RECOMENDAÇÃO N.º 8/A/2007
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]
Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Ourém
Proc.º: R-2774/05
Área: A1
Data: 8.10.2007
Assunto: obras públicas – beneficiação de caminho público – incacabamento – responsabilidade civil
I
Exposição de motivos
1. Da freguesia de Espite e do município de Ourém é reclamada, por moradores locais, a conclusão das obras de beneficiação executadas na Rua dos Castanheiros e em parte da Rua Francisco Sá Carneiro, em Espite.
2. Faltando executar tais trabalhos num troço de 80 metros, aproximadamente, na parte final da primeira via, e na parte da segunda que com esta entronca, as águas pluviais são naturalmente escoadas para a edificação que lhes serve de casa de morada, através da valeta de drenagem aberta na estrada nova.
3. Por outro lado, afirmam encontrar-se ajustada, de há muito, a instalação de um poste de iluminação pública junto da sua casa. Para esse efeito, cederam já uma parcela de terreno e, inclusivamente, pagaram as quantias que lhes foram indicadas.
4. É certo que o queixoso se recusou a ceder uma parcela de terreno que seria necessária para o alargamento da via, mas opõe encontrar-se no seu direito, sem que este facto o deva privar dos benefícios que as obras públicas hão-de proporcionar.
5. As averiguações da Provedoria de Justiça compreenderam a audição do município superiormente representado por V. Ex.a., a audição da freguesia de Espite, através da respectiva junta, e uma visita ao local, em conjunto com os interessados – públicos e particulares.
6. Pudemos recensear, no termo das averiguações citadas, o seguinte:
a) trata-se de caminho vicinal, ou seja, compreendido no domínio público da freguesia;
b) da sua beneficiação pode resultar a classificação como caminho municipal;
c) as obras de beneficiação foram de iniciativa municipal, embora, por acordo firmado em protocolo de 25.07.2001, tenham sido executadas pela freguesia de Espite;
d) os trabalhos não obedeceram a nenhum projecto: foi simplesmente marcada uma largura de via com cerca de oito metros, compreendendo o leito pavimentado, bermas e valetas (para drenagem de águas pluviais) e, no mais, observado o traçado do caminho existente;
e) as parcelas dos imóveis adjacentes, necessárias à execução da obra, foram doadas pelos proprietários, mediante negociação protagonizada pela Junta de Freguesia;
f) no troço não executado, a beneficiação importaria especiais prejuízos ao reclamante: (a) agravamento da exiguidade do terreno fronteiro, (b) elevação de talude já com quatro metros de altura, (c) destruição de uma escada de acesso ao topo do talude, em que se encontra terreno de cota superior, propriedade do mesmo morador, e (d) diminuição da superfície útil deste último, comprometendo o seu aproveitamento, dada a extensão do corte necessário para preservar a inclinação mínima do talude;
g) a oposição do reclamante a ceder gratuitamente determinou, da parte do município e da freguesia, o termo dos trabalhos no local já identificado;
h) e, por conseguinte, as águas pluviais drenadas pela valeta, nesse ponto, escoam-se naturalmente pela via e inundam a edificação do reclamante;
i) confirma-se a aprovação municipal de instalação de um poste de iluminação pública, comparticipado pelo reclamante;
j) contudo, a execução encontra-se suspensa por entendimento diverso, afirmado pela Junta de Freguesia, quanto à justificação da sua necessidade.
7. Opõe o município de Ourém o seguinte:
a) geralmente, as obras de beneficiação de caminhos públicos dependem da cedência gratuita dos proprietários confinantes, como contrapartida da utilidade directa que retiram dos melhoramentos;
b) de outro modo, muitas destas obras ficariam sem viabilidade, considerando as contingências financeiras;
c) por contenção de despesas, bem assim, não se executam muros de contenção, antes permanecendo os taludes em bruto;
II
Da natureza das obras públicas
8. A gestão e conservação da rede viária municipal constitui atribuição dos municípios, de acordo com o previsto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, e já concretizado no artigo 2.º do Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei n.º 2.110, de 19 de Agosto de 1961.
