a sentença possa afetar o regular exercício das competências de ordem pública.
18. Se há que ter em conta factos dados como assentes na sentença, esses factos valem por si e não por efeito do caso julgado.
19. Por outras palavras, julgo ser de atender à revisão do Plano Diretor Municipal, mas por diferente motivo e com determinadas condicionantes.
20. De resto, constitui jurisprudência pacífica considerar que nem sequer a absolvição em recurso interposto de aplicação de coima produz caso julgado material contra a adoção de medidas de tutela da legalidade urbanística, como é o caso da intimação para legalizar obras clandestinas e como é o caso, eventualmente, da ordem de demolição (assim, do Supremo Tribunal Administrativo, Acórdão da 2.ª Sub., de 3/6/2003, proc. 865/03; Acórdão da 3.ª Sub., de 18/2/2004, proc. 1804/03; Acórdão da 2.ª Sub., de 29/11/2005, proc. 1413/04; Acórdão da 1.ª Sub., de 8/11/2007, proc. 160/07; Acórdão da 2.ª Sub., de 21/6/2011, proc. 339/09).
21. Ainda que se impugnem simultaneamente a aplicação de uma coima e uma ordem de demolição, os processos têm diferentes objetos, diferentes pedidos e causas de pedir (artigos 497.º e 498.º do Código do Processo Civil).
22. Com efeito, a infração contraordenacional é apreciada pelos tribunais comuns, ao passo que a validade dos atos administrativos respeita à jurisdição própria. A infração prescreve, mas não a necessidade de repor a ordem pública urbanística. A infração atende ao grau de culpa, mas não o interesse público lesado que urge salvaguardar.
23. Basta ver que uma obra clandestina representa sempre um perigo concreto: sem se conhecerem os projetos e os termos de responsabilidade dos seus autores, não pode indiciar-se a estabilidade da edificação nem que satisfaça minimamente aos demais requisitos de segurança e de salubridade. Por conseguinte, o interesse público e o princípio da legalidade administrativa reclamam uma de duas medidas: ou a legalização ou a demolição.
24. Em princípio, como tempus regit actum, a ponderação de V. Ex.a. entre a legalização e a demolição, haveria de efetuar-se segundo as prescrições do Plano Diretor Municipal em vigor (neste sentido, do Supremo Tribunal Administrativo, Acórdão da 1.ª Sub., de 7/4/2011, proc. 601/10; Acórdão da 2.ª Sub., de 21/6/2011, proc. 339/09).
25. Não pode a Administração Pública, todavia, ficar alheia ao facto de se prever requalificar o solo em questão com o efeito de remover o impedimento dirimente às obras executadas.
26. Repugnaria ao primado da materialidade subjacente concluir pela insusceptibilidade de legalizar certa obra e, por conseguinte, intimar à sua demolição, com base em prescrições que se estima virem a ser revogadas a breve trecho (sobre este princípio, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, 4.ª ed., Coimbra, 2012, pp. 975 e segs.).
27. Isto, na certeza de que o motivo principalmente determinante da sua revogação não seja a própria legalização da obra ou das obras que, de outro modo, haveriam de ser demolidas.
28. E nem se oponha que este princípio é alheio ao direito administrativo por ter o seu assento de nascimento no direito civil. É que ele é corolário também do princípio do interesse público (artigo 266.º, n.º 1, da Constituição), com o sentido de serem inválidos os atos ablativos que, sem proveito algum para o interesse público, imponham um sacrifício justificado pela salvaguarda apenas formal da legalidade.
29. E, ao mesmo tempo, é corolário do princípio da boa‑fé, cuja esfera de aplicação tem hoje lugar cativo no direito público (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, e artigo 6.º-A, do Código do Procedimento Administrativo).
30. Ora, de acordo com a revisão do PDM, a obra executada deixa de ficar absolutamente impedida. Contanto que satisfaça aos requisitos de implantação, de construção, de utilização e outras prescrições, poderá vir a ser legalizada, no todo ou em parte.
31. Foi obtida da parte de V. Ex.a., em 20/1/2012, informação, segundo a qual, seria marcada para data próxima, a apresentação da proposta reformulada de revisão do PDM à Comissão de Acompanhamento, satisfazendo às apreciações das diferentes autoridades públicas com intervenção e cumprindo as alterações legislativas que se sucederam desde a constituição daquele órgão ad hoc (despacho n.º 17 687/98, Diário da República, 2.ª Série, n.º 237, de 14/10/1998, p. 14 409; despacho n.º 1 232/99, in Diário da República, 2.ª Série, n.º 20, de 25/1/1999, pp. 936 e seg.).
32. Bem antes de se conhecer a edificação clandestina, já a Comissão Nacional da Reserva Ecológica Nacional se pronunciara, em 1/6/2006, a favor da desafetação à REN da mancha n.º 158, com uma reduzida exceção, de uma pequena faixa a manter como «área ameaçada pelas cheias».
33.