RECOMENDAÇÃO N.º 3/A/2007
(artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Setúbal
Proc.º: R-2670/04
Área: A1


Assunto: obras particulares – afastamento entre edificações – salubridade – violação de direito protegido constitucionalmente – validade do acto de licenciamento.



I
DA QUEIXA



1. XXX, pediu a minha intervenção junto da Câmara Municipal presidida por V. Ex.a., reclamando do licenciamento deferido à obra executada na Rua A, em Setúbal, e que confina, a tardoz, com o fogo arrendado em que vive.


2. Apontava que em resultado das obras, teriam ficado irremediavelmente comprometidas as condições de salubridade da sua habitação, porquanto alguns dos vãos se encontram, agora, privados do arejamento, insolação e ventilação naturais.


 


II
DAS DILIGÊNCIAS INSTRUTÓRIAS



3. Solicitada a pronúncia da Câmara Municipal de Setúbal, viriam a ser prestados esclarecimentos, posteriormente completados por reprodução parcial do processo de obra (n.º 29/99).



4. Verificou-se ter a construção sido licenciada por despacho do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, de 08.08.2000, e titulada pelo alvará n.º 480/2000, de 11.08.2000.



5. Em 22.01.2002, o requerente apresentou um pedido de alteração ao projecto de arquitectura (para acerto dos limites do terreno, remodelação do topo nascente, alteração na compartimentação interior dos fogos e redimensionamento do estacionamento).



6. Remetido o mesmo, para apreciação, ao Departamento de Habitação e Urbanismo, a técnica incumbida – Senhora Arquitecta Filipa Gil – em parecer de 20.03.2002, dava conta das reclamações do morador do prédio confinante que se queixava, sustentado em registo fotográfico, do “entaipamento” de dois vãos de iluminação. Proporia, a mesma técnica, que fosse determinado o embargo da obra “como medida cautelar“, apontando que este dado fora passado em claro pelo autor do projecto de arquitectura e responsável técnico pela obra. Alegava que a existência de uma edificação no local, entretanto demolida, poderia explicar o facto de não ter sido antes detectada a existência dos referidos vãos abertos sobre o imóvel dos requerentes do pedido de licenciamento da construção.



7. Mais tarde, o Senhor Chefe de Divisão, em parecer de 03.04.2002, pronunciar-se-ia no sentido de que tal questão seria de natureza meramente privada, a ser dirimida entre vizinhos no tribunal, propondo, por conseguinte, a aprovação do projecto de alterações.



8. Baseando-se neste parecer, foram as alterações aprovadas, por despachos do Senhor Vereador com o pelouro, de 02.05.2002 e 23.07.2002.



9. Já em resposta à Provedoria de Justiça, viria a Câmara Municipal a eximir-se de qualquer responsabilidade pelo ocorrido, sustentando dever imputar-se a mesma aos técnicos responsáveis pelo projecto de arquitectura, por não terem assinalado o edifício confinante, nem quando do pedido de licenciamento nem durante a execução dos trabalhos.



10. Informou-nos ainda ter remetido, em 03.12.2004, ao Senhor Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, uma participação criminal relativa à actuação daqueles mesmos técnicos. Com efeito, no artigo 100.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, cominam-se as falsas declarações prestadas no termo de responsabilidade com a pena prevista no artigo 256.º do Código Penal para os agentes do ilícito criminal de falsificação de documentos.



11. Esclareceu-nos, por outro lado, que em relação ao edifício lesado não existia nos arquivos municipais nenhum processo de obra, o que se explicaria pela sua antiguidade, já que teria cerca de 70 anos, anterior, por conseguinte, à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de Agosto de 1951), diploma que generalizou o licenciamento municipal obrigatório das obras de construção nos aglomerados urbanos.