9. As obras de beneficiação reclamadas foram custeadas pelo orçamento municipal, sob deliberação da Assembleia Municipal de Ourém, com o propósito de reclassificação do caminho vicinal como municipal.
10. A utilidade dos melhoramentos viários em estradas e caminhos reporta-se a título principal aos moradores, proprietários e rendeiros dos prédios servidos, mas nem por isso deixa de se reportar ao interesse geral do município, na articulação da própria rede municipal.
11. Interrompidos os trabalhos, encontra-se comprometida a satisfação desta última necessidade colectiva, independentemente do que entendam o município e a freguesia dever servir de consequência ao comportamento do reclamante. Nada aconselha, do ponto de vista da segurança de pessoas e bens, que a circulação num caminho municipal seja, de súbito, convertida em circulação num caminho vicinal em mau estado de conservação.
12. As obras públicas devem ser concluídas, justamente, por satisfazerem ao interesse público e não só ao interesse particular do reclamante e dos outros moradores. O interesse público – para o qual toda a actividade administrativa se deve orientar (artigo 266.º, n.º 1, da Constituição) – exige continuidade, pois é mais do que a soma das partes dos interesses particulares.
13. Por conseguinte, tratando-se de uma obra pública, a sua conclusão deve prevalecer sobre todos os juízos acerca do mérito da posição adoptada pelo reclamante.
14. Por outro lado, o mesmo comportamento do reclamante não justifica que o município se mostre indiferente ao modo como as águas pluviais são drenadas e aos prejuízos patrimoniais que lhe causam.
15. Ao município e à freguesia, note-se, compete zelar pelo interesse público, e não administrar justiça, impondo uma “sanção atípica” ao proprietário como efeito da sua conduta.
16. No limite, se a obra dependia inexoravelmente da liberalidade dos proprietários e o reclamante se mantinha irredutível, das duas, uma: ou deixava a obra de ser executada com tais condições e os terrenos seriam adquiridos a título oneroso, lançando-se mão da expropriação por utilidade pública, se necessário, ou a obra ficava por executar (o que parece indesejável, mas que só o município poderia ponderar).
III
Do comportamento do proprietário
17. Não obstante, vale a pena verificar o comportamento do reclamante. Embora no exercício do direito de propriedade privada e da faculdade de sobre o que é seu livremente dispor, poderia dar-se o caso de agir com abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) excedendo «manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
18. O acordo entre os directos interessados, como modo de aquisição gratuita de parcelas de terreno necessárias a melhoramentos de interesse público, constitui prática reiterada, não apenas no município de Ourém, como também em muitos outros municípios nacionais. Mas nem por isso corresponde ao enquadramento normativo.
19. Especificamente, para as estradas e caminhos municipais estabelece-se um concreto dever de expropriar (artigos 103.º, 105.º e 106.º do citado Regulamento), sem embargo de, nos termos do Código das Expropriações, as parcelas poderem vir a ser adquiridas por negócio jurídico ou por expropriação amigável.
20. É certo que o recurso à expropriação importa sempre encargos adicionais aos serviços, mas quando nem todos os directos interessados se encontram de acordo em renunciar aos direitos que a lei lhes concede, não se descortina outro meio que não seja o de escrupulosamente respeitar e fazer respeitar a lei.
21. Observo, de resto, que as expropriações por utilidade pública para este efeito são qualificadas como urgentes (artigo 103.º), o que poupa as entidades expropriantes a alguns encargos, designadamente, por poderem antecipar a posse administrativa (artigo 15.º, n.º 2, do Código das Expropriações).
22. Indemnizar o reclamante não representa discriminação, considerando que da expropriação por utilidade pública sempre resultaria o direito a uma justa indemnização que, de resto, obtém protecção constitucional (artigo 62.º, n.º 1, da Constituição).
