RECOMENDAÇÃO N.º 2/B/2007
[art.º 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]



Entidade visada: Ministro da Ciência, tecnologia e Ensino Superior
Proc.º: R-1950/06
Data: 15.05.2007
Área: A6



Assunto: Acção Social Escolar. Bolsa de estudo. Cidadãos estrangeiros residentes em Portugal.



Foi-me apresentada uma exposição subscrita por determinado cidadão estrangeiro, residente há anos regularmente em Portugal, aluno de um curso de licenciatura ministrado por instituição pública de ensino superior, na qual se afirmava que, não obstante a sua qualidade de residente em Portugal, terá o mesmo sido informado, pelos competentes serviços de acção social da Universidade em causa, da impossibilidade de acesso a bolsa de estudo, por via, precisamente, da sua nacionalidade.



A este respeito, estabelecendo o Decreto-Lei n.º 129/93, de 22 de Abril, as bases do sistema de acção social no âmbito das instituições de ensino superior, reconhece como seus beneficiários, nos termos do seu artigo 3.º:



1. os cidadãos nacionais;
2. os cidadãos de Estados membros da Comunidade Europeia;
3. os apátridas ou cidadãos estrangeiros que beneficiem do estatuto de refugiado político;
4. os cidadãos estrangeiros provenientes de países com os quais hajam sido celebrados acordos de cooperação, prevendo a aplicação de tais benefícios, ou que confiram reciprocidade aos estudantes portugueses.


Verifica-se, assim, que se encontram afastados do regime de concessão de apoios sociais escolares todos os cidadãos estrangeiros que, não obstante a titularidade de documento que os habilite a permanecer regularmente em Portugal (v. g. autorização de residência ou visto de estudo), não sejam nacionais de um Estado membro da União Europeia ou de país com o qual tenha sido celebrado acordo de cooperação ou que confiram igual tratamento aos estudantes portugueses.



No tocante ao tratamento a dispensar aos cidadãos estrangeiros e aos apátridas que se encontrem ou residam em Portugal, estabelece o artigo 15.º, n.º 1 da Lei Fundamental que os mesmos “gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português”, em inequívoca concretização do princípio da equiparação de direitos e de deveres, acolhido pelo legislador constitucional naquilo a que, doutrinariamente, se usa apelidar de “tratamento pelo menos tão favorável como o concedido ao cidadão do país” (cfr. Canotilho, Gomes, Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pg. 134).



Ora tal equiparação valerá, tendencialmente, para todos os direitos, não deixando de integrar aqueles os denominados “direitos de prestação”, dos quais fará necessariamente parte o direito ao ensino, também consagrado a nível constitucional, como adiante se enunciará (ob. cit.).



Aliás, importa referir que “os direitos referidos no artigo 15.º, n.º 1 da Constituição não são apenas os direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias ou os direitos constitucionalmente garantidos, mas também os consignados aos cidadãos portugueses na lei ordinária”, daí resultando, por maioria de razão, não haver fundamento constitucionalmente legítimo para que não se proceda, neste domínio, à equiparação acolhida naquele preceito constitucional (neste sentido, Acórdão do TC n.º 72/02, proferido no âmbito do processo com o n.º 769/99).



De facto, fazendo uso da jurisprudência do Tribunal Constitucional que tem vindo a pronunciar-se sobre o axioma agora em apreço, importa ter presente que, “se bem que susceptível de excepções a ditar pelo legislador”, como acontece nas situações consagradas no n.º 2 do artigo 15.º da Lei Fundamental, o mesmo “não pode ser limitado ao ponto de desvirtuar o estatuto dos estrangeiros constitucionalmente consagrado” (neste sentido, Acórdão n.º 345/02, proferido no âmbito do processo com o n.º 819/98).



Estatuto esse que, ainda de acordo com as conclusões alcançadas, nesta matéria, por aquele órgão jurisdicional, “assenta na dignidade do homem, como sujeito moral e sujeito de direitos, como “cidadão do mundo”, havendo naqueles a incluir, também por isso, e de forma inquestionável, o direito ao ensino (cf., Canotilho, Gomes, Moreira, Vital, ob. cit., pg.135).



A ser de modo diverso, e dada a manifesta desnecessidade, desproporcionalidade e a desadequação da diferenciação operada, em moldes constitucionalmente não autorizados no artigo 15.º, acabará a mesma por violar, também, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 2, do texto fundamental, no que naquele respeita à proibição da discriminação, ao restringir um direito com base na cidadania (neste sentido, o citado Acórdão n.º 72/2002).



Por outro lado, importa referir que, de acordo com o disposto no artigo 18.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 129/93, de 22 de Abril, a acção social escolar destina-se a promover o sucesso escolar dos estudantes, “visando promover uma efectiva igualdade de oportunidades”, na senda, de resto, do postulado no artigo 73.º, n.º 1 da Constituição Portuguesa, ao proclamar-se, neste último, a universalidade do direito à educação e à cultura, na tentativa da sua democratização (neste sentido, Canotilho, Gomes, Moreira, Vital, ob. cit., pg.362).



De facto, de acordo com o n.º 2 do preceito constitucional acima invocado, o Estado deverá promover a “democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais”, designadamente com a efectivação do acesso à acção social escolar em condições de igualdade, por todos os alunos, independentemente da sua nacionalidade. Noto que essas desigualdades serão, natural e tendencialmente, mais acentuadas nas populações migrantes.



Por esta razão, e sob a epígrafe de “ensino”, postula o artigo 74.º, n.º 1 da Lei Fundamental, que “todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar”, consubstanciada, entre outros aspectos, na generalização do apoio social escolar.



Assim sendo, e fazendo uso do estabelecido na alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito, incumbirá ao Estado “garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística”, não só relativamente aos cidadãos nacionais, mas também face aos cidadãos estrangeiros que residem no nosso país, na tentativa de superação das desigualdades económicas, sociais e culturais às quais acima foi feita referência.



Na verdade, terá o legislador constitucional pretendido, com a definição dos termos em que deve vir a ser exercido, por todos os cidadãos, o direito à educação e ao ensino, levar à “criação pelo Estado, através de uma adequada política social e escolar, de apoios e estímulos que permitam o acesso de pessoas sem condições económicas às formas superiores de ensino (…) no sentido de estabelecer uma igualdade material de oportunidades” (Canotilho, Gomes, Moreira, Vital, ob. cit., pg.367).



No seguimento do artigo 76.º, n.º 1, do texto constitucional, nos termos do qual o “regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino”, vai, de resto, a legislação em vigor neste domínio, nos termos já parcialmente invocados, e que agora se reiteram.



Na verdade, prescreve o artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2003, de 22 de Agosto, que estabelece as bases de financiamento do ensino superior, que “o Estado, na sua relação com os estudantes, compromete-se a garantir a existência de um sistema de acção social que permita o acesso ao ensino superior e a frequência das suas instituições a todos os estudantes”. Tal preocupação vem a ser reiterada no n.º 2 do mesmo preceito legal, ao estabelecer-se que “a acção social garante que nenhum estudante será excluído do subsistema do ensino superior por incapacidade financeira”.



O artigo 22.º, n.º 1 do mesmo diploma, postula que as bolsas de estudo serão atribuídas aos “estudantes economicamente carenciados que demonstrem mérito, dedicação e aproveitamento escolar”.



Determina, por sua vez, o artigo 33.º que “o Estado, através de um sistema de acção social do ensino superior, assegura o direito à igualdade de oportunidades de acesso, frequência e sucesso escolar, pela superação de desigualdades económicas, sociais e culturais”.



Relativamente à matéria em discussão, e sem prejuízo da validade dos argumentos de índole constitucional e legal acima aduzidos, acresce ainda referir que, à data da publicação do Decreto-Lei n.º 129/93, de 22 de Abril, o fenómeno da imigração em Portugal apresentava contornos totalmente distintos dos actualmente existentes, porquanto tem vindo a registar-se, desde então, e de forma acentuada nos últimos anos, um aumento significativo da presença das comunidades estrangeiras no nosso país.



As mais recentes movimentações legislativas, quer as já concretizadas, no domínio da Nacionalidade, quer a que ora está em discussão no Parlamento para modificação das regras sobre as condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território português, reconhecem, como se afirmava na exposição de motivos do anteprojecto deste último diploma, que “nas últimas duas décadas assistimos a um crescimento acentuado da imigração e à sua diversificação qualitativa”, assistindo-se, deste modo, à “transformação de Portugal em País de acolhimento de fluxos migratórios significativos”, o que implicaria a criação de um estatuto jurídico que favorecesse a integração dos imigrantes na sociedade portuguesa.



Na realidade, propunha-se no artigo 83.º, n.º 1, alínea a), do projecto em causa, que “o titular de autorização de residência tem direito sem necessidade de autorização especial, designadamente: à educação e ensino”.



A dimensão meramente negativa, assegurada pela mera liberdade de aprender, não se deve apenas completar pela mera prestação de um serviço por parte do Estado, antes cabendo a este, no plano da superação das desigualdades de base, apoiar quem revele mérito e necessidade de meios económicos para o aproveitar numa formação, neste caso superior.



Deve ter-se presente que não é a situação de alunos estrangeiros, vindos dos seus países de origem para Portugal para aqui estudar, que me preocupa primeiramente. Penso, isso sim, naqueles cidadãos estrangeiros que, nascidos ou não em Portugal, aqui residiram por período significativo, porventura aqui terão sempre realizado o seu percurso escolar, básico e secundário, pertencentes a agregados familiares que aqui vivem, trabalham e pagam os seus impostos.



Creio que é manifesta a diferença entre quem, residindo no estrangeiro, requer visto de estudo para ingressar no sistema de ensino superior português, de algum modo (e nos termos do art.º 13.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar n.º 6/2004, de 26 de Abril) estando em regra obrigado a possuir meios de subsistência para se manter em Portugal, e, por outro lado, todos aqueles que, realizando a sua vida no nosso País, aqui estudando no ensino básico ou no secundário, vêem subitamente retirado o apoio no momento em que dele mais careceriam. Sempre será bizarro, para um estudante que beneficia da acção social no âmbito do ensino não superior, ver negada com base tão arbitrária essa mesma acção social quando atinge um nível de qualificação mais avançado.



As duas linhas-força publicamente assumidas, de integração das populações migrantes e de reforço da qualificação, conjuntamente com uma aplicação concatenada dos princípios constitucionais aqui invocáveis, tornam um imperativo de justiça a correcção desta situação, perniciosa em ambas as perspectivas.



Deste modo, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo ao Governo, na pessoa de Vossa Excelência, que venha a ser adoptada iniciativa legislativa,







aditando ao art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 129/93 norma que elimine esta discriminação em função da nacionalidade, designadamente passando a abranger quem, anteriormente ao ingresso no ensino superior, residiu em Portugal, integrado no seu agregado familiar, sendo titular de autorização de residência, de permanência ou título equiparado.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues