RECOMENDAÇÃO N.º 4/A/2007
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]
[Extensão da Região Autónoma dos Açores]
Entidade visada: Presidente do Governo Regional dos Açores
Processo: R-3481/06 (Aç)
Data: 27/04/2007
Assunto: Sismo de 1998. Reconstrução. Inclusão no regime de apoios.
I
INTRODUÇÃO
1. Em Novembro de 1998, a Senhora D. «A», submeteu à Administração regional autónoma uma candidatura para que lhe fossem atribuídos os apoios previstos no Decreto Legislativo Regional n.º 15-A/98/A, de 29 de Junho, para a reconstrução da casa de que é proprietária, sita na Rua Formosa, n.º 7, Flamengos, ilha do Faial.
A queixa que veio a apresentar junto deste órgão do Estado contesta as exigências, de elementos comprovativos de que a referida moradia era a sua habitação permanente à data do sismo, tal como foram sucessivamente efectuadas no âmbito do processo n.º 122-A, Flamengos, pela Delegação da Ilha do Faial da Secretaria Regional da Habitação e Equipamentos (DIF-SRHE).
1.1. De facto, a 19 de Abril de 2005, a DIF-SRHE começou por exigir prova de que a referida habitação estava ocupada à data do sismo. Apresentada declaração da junta de freguesia nesse sentido, foi determinada a produção de prova adicional (“prova total”, como refere o ofício n.º 1031, REC, de 15 de Novembro de 2005), designadamente recibos comprovativos de água e de luz, prova testemunhal e/ou outra. Entregue recibo de electricidade, passou a ser exigida “prova documental da presença da Sra. D. «A» na ilha do Faial, em 9 de Julho de 1998, por exemplo bilhete de avião da sua ida para Lisboa, posterior à data referida, documentos médicos, prova testemunhal” (ofício n.º 135, REC, de 20 de Março de 2006).
2. Pese embora o poder reconhecido às entidades envolvidas no processo de proceder “às diligências instrutórias que entenderem por pertinentes” (n.º 2 do artigo 13.º do diploma citado), importa aferir se esta exigência probatória em cascata e sem indicação clara do fundamento do adiamento da decisão sobre a atribuição do apoio, é compaginável com os deveres de probidade e lisura que, em obediência à boa-fé, devem caracterizar a actividade da Administração.
3. Nessa medida, procedeu-se à audição da Administração regional autónoma. Os esclarecimentos prestados, através do ofício acima identificado, merecem-me as considerações para as quais peço a melhor atenção de Vossa Excelência.
II
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
4. O indeferimento da pretensão da Senhora D. «A», decidido a 11 de Outubro de 2006 (já no decurso da intervenção deste órgão do Estado), teve a seguinte fundamentação:
a) O requerimento inicial da candidatura não foi assinado pelo cabeça-de-casal da herança indivisa (em que se que inclui o imóvel em apreço);
b) Houve deserção do processo;
c) Faltou a prova de um pressuposto essencial da aplicação do Decreto Legislativo Regional n.º 15-A/98/A, de 29 de Junho.Procurarei demonstrar que tal fundamentação não decorre dos documentos constantes do processo, nem das regras de direito aplicáveis.
5. Quanto à falta de intervenção do cabeça-de-casal, a própria DIF-SRHE (na informação n.º 113/REC/GAJ/2006, de 26 de Setembro, que mereceu a concordância da tutela) reconhece que ela não é por si só, “motivo suficiente para indeferir a pretensão da requerente, uma vez tratar-se de documentação que não é exigida no diploma que estabelece os apoios a que se candidata, mas sim numa Circular cuja tramitação estabelecida deveria ter sido cumprida pelo CPR e, consequentemente, exigida à candidata aquando do início do procedimento”.
Mas não apenas por tal facto. Acresce que, por força do artigo 83.º, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), “(O) órgão administrativo, logo que estejam apurados os elementos necessários, deve conhecer de qualquer questão que prejudique o desenvolvimento normal do procedimento ou impeça a tomada de decisão sobre o seu objecto e, nomeadamente”, da questão da ilegitimidade dos requerentes.
Aliás, para evitar que o processo de obtenção de apoios fosse arquivado por motivos formais, o diploma regional de enquadramento, no seu artigo 14.º-B, veio determinar notificação dos requerentes para suprimento não apenas das irregularidades ou imperfeições do pedido (como no artigo 76.º do CPA), mas dos próprios elementos substantivos (v. alteração introduzida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 23/2004/A, de 29 de Junho).
Com o que deu forma legal ao que já constava da Resolução n.º 230-A/98, de 19 de Novembro (pontos 13 a 17), que fixa, aliás, um prazo de 60 dias sobre a data da entrega do pedido para verificação da idoneidade da documentação, e de 30 dias para novas diligências instrutórias.
Ou seja, se tivesse agido em tempo a Administração poderia ter indeferido o requerimento, mas também teria permitido a reapresentação de candidatura nos termos devidos e ainda em prazo legal.
Não o tendo feito, não pode vir, atabalhoadamente, alegar a ilegitimidade da requerente. Aliás, a própria Administração, já depois de suscitada, em informação técnica, a questão da legitimidade, veio a aceitar como interlocutora uma filha da proprietária, inclusive e incorrectamente, endereçando-lhe a correspondência depois de a mesma ter constituído como sua representante uma terceira pessoa.
5.1. Abro um breve parêntese para assinalar que, ao contrário do que parece resultar das informações que instruem o processo remetido a este órgão do Estado, da representação sem poderes não decorreria, in casu, a inexistência do requerimento inicial (subscrito pela Senhora D. «B», em nome da ora reclamante), mas apenas a ineficácia de decisão sobre o mesmo para a destinatária do apoio que viesse a ser concedido; uma eventual falta de ratificação da candidatura só teria consequências em relação a terceiros, caso aquela ratificação não ocorresse em prazo a fixar pela Administração (v. artigo 268.º do Código Civil).
6. Também não pode a Administração invocar a deserção do processo, quando ela própria deu seguimento à respectiva instrução, mesmo na aparente falta de resposta da requerente (entre 1999 e 2000 constam do processo três notificações para entrega de documentos). De facto, é possível contabilizar actuações da Administração de 1998 a 2006, o que constitui uma indicação clara de que o processo estava em instrução.
7. Finalmente, considerou o Senhor Secretário Regional da Habitação e Equipamentos que não foi provado o cumprimento de um requisito essencial para a atribuição dos apoios, qual seja o da residência permanente.
Seja-me permitido afirmar que, liminarmente, os elementos constantes do processo não autorizam tal conclusão.
De facto, entre os documentos comprovativos aceites, porque requeridos, pela Administração esteve, desde o início, o atestado de residência.
Em 21 de Fevereiro de 2001, a Junta de Freguesia dos Flamengos emitiu uma atestado declarando ser verdade que «A» tinha a sua residência naquela freguesia, há mais de seis meses.
Sublinhe-se que não está em causa qualquer restrição à liberdade de apreciação das provas reconhecida ao órgão instrutor (v. artigos 87.º e seg.s do CPA): a Administração não está obrigada a considerar verdadeiros todos os factos sobre os quais lhes sejam apresentadas provas por meios admissíveis em direito, isto é, tem liberdade de apreciação das provas (salvo nos casos de provas com valor fixado na lei).
7.1.
Mas a Administração tem de fazer a avaliação em concreto da potencialidade probatória dos meios de prova que lhe sejam apresentados, desde que esses meios sejam legalmente admissíveis (v. Ac. do STA de 9 de Novembro de 2004, processo n.º 248/03).
Dito de outra forma, “a verdade é que, em fase de instrução, a fundamentação dos juízos de apreciação da prova é (normalmente) essencial, para não dizer inerente à própria função da instrução” (v. Esteves de Oliveira, Mário e outros, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, pp. 421, Coimbra, Almedina, 1998).
7.2. Nunca foram explicitadas, nem constam do processo, as razões que levaram o Centro de Promoção da Reconstrução a concluir, em 2 de Maio de 2002, que a moradia em causa “não é regime de habitação permanente”. O que consta, de facto, é a sucessiva reiteração da Junta de Freguesia da sua primeira declaração que, ao contrário do que é afirmado, não pode ser menos inequívoca.
Como também não constam do processo as razões que levaram a Administração a não aceitar as provas que ela própria foi requerendo.
8. Ao que antecede há que aduzir o menosprezo de outras normas procedimentais, designadamente quanto aos termos em que foi suscitada a intervenção da Junta de Freguesia (v., a propósito, as criteriosas observações constantes da informação I-SRHE2006/419, do Serviço de Apoio Jurídico e Notariado Privativo da SRHE: «(Consideramos que as normas de procedimento administrativo foram menosprezadas em todo o procedimento»).
9. Sublinho que não constam do processo remetido a este órgão do Estado elementos que possibilitem uma tomada de posição do Provedor de Justiça sobre a pertinência de uma eventual decisão favorável do pedido de apoio à reconstrução em apreço, razão pela qual não sugiro a imediata concessão do apoio mas, tão somente, a reapreciação do processo, na certeza de que esta reanálise decorrerá com probidade, lisura e boa-fé.
Mas é possível afirmar que o presente processo constitui exemplo da forma como não pode ser organizada a actuação da Administração e, por conseguinte, da forma como o enviesamento procedimental conduz à diminuição do direito dos cidadãos a uma Administração que actue em “obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos.”
III
CONCLUSÕES
Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a Vossa Excelência que determine:
A. A anulação da decisão de indeferimento da candidatura aos apoios concedidos ao abrigo do Decreto Legislativo Regional n.º 15-A/98/A, de 29 de Junho (processo n.º 122-A/Flamengos), na qual é requerente a Senhora D. «A». B. Que a instrução do processo seja retomada a partir da aceitação do requerimento inicial. C. Que, sem prejuízo de questões prévias que venham a ser suscitadas, seja aproveitado o material probatório carreado para o processo em análise nesta Recomendação. |
Permito-me lembrar a Vossa Excelência a circunstância da formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues