Sua Excelência
O Ministro da Administração Interna
Praça do Comércio
1149-015 LISBOA
Vossa Ref.ª |
Vossa Comunicação |
Nossa Ref.ª Proc. R-3561/09 (A6) |
Assunto: Despistagem obrigatória de infeções virais. GNR e PSP.
Recomendação n.º 7/B/2012
(art.º 20.º, n.º 1, b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
Foi questionada junto do Provedor de Justiça a legalidade dos requisitos de ingresso no Curso de Oficiais de Polícia ministrado pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI), no que respeita à imposição de exames de diagnóstico à infeção pelo VIH, vírus da hepatite B/C e sífilis, cujo resultado positivo é tido como condição de exclusão da respetiva candidatura.
Estão em causa as disposições do Regulamento de admissão e frequência do Curso de Licenciatura em Ciências Policiais, aprovado pela Portaria n.º 101/95, de 2 de fevereiro, e do Estatuto do Pessoal Policial da PSP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 299/2009, de 14 de outubro, que estende os requisitos da constituição das relações jurídicas de emprego público do pessoal policial às condições de acesso ao curso de Formação de Oficiais de Polícia e ao Curso de Formação de Agentes (cf. artigo 43.º ibid.), bem como a Portaria n.º 230/2010, de 26 de abril, que regula a admissão, a frequência, o aproveitamento escolar e a eliminação dos alunos do ciclo de estudos integrado do mestrado em Ciências Policiais.
A este respeito foram encetadas diversas diligências instrutórias junto da direção de ensino da Polícia de Segurança Pública, no sentido de clarificar as razões que justificam a imposição destes exames de diagnóstico e consequente exclusão de candidatos com estatuto serológico positivo.
A entidade visada manteve a defesa da legalidade das regras em vigor, fundada essencialmente:
¾ na liberdade dos responsáveis pelo curso na fixação de requisitos de admissão, designadamente na apreciação da robustez física e estado psíquico geral dos candidatos, compatível com a função policial;
¾ na necessidade de proteção da saúde dos outros candidatos e dos restantes cidadãos.
As dúvidas oportunamente manifestadas[1] quanto à conformidade constitucional da despistagem obrigatória das referidas patologias, em especial, do VIH mantêm-se, apesar da última informação elaborada pelo Senhor Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública[2].
Em suma, não foram obtidas respostas satisfatórias relativamente aos dois aspetos fundamentais capazes de influenciar a legalidade dos referidos exames de diagnóstico e que constituem, por seu turno, referência nas principais linhas de argumentação defendidas pelos responsáveis da Polícia de Segurança Pública auscultados.
A
Capacidade para desempenho de funções policiais.
Em primeiro lugar, mantém-se por clarificar qual a fundamentação técnico-científica que legitima, desde logo constitucionalmente, a decisão de exclusão dos candidatos portadores de VIH, em fase assintomática, ou seja, qual a razão objetiva e científica pela qual um estatuto serológico positivo para o VIH, só por si e em abstrato, constitui uma limitação à capacidade do candidato para o exercício da função policial.
Na verdade, por não ter sido apresentada fundamentação clínica sobre a relação imediata entre o referido estatuto serológico e a deficiente execução das tarefas concernentes à atividade policial, a referida prática reveste-se de um carácter discriminatório, inaceitável por desconsiderar as circunstâncias de cada caso concreto.
Note-se que, sem outra justificação, tal discriminação é tanto mais grave quanto perpetrada no âmbito do acesso a uma relação jurídica de emprego público.
Recorde-se o disposto nos artigos 13.º n.º 2 e 14.º, n.º 1, do Regime do Contrato de Trabalho em funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, nos termos dos quais nenhum candidato a emprego pode ser prejudicado ou privado de qualquer direito por ser portador de deficiência ou doença crónica, salvo nas circunstâncias em que resulte da natureza das atividades profissionais em causa ou do contexto da sua execução que esse fator constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da atividade profissional, devendo o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.