23. Depois, o reclamante não se sustenta em motivos fúteis ou despiciendos para as suas objecções. Com resulta das considerações expostas, supra, a configuração dos trabalhos impor-lhe-ia encargos especiais, agravados.
24. Nada permite, pois, afirmar peremptoriamente que o reclamante se encontra em situação de abuso do seu direito.
25. No limite, e uma vez que os trabalhos se encontram parcialmente executados e consumado o facto, o que há-de ponderar-se é uma eventual compensação pecuniária a cargo do mesmo, a distribuir proporcionalmente entre os vizinhos que cederam a título de liberalidade as parcelas necessárias. Em alternativa, não seria injustificado que o reclamante contribuísse, de modo especial, nas benfeitorias que pretende sejam executadas junto da sua casa de morada. Isto, com fundamento no emprobrecimento parcialmente desaproveitado por parte dos vizinhos (artigos 473.º e seguintes, embora com adaptações, por não haver, em sentido próprio, enriquecimento sem causa)
IV
Dos danos imputados ao escoamento de águas pluviais
26. De qualquer modo, o reclamante é prejudicado no seu património muito para além da falta de continuidade no caminho, pois, as águas pluviais drenadas pela valeta são, no termo desta, escoadas arbitrariamente. Resvalam no talude e são escoadas para os terrenos de cota inferior – o imóvel do reclamante.
27. Não restam dúvidas quanto a saber que este dano é efeito necessário e directo da interrupção dos trabalhos, pois, de outro modo, as águas pluviais seguiriam o seu curso.
28. E este comportamento da parte do município é ilícito, pois, nenhuma regra de prudência comum como nenhuma regra de ordem técnica (artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967) aconselham deixar interrompido, sem mais, um sistema de drenagem de águas pluviais, com prejuízo da segurança de terceiros e do património do reclamante.
29. Verifico, pelo contrário, que o Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais, no seu artigo 44.º, §2.º, dispõe que «se, ao ser construída uma estrada, já existirem nos terrenos particulares canos, regos ou valas de desaguamento, as obras de construção deverão fazer-se de modo a que o desaguamento continue assegurado como anteriormente».
30. Por outro lado, o comportamento visado é culposo, uma vez que, confessadamente, se pretende exercer represálias sobre o proprietário por este ter recusado ceder gratuitamente as parcelas necessárias, ao contrário da generalidade dos vizinhos.
31. Ao ter criado condições para se produzir o dano e ao deixar de tomar medidas que impedissem o seu repetido agravamento, o município de Ourém não pode deixar de indemnizar o reclamante pelos prejuízos que se demonstre estarem directamente na origem das águas escoadas desregradamente.
32. Encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil dos municípios por actos de gestão pública – um dano efectivo e actual, a causalidade adequada do mesmo em actos de gestão pública, a ilicitude do acto e da subsequente omissão, a culpa (artigos 2.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro, aplicável, ex vi dos artigos 96.º e 97.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro).
33. A reparação dos danos não tem necessariamente de fazer-se por indemnização. Ao invés, a reconstituição natural é sempre preferível, podendo ter lugar em termos análogos à do caso apreciado pelo Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 16.05.2006 (proc. 1097/05):
Tendo a Câmara Municipal levado a efeito, em terreno agrícola de particular e com o seu consentimento, trabalhos de alargamento de um caminho e de pavimentação com cimento, por forma a conseguir-se a circulação pública das populações agrícolas, mas ficando o mesmo instável e apresentando risco de desmoronamento ou deslizamentos de terras, com prejuízo para a respectiva exploração agrícola, justifica-se a condenação do Município a construir um muro de suporte de terras ou um talude nos locais apropriados, como forma de evitar a ocorrência de tais danos.
34. A ratio decidendi aplica-se até por maioria de razão, pois no caso citado, como se retira do trecho transcrito, o proprietário concedera o seu consentimento.
V
Da iluminação pública
35. A Câmara Municipal superiormente presidida por V.Ex.a. concordou justificar-se a instalação do poste de iluminação pública junto à casa do reclamante. Aprovou a sua pretensão e arrecadou como receita a quantia que este dispôs para o efeito, de par com a cedência da pertinente área de terreno.
36. Ao deixar de executar a instalação, o município não pode refugiar-se em critérios ulteriores de conveniência, ainda por cima, definidos por órgão de outra pessoa colectiva pública – a freguesia de Espite – sem qualquer concreto fundamento objectivo.
37. À partida, o reclamante não tinha nenhum direito de obter a instalação de um poste de iluminação pública junto da sua casa, mas, depois de obter aprovação, de ter cedido a parcela de terreno e despendido a importância que lhe foi liquidada, constituiu-se um direito na sua esfera jurídica.
38. Os actos constitutivos de direitos ou simplesmente de interesses legalmente protegidos não podem ser revogados senão por ilegalidade e dentro do prazo para a sua impugnação contenciosa (artigos 140.º e 141.º do Código do Procedimento Administrativo), o que se aplica, mutatis mutandis, à suspensão, enquanto modo de alteração da eficácia do acto administrativo (artigo 147.º).
39. Por conseguinte, o município de Ourém tem o dever de proceder à instalação do poste de iluminação pública, quanto antes, sem se deixar vincular por um parecer da Junta de Freguesia de Espite que, além de carecer de fundamentação, exorbita manifestamente as atribuições da respectiva autarquia.
VI
Conclusões
a) O município de Ourém optou por recorrer a um procedimento contratual, confiado à Junta de Freguesia de Espite, a fim de serem cedidas as parcelas de terreno necessárias à beneficiação do caminho vicinal identificado, com vista à sua reclassificação como caminho municipal.
b) Este procedimento só poderia ser levado a bom porto com a anuência de todos os proprietários ou, de outro modo, haveria de proceder-se à expropriação por utilidade pública.
c) O reclamante, recusando-se a ceder gratuitamente aquilo que lhe foi proposto, exerce legitimamente um direito que lhe assiste e apresenta motivações que convergem com o fim económico e social dos imóveis que lhe pertencem.
d) Ao deixar as obras de beneficiação inacabadas, o município, furtando-se a pavimentar a parte sobrante e a dotá-la de um sistema de drenagem das águas pluviais, não apenas priva o interesse público geral de uma utilidade colectiva, como inflige ao proprietário um dano acrescido, ao tolerar o escoamento das referidas águas para o terreno deste.
e) Nem o município de Ourém nem a freguesia de Espite podem assumir comportamentos equivalentes ao exercício de represálias, por muito que considerem indevido o comportamento do reclamante.
f) O município incorre no dever de reparar os prejuízos que causou e vem causando ao proprietário, com a sua acção ilícita e culposa. Só depois de cumprir este dever, estará em condições de negociar com o reclamante uma contrapartida financeira a ratear pelos vizinhos que contribuíram com parcelas de terreno para a beneficiação do caminho, solução esta que nesta data sugiro seja acolhida pelo reclamante.
g) Por seu turno, suspendeu indevidamente, incorrendo em ilegalidade, o acto que aprovara a instalação de um poste de iluminação pública junto da edificação do queixoso, para o qual este contribuíra já, em numerário e em espécie.
Assim, nos termos do disposto no artigo 20º, n.º1, alínea a), da Lei n.º9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente expostas, recomendo à Câmara Municipal superiormente presidida por V.Ex.a que determine:
– a reparação dos danos produzidos no património do reclamante, começando por concluir a valeta de drenagem das águas pluviais e pela pavimentação do caminho no troço em falta; – a instalação de um poste de iluminação pública fronteiro à casa de morada do reclamante, cuja aprovação se encontra deferida e suportada materialmente pelo proprietário, seu mais directo interessado. |
Dignar-se-á V.Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues