Número: 11/A/2008
Data: 25-11-2008
Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Assunto: obras de construção – licença – desconformidade – operação de loteamento
Processo: R-4127/07 (A1)
RECOMENDAÇÃO N.º 11/A/2008
(artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)
I
Da queixa apresentada
1. Foi-me apresentada queixa em que é visada a Câmara Municipal presidida por V.Ex.a., a respeito de obras particulares de construção por não serem adoptadas as devidas providências de polícia urbanística.
2. Em concreto, afirma-se que a autorização de obra, identificada pelo alvará n.º 472, de 26.04.2007 (lote n.º 4), na Aldeia do Juzo, infringe as condicionantes especificadas para a operação de loteamento, através da respectiva licença, identificada pelo alvará n.º 1199, de 9.01.2001.
3. Considerando que da observância das especificações definidas para as operações de loteamento urbano depende a validade das licenças, autorizações e comunicações prévias admitidas, procedeu-se às pertinentes averiguações e ao contraditório estipulado no artigo 34.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça).
II
Da averiguação dos factos
4. Respondendo à minha solicitação, viria V. Ex.a. a remeter os documentos mais relevantes que instruíram o respectivo procedimento, dos quais resulta que:
a. Por despacho do então Presidente da Câmara Municipal de Cascais, de 9.01.2001, foi emitido o alvará de loteamento n.º 1199, que fixou para o lote n.º 4, com a área de 320 m², uma construção com dois pisos + cave, destinada a habitação, com 170 m² de área de construção, 164 m² de área máxima de implantação e cumprindo o índice de 0,53;
b. Esta especificação observa os limites máximos de construção admitidos para a zona pelo Regulamento do Plano Director Municipal de Cascais [1] (categoria de espaços urbanos de baixa densidade) – artigo 25º, n.º 1, e n.º 5, alínea c) para “ lotes com área superior a 150m2 e inferior ou igual a 500m2”;
c. Por autorização municipal identificada pelo alvará n.º 472, de 26.04.2007, admitiu‑se a construção de um edifício, destinado a habitação, com três pisos (dois acima da cota de soleira e um em cave) com a cércea de 6,00 m, 95,29 m² de área de implantação e 274,77 m² de área total de construção.
5. No que respeita à área de construção[2], resulta indiciado um excesso de 104, 77 m² do confronto entre as especificações da licença de loteamento (170 m²) e o teor da autorização de construção (274,77 m²).
6. Verifica-se que a área de construção autorizada se reparte da seguinte forma [3]:
a. piso em cave – área de 82,93m2
b. piso 0 – área de 95,29m2
c. abrigo (ao nível do piso 0) – área de 18m2
d. piso 1 – área de 78,55m2
i. Área total = 274,77m2
7. Admitindo o art. 2º, n.º 3, alínea b), do PDM que, para o cálculo da superfície ou área de pavimento/área de construção, se excluam as áreas técnicas construídas acima ou abaixo do solo, procede-se ao desconto da área ocupada pelo piso em cave (82,93 m²) que se destina, de acordo com a memória descritiva, de 14.08.2001, a “zona técnica de lixo e aspiração central”.
8. Excluiu-se ainda do cálculo da superfície ou área de pavimento/área de construção, a área resultante da projecção de escadas no último piso (5,42 m²), por ter a mesma já sido contabilizada no piso imediatamente inferior (obstando deste modo à duplicação de áreas no cálculo correspondente), isto conforme entendimento generalizado na prática das boas regras de aplicação de requisitos na concepção e compreensão dos edifícios, quando da análise da representação gráfica de arquitectura [4].
9. Já todavia não se descortinam motivos que justifiquem excluir do cálculo da superfície de pavimento/área de construção, a área ocupada pelo estacionamento coberto para automóvel, construído acima do solo, ao nível do piso 0 [5] – por o mesmo não apresentar as características justificativas da exclusão, de acordo com o que para esse efeito é exigido pelo art. 2º, n.º 3, alíneas b) e g) do Regulamento do PDM (parqueamento em cave/parqueamento coberto abaixo da cota de soleira).
10. Donde se conclui que a superfície de pavimento/área de construção contabilizável permitida pela licença de construção, para efeitos de aferição da sua compatibilidade com o permitido pela licença de loteamento, será de 186,42m² [6], ultrapassando, ainda assim, em 18,42 m², o limite máximo (170m²).
11. Tomando por referência o valor achado quanto à superfície de pavimento/área de construção, apura-se um índice de utilização líquido de 0,58 (ou seja: 186,42 m² / 320 m² [7]), o qual, embora inferior ao limite máximo admitido para a zona pelo PDM (art. 25º, n.º 5, alínea c) “ lotes com área superior a 150m² e inferior ou igual a 500m²” – 0,80) ultrapassa, todavia, o que para o lote 4 havia sido permitido nas especificações da operação de loteamento (0,53).
III
Do direito: validade das licenças de obras e conformidade com as especificações das operações de loteamento
12. Porque a autorização de construção titulada pelo alvará n.º 472, de 26.04.2007, contende com o disposto no alvará da licença de loteamento n.º 1199, de 09.01.2001, revela-se nula a primeira, por força do disposto no art. 68º, alínea a), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação – RJUE [8]. Não restaria alternativa senão a demolição parcial da obra e a redução do acto de autorização até ao ponto de se conformar com as especificações para o lote.
13. O citado RJUE, atribui a V.Ex.a., no art. 106.º, n.º 1, o poder para ordenar a demolição total ou parcial da obra ilegal, fixando prazo para o efeito. Mas, nem por isso deixa o n.º 2 do mesmo preceito, de estabelecer que a demolição pode ser evitada se a obra for susceptível de ser licenciada ou autorizada, ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis.
14. Entendeu o legislador que a demolição só deve ser ordenada se não for possível a legalização da obra, com ou sem a realização de trabalhos de correcção ou de alteração. A demolição de obras ilegais é, pois, tida como o último meio para a reposição da legalidade urbanística. Isto, aliás, por respeito ao princípio constitucional da proporcionalidade (art. 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), que interdita serem impostos sacrifícios aos administrados quando não existam razões de interesse público que o possam justificar ou para além do que este mesmo interesse público reclame.
15. Por isso, em face do carácter irreversível que tem a demolição da construção a nível da afectação da situação do seu titular, deverá entender-se como regra a de que acto com este conteúdo e alcance só deverá ser praticado quando se conclua pela impossibilidade de assegurar a satisfação, por outra via, do interesse público na reintegração da legalidade urbanística.
16. Chamado a pronunciar-se sobre esta questão, o Supremo Tribunal Administrativo, em entendimento pacífico, tem considerado que o poder de escolha entre a demolição e a legalização de obras levadas a cabo sem o necessário licenciamento prévio (ou em desconformidade com ele), por parte da câmara municipal ou do seu presidente, é discricionário quanto ao tempo da decisão, mas vinculado no sentido de a demolição só poder ter lugar depois de previamente se concluir pela inviabilidade da legalização das obras: por estas não poderem satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização, estética, segurança e salubridade [9].
17. Importa atender a que os instrumentos de ordenamento territorial – como é o caso das licenças de loteamento – não são definitivos, porquanto se admite a possibilidade da sua alteração por iniciativa particular (seguidos os trâmites e observadas as condicionantes que constam do artigo 27º do RJUE).
18. Na ponderação a ter lugar, há-de configurar-se a hipótese de uma alteração da licença de loteamento permitir a execução, no lote em causa, da obra reclamada – isto, porquanto, segundo os dados de que dispomos, aquela solução de aproveitamento urbanístico não contende com as condicionantes impostas para a zona pelo PDM.
19. E só no caso da alteração à licença de loteamento não se mostrar viável [10], deverá ser ordenada a redução da autorização de construção, por forma a conformá-la com os parâmetros de ocupação (área de construção e índice de utilização líquido) definidos nas especificações do loteamento, com a consequente determinação da demolição da área construída em excesso (16,42 m² [11]).