Reitera-se, para que não subsistam dúvidas, que não estão em causa “a pertinência e adequação de apreciação da robustez física e perfil psíquico dos candidatos ao Curso de Licenciatura ou Mestrado em Ciências Policiais, a qual pode ser prosseguida, nomeadamente, através da submissão a exames de diagnóstico e avaliação por junta médica (…), nem a inaptidão e consequente exclusão de candidatos portadores de doenças ou lesões que no momento da admissão possam interferir ou limitar a capacidade do candidato para o exercício da função policial”.
Falta, todavia, a comprovação do nexo causal entre, nomeadamente, o VIH e a limitação ou incapacidade para o exercício de funções, no momento do ingresso no curso.
B
Perigo para a Saúde Pública.
No que respeita à alegação de perigo de contágio existente (segunda linha de argumentação defendida pelos distintos responsáveis da Polícia de Segurança Pública), quer para outros candidatos, quer para terceiros, no que pode ser designado de argumento de saúde pública, importa chamar à colação, não só as orientações internacionais neste domínio, como também, a própria posição da Ordem dos Médicos, chamada a pronunciar-se no âmbito da instrução do processo em curso.
Assim, é opinião expressa do Colégio da Especialidade de Doenças Infeciosas da Ordem do Médicos que
“O pedido de exames de diagnóstico de infecção pelo VIH/Sida, hepatite B, C e sífilis como condição de admissão ao Curso de Formação de Oficiais da Polícia, invocando protecção da saúde de outros candidatos, como motivo justificativo fundamental para a exclusão de candidatos portadores dos vírus supra-identificados, não nos parece que seja uma medida eficaz em termos de Saúde Pública, para evitar contágio durante o treino com contacto físico (…).”[3]
O assunto foi detalhadamente abordada no ofício remetido a Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna (junto em anexo como documento n.º 1), ocorrendo frisar que
¾ os testes de diagnóstico perdem validade de um dia para o outro, por via do período de janela ou eventual contaminação posterior, não sendo eficazes na prevenção do contágio;
¾ há, pelo contrário, que adaptar as regras de conduta à possibilidade, sempre real, de qualquer interveniente em determinada atuação policial ser portador dos vírus em causa;
¾ mais adequada e proporcional seria, assim, a previsão de protocolos de atuação adequados a esse risco omnipresente, quer na preparação da ação, quer a implementar após situações especiais de risco de contágio;
¾ as principais fontes de contágio do VIH estão identificadas e circunscritas, ocorrendo em casos de particular especificidade, excluindo a imensa maioria das situações em meio profissional;
¾ outras profissões existem com iguais características eventualmente potenciadoras de risco de contágio em virtude de contacto físico, como seja o caso paradigmático das profissões de saúde, relativamente às quais não é testado o estatuto serológico dos candidatos.
Importa ainda recordar a posição da Organização Mundial de Saúde[4], expressa em Junho de 2004, entidade que se manifestou contra os testes de despistagem de VIH por motivos de saúde pública (i.e. possibilidade de contágio e proteção da saúde de terceiros).
O afastamento do carácter inconstitucional da restrição presentemente em vigor no acesso à formação e ao emprego (público), através da imposição de exames de diagnóstico ao VIH, hepatite B/C e sífilis, depende, portanto, de melhor demonstração de que a sujeição a estes testes constitui medida necessária e adequada à proteção da saúde dos outros candidatos e da saúde pública, apesar da posição defendida pelas instâncias internacionais e pela Ordem dos Médicos.
No que toca à Guarda Nacional Republicana, ocorre remissão para o regime das Forças Armadas. O regime relativo às tabelas de inaptidão e incapacidade para as Forças Armadas e para a prestação de serviço na Polícia Marítima, aprovado pela Portaria n.º 790/99, de 7 de setembro, classifica expressamente a sífilis clinicamente comprovada, a hepatite crónica viral ou a infeção por VIH 1 e VIH2, como causas de inaptidão para a admissão à Marinha, Exército e Força Aérea.
Distingue-se neste lugar as consequências que tais patologias aportam para os profissionais no ativo. Nestes casos, as referidas patologias assumem-se unicamente como causas de inaptidão parcial dependente do grau de lesão e critério de junta médica, ou como incapacidade dependente do grau de lesão e do critério da junta, apenas, nas situações em que causem “perturbações que diminuam a capacidade para o serviço”. Esta classificação parece implicar, obrigatoriamente, uma avaliação casuística.
Fica, assim, por explicar qual o motivo que impede que no momento da admissão às Forças Armadas seja utilizado critério idêntico ao previsto para profissionais no ativo, este último parecendo claramente mais fundamentado e não discriminatório, porque assente em circunstâncias verificáveis e não meramente hipotéticas.
Em resumo das considerações acima expostas e restante informação constante dos documentos anexos, os seguintes aspetos justificam a presente iniciativa:
1) permanece por demonstrar a conformidade constitucional e legal da exclusão dos candidatos com resultado positivo nos testes de VIH e a própria justificação da realização destes testes como condição de ingresso nas forças policiais;
2) o rastreio obrigatório presentemente praticado, no âmbito da avaliação por junta médica, revela-se, até demonstração científica em contrário, como prática ineficaz na prevenção da propagação das doenças em apreço e desproporcional, conforme opinião subscrita pela Ordem dos Médicos;
3) tratando-se de uma restrição no acesso à profissão, a inexistência de fundamentação apropriada e a desproporcionalidade da medida em questão converte-a numa prática discriminatória, tanto mais grave quanto perpetrada sobre pessoas portadoras de um risco agravado de saúde, no âmbito do acesso a uma relação de emprego público;
Em conclusão, defende-se solução normativa que faça refletir no acesso e exercício da profissão as concretas limitações de ordem funcional que se verifiquem, em análise necessariamente casuística, rejeitando-se o rastreio obrigatório de simples seropositividade como fundamento de exclusão de candidatos portadores destas patologias.
Assim, para garantia da proteção devida a todos cidadãos, designadamente contra a discriminação no acesso à formação e emprego e pleno respeito pela sua dignidade, em conformidade com a Constituição e com as orientações internacionais nesta matéria, recomendo ao Governo, na pessoa de Vossa Excelência, nos termos dos art.ºs 8.º e 20.º, n.º 1, b), do Estatuto do Provedor de Justiça, a formulação de regime legal que,
1. proscreva soluções normativas infundamentadas e já rejeitadas pela ordem jurídica no seu todo, não excluindo liminarmente o acesso a funções policiais de candidatos apenas pela sua seropositividade, com modificação das tabelas de inaptidão física aprovadas pelo Senhor Diretor Nacional da PSP, nos termos do art.º 6.º, n.º 2, do Regulamento aprovado pela Portaria n.º 101/95, de 2 de fevereiro, e do art.º 7.º, n.º 2, da Portaria n.º 230/2010, de 26 de abril.
2. estabeleça a criação e aplicação de protocolos de atuação, de cariz preventivo e sucessivo, adequados aos riscos de saúde que possam advir, para membros das forças policiais ou para terceiros, da atuação daqueles.
Mais informo que iniciativa similar foi nesta data dirigida ao Senhor Ministro da Defesa Nacional e à Senhora Ministra da Justiça, respetivamente no que se refere às Forças Armadas e Polícia Marítima e à Polícia Judiciária.
Dada a remissão que é feita no regime jurídico aplicável à GNR para o das Forças Armadas, o âmbito da presente Recomendação, dirigida a V.ª Ex.ª, no que toca à Guarda Nacional Republicana, incide essencialmente sobre o n.º 2, acima.
Apresento a Vossa Excelência os meus melhores cumprimentos,
O Provedor de Justiça,
Alfredo José de Sousa
[1] Cf. ofício n.º 11871, de 1 de setembro de 2011, junto em anexo como documento n.º 1.
[2] Cf. informação subscrita pelo Senhor Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública, datada de 15 de Fevereiro p.p. e parecer anexo, que se juntam como Documento n.º 2.
[3] Cfr. em anexo o documento n.º 3.
[4] UNAIDS/WHO Policy Statement on HIV Testing, document disponibilizado em: www.who.int/rpc/research_ethics/hivtestingpolicy_en_pdf.pdf.