20. A este propósito, importa lembrar, o que Pedro Gonçalves e Fernanda Paula Oliveira, em estudo dedicado à nulidade dos actos de gestão urbanística[12], maxime das licenças, defendem quanto os efeitos do acto nulo:
O princípio da improdutividade jurídica dos efeitos típicos do acto não elimina (…) toda a sua produtividade, já que não se trata apenas de uma aparência de acto administrativo. E isto é particularmente evidente quando os actos administrativos em causa são actos de gestão urbanística que investem o particular no poder de realizar operações urbanísticas pois, ao abrigo deles, mesmo que nulos, tais operações podem consolidar-se efectivamente: podem ser operações de loteamento e respectivas obras de urbanização que se efectivam, construções que se edificam e que se consolidam, passando a ser utilizadas pelos titulares das respectivas licenças ou por terceiros adquirentes.
21. É pois, seguindo, no essencial, este entendimento, que admito que os actos nulos, embora não possam ser ratificados, reformados nem convertidos (art. 137.º, nº1, do Código do Procedimento Administrativo), podem contudo ser objecto de redução (figura prevista no art. 292º do Código Civil para os negócios jurídicos e que permite salvaguardar a parte não viciada).
IV
Recomendação
Considerando que a autorização da construção a executar no lote n.º 4, titulado pelo alvará de obras de construção n.º 472, de 26.04.2007, se revela nula, por exceder das especificações do loteamento identificado pelo alvará n.º 1199, de 9.01.2001 (de acordo com o disposto no artigo. 68º, alínea a), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação), Recomendo à Câmara Municipal superiormente presidida por V.Ex.a. que declare a nulidade parcial (artigo 134.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo) e determine a prática dos actos consequentes próprios, a saber:
A – intimação para iniciativa particular de alteração da licença de loteamento, por via do procedimento inscrito no artigo 27º, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.
ou, no caso de esta alteração se revelar, a final, inviável:
B – a redução da autorização de construção, na medida necessária a conformá-la com os limites impostos pela licença de loteamento, seguindo-se-lhe a determinação da execução dos trabalhos de alteração e/ou correcção necessários a garantir a conformidade.
A presente Recomendação é formulada nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça). Dignar-se-á V.Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), a expressa pronúncia sobre o seu teor em prazo não superior a 60 dias.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues
[1] Ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/97, de 19.06.1997.
[2] Já a área de implantação e o número de pisos não deixam dúvidas quanto à sua conformidade.
[3] v. folha de medições, de 11.09.2001.
[4] A área da projecção de escadas no último piso não se confunde, pois, com aquela que é ocupada pela caixa de escadas. Esta deve ser incluída no cálculo da soma das superfícies brutas de todos os pisos, nos termos exigidos pelo art. 2º, n.º 3, alínea b) do Regulamento do PDM.
[5] cfr. projecto de arquitectura (alçado posterior) e memória descritiva.
[6] 95,29m2/Piso0 + 73,13m2/Piso1[6] + 18m2/Abrigo coberto para estacionamento
[7] art. 2º, nº 3, alínea e), do PDMCascais.
[8] Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro,. Alterado pelo Decreto-Lei nº 177/2001, de 4 de Junho e pela Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro.
[9] Acórdão STA, 2ª Subsecção do CA, de 19 de Maio de 1998, Proc. 43433; Acórdão STA, 1ª Subsecção do CA, de 12 de Novembro de 1998, Proc. 43643; Acórdão STA, 1ª Subsecção do CA, de 26 de Abril de 2001, Proc. 46802; Acórdão STA, 3ª Subsecção do CA, de 9 de Abril de 2003, Proc. 09/03; Acórdão STA, 3ª Subsecção do CA, de 2 de Fevereiro de 2005, Proc. 633/04; Acórdão STA, 2ª Subsecção do CA, de 1 de Março de 2005, Proc. 761/04; Acórdão STA, Pleno da Secção do CA, de 29 de Novembro de 2006, Proc. 633/04.
[10] v.g. por falta de impulso do interessado, ou por se observar a impossibilidade de obter o consentimento da maioria dos proprietários dos lotes constantes do alvará.
[11] Trata-se de 186,42m2 como área de construção contabilizável admitida em sede de autorização de construção contra 170m2 como área de construção admitida pela licença de loteamento.
[12] O regime da nulidade dos actos administrativos de gestão urbanística que investem o particular no poder de realizar operações urbanísticas, in Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, 1999 (2), p. 17.