12. Acrescentava só ter tido conhecimento desta situação quando, em 28.10.2003 (requerimento n.º 642/03), o reclamante lhe apresentou uma exposição relatando os factos. Em resposta a esta, prolatara-se parecer jurídico, em 02.04.2003 (?), concluindo-se que por o ilícito só ter sido verificado pelo município quando já decorrera mais de um ano sobre o acto de licenciamento da construção, não mais era possível revogá-lo, já que o desvalor jurídico a conferir-lhe seria o da mera anulabilidade, na falta de expressa previsão de nulidade (art. 135º do Código do Procedimento Administrativo).



13. Não pode deixar de se estranhar esta afirmação, quando, já no parecer da Senhora Arquitecta Filipa Gil, de 20.03.2002, se aludia à reclamação do morador no imóvel confinante.



14. A Provedoria de Justiça viria a confirmar junto da Câmara Municipal a inexactidão da data que vinha apontada para a reclamação do vizinho, e a que corresponde o citado requerimento n.º 642/03. A data correcta da reclamação não é pois a de 28.10.2003, mas sim, a de 28.01.2003, tendo esta sucedido a outras, apresentadas pelo mesmo munícipe, relativamente à mesma questão.



15. Procedi à análise exaustiva do livro de obra, cuja reprodução nos foi remetida, e observei a referência às vistorias empreendidas pelos serviços municipais de fiscalização, em 22.01.2001, em 02.03.2001, em 02.04.2001, em 30.08.2002, em 25.09.2002, em 22.10.2002, em 25.11.2002 e em 27.02.2003, sendo que em nenhum dos casos se alude à situação do reclamante, morador no fogo vizinho.



16. Realizada nova vistoria ao local, por solicitação deste órgão do Estado, os serviços municipais, em 04.04.2005, calcularam que altura do edifício reclamado atingia 15,95 metros, distando à janela do quarto de dormir do reclamante apenas 0,57 metros.



17. No âmbito das averiguações, também pedi a intervenção da Autoridade Concelhia de Saúde, solicitando-lhe que providenciasse pela realização de uma inspecção sanitária ao fogo habitado pelo reclamante.



18. Esta teve lugar em 24.08.2005, nela se concluindo:




que a habitação em causa se encontra em muito mau estado de salubridade e segurança, tendo-se verificado humidades e infiltrações nas paredes e tectos de todas as divisões das habitações (…). Com a construção do novo edifício a distância entre a janela de um dos quartos e a fachada lateral do mesmo, dista cerca de 20cm, o que diminui acentuadamente a luminosidade e a ventilação do mesmo. Na cozinha verificou-se a existência de um gradeamento colocado pelo proprietário do terraço vizinho, o que impossibilita que esta janela seja utilizada em caso de emergência, uma vez que esta também dista da janela do reclamante cerca de 20cm“.



19. Determinei a visita ao local, em 21.12.2005, por dois colaboradores meus, visita em que a Câmara Municipal se fez também representar.



20. Das nossas conclusões, transcreve-se o seguinte trecho:




Da visita à residência do reclamante, pude constatar que o edifício reclamado, aproximou uma das suas empenas com uma altura de quatro pisos, a uma distância de 0,60m, do plano da fachada lateral deste, não respeitando os vãos existentes na fachada do reclamante.



Dos vãos afectados, dois são de compartimentos de habitação – um quarto e uma cozinha – e um outro, da única instalação sanitária da residência do reclamante.



Como consequência desta obstrução, é visível a degradação dos revestimentos das paredes, tectos e pavimentos dos compartimentos afectados, resultante da ineficiente ventilação e insolação das áreas exteriores e interiores da fachada em questão.



O ambiente interior está inadequado para o fim a que se destina, com manchas generalizadas de fungos e fluorescência, as forras de madeiras apodrecidas, áreas de estuque dos tectos destruídas, redes eléctricas em riscos de curto circuito, etc., ou seja, não estão reunidas as condições de salubridade para a utilização destes compartimentos.



O vão de janela da cozinha, não estando em confronto com a empena do edifício reclamado, confronta no entanto a menos de 3 m com uma fachada deste onde existem vãos de compartimento de habitação. Para além desta grave violação do RGEU, ainda foi levantada a menos de 0,60 m uma vedação metálica no limite de um terraço – varanda do prédio reclamado, que impede a utilização exterior da janela da cozinha em causa“.



 


III
DA INVALIDADE DO LICENCIAMENTO E DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO


21. Dos factos recenseados retira-se que, na linha de demarcação entre o edifício reclamado e o prédio habitado pelo reclamante, se verificam situações que justificam a aplicação das normas do art. 73º e do art. 60º do RGEU, que dispõem imperativamente sobre afastamentos entre edificações, por referência à altura de fachadas que se oponham e à existência de vãos de compartimento de habitação.



22. Isto porque, visto da Rua B, o edifício reclamado inicia-se à estrema com uma empena que confronta com o vão de uma instalação sanitária e com outro vão que serve o quarto do edifício habitado pelo reclamante.



23. Prossegue, depois, recuando à estrema cerca de 3,10m / 3,20m, para abrir, também ele, vãos de compartimentos de habitação (cozinha e sala) que confrontam com o vão da cozinha do reclamante.



24. Na primeira “parte” da descrita confrontação dos edifícios haverá, pois, lugar à aplicação da disciplina contida no art. 73.º do RGEU – pois trata-se do confronto entre uma janela e um obstáculo à luz e ventilação naturais (uma empena).



25. No citado art. 73.º , prevê-se que as janelas dos compartimentos de habitação estejam afastadas, de qualquer obstáculo fronteiro que se lhes oponha, metade da altura desse mesmo obstáculo (contado acima do nível do pavimento do compartimento), com um mínimo de três metros.



26. Já quanto à parte do edifício reclamado onde se abrem vãos de compartimento de habitação (cozinha e sala) e que se opõem à fachada do edifício habitado pelo reclamante – e onde também se verifica a existência de um vão daquela mesma natureza (cozinha) – será de aplicar o disposto no art. 60.º, o qual obriga a guardar a distância mínima de dez metros entre fachadas de edifícios que apresentem tais características.



27. A imposição de afastamentos nos termos prescritos nos citados art. 73º e no art. 60º do RGEU, justifica-se, primacialmente, no primeiro caso, pela necessidade de salvaguardar a salubridade no interior dos edifícios, permitindo o arejamento e a iluminação naturais dos compartimentos de habitação servidos pelos vãos abertos nas fachadas. No que diz respeito ao art. 60.º, protege-se a intimidade da vida familiar contra o testemunho de estranhos.



28. O que se pretende com a imposição destes limites de afastamento é, pois, assegurar que a integração de um novo edifício no conjunto edificado – ou que se prevê edificar – seja feita de modo a não prejudicar a qualidade de vida das populações, garantindo um ambiente urbano sadio e equilibrado. Trata-se, pois, de um interesse público fundamental, na esfera de protecção da saúde pública, e não apenas de um critério funcional de ordenamento, ditado por motivos de melhor aproveitamento dos solos ou de paisagem urbana.



29. Estas normas aplicam-se, tanto às construções novas, entre si, como às construções novas relativamente às existentes, devendo ainda ser tidas em atenção quanto aos afastamentos por conta de edificações ainda não construídas nem licenciadas. Isto, porque de normas relacionais se trata.



30. Este entendimento vem sendo crescentemente afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. Assim, pode ler-se no Acórdão de 7 de Junho de 1994 (2ª Subsecção, proc. 33.836 (1)):




O art. 73º do RGEU, fixa imperativamente as condições a que deve obedecer a disposição das janelas de uma habitação e a sua distância mínima de muro ou fachada fronteiros.


Ao aprovar o projecto de construção, a Câmara Municipal não dispõe da faculdade de optar entre várias soluções igualmente válidas, antes está, nesse domínio, adstrita à observância desse preceito.


Situamo-nos pois no âmbito da vinculação legal, isto é, a Câmara exerce um poder vinculado(…)


O art. 73º é uma norma destinada a fixar os espaços livres e estes resultam de uma relação, de uma posição relativa das construções.


Não faria por isso sentido que, em nome de interesses como a insolação e o arejamento, se proibisse a abertura de uma janela a menos de 3m da parede fronteira, para logo depois se permitir a construção de um muro ou parede que não respeitasse essa distância.


Porque de norma relacional se trata, a sua observância impõe-se quando do licenciamento de qualquer das construções, seja a que tem os vãos ou a da parede cega.


O preceito é assim aplicável quer às novas construções, quer tendo em atenção as já existentes“.



31. Mais recentemente este entendimento seria sufragado por Acórdão de 17 de Junho de 2003 (2ª Sub., proc. 01854/02), nos termos que se transcrevem:




a preocupação do RGEU é o interesse público na existência de um ambiente urbano sadio e equilibrado, o que passa pela salubridade das habitações, designadamente, no que respeita à iluminação, ao arejamento, à exposição solar e aos espaços livres entre as edificações. O urbanismo e o ambiente estão, de facto, ligados, e hoje ainda mais, pois coabitam intimamente nos espaços rurais e urbanos. O urbanismo qualificou-se, visto que muitas das suas normas se viraram para a defesa do ambiente, para a valorização, protecção e recuperação do património histórico, das paisagens, criação de zonas verdes e o ambiente voltou-se para a cidade, combatendo a poluição, incrementando a qualidade das edificações, criando e valorizando espaços naturais. A própria Constituição da República consagrou esta estreita relação no artº66º , consagrando um “direito do ambiente urbanístico” ou um “direito do urbanismo ecológico”, com vista à “promoção da qualidade ambiental das povoações e da vida urbana“. (Vide, a este propósito, Prof. Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, p.77 e seguintes) O RGEU, já em 1951, adivinhava esta evolução e foi um passo importante para a mesma. (…)


O que está subjacente às normas do RGEU sobre edificações urbanas é, como resulta do respectivo preâmbulo, evitar que se erijam edificações em terrenos acanhados e de conformação deficiente, é a ideia de que cada edificação deve ser encarada como mera parte de um todo, em que se terá de integrar harmoniosamente, valorizando-o tanto quanto possível, é evitar que os edifícios se aproximem tanto dos limites dos respectivos terrenos, que a qualidade urbana seja prejudicada no seu conjunto, é assegurar uma certa qualidade de vida às populações, é, afinal, o interesse público em garantir o direito a um ambiente urbano minimamente sadio e a um urbanismo ecologicamente equilibrado.


O artº73º situa-se no domínio das restrições impostas pelo direito público ao direito de propriedade, com base no interesse público – da salubridade e estética das edificações (…)


As normas do RGEU salvaguardam interesses mais amplos que os garantidos pelas normas civilistas que protegem o direito à privacidade do proprietário vizinho, na medida em que impõem respeito pela vida e haveres da população e pelas condições estéticas do ambiente local de modo a tornar a vida das populações mais sadia e agradável. Quer dizer, a observância das normas que respeitam à segurança e salubridade das edificações, à estética local, enfim, ao ambiente urbano, acaba por interessar a todos e a cada um. (…)


As normas do RGEU não disciplinam relações de vizinhança, antes tutelam primacialmente os referidos interesses públicos. (…)


(…), as normas do RGEU relativas a edificações devem ser interpretadas conjugada e actualisticamente, tendo presente a evolução sofrida pelo direito do urbanismo e pelo direito do ambiente, a sua consagração constitucional e as relações íntimas entre eles.


Sem dúvida, que o artº73º é uma norma relacional (neste sentido, entre outros, o c. STA de 07.06.94, rec.33 836), ou seja, atende à posição relativa das construções confinantes, exigindo a observância de determinadas distâncias mínimas entre elas, por razões que se prendem com a necessidade de assegurar as condições de iluminação, arejamento e insolação a que se alude na norma geral do artº 58.


E, por assim ser, tais normativos aplicam-se quer às construções novas entre si, quer às construções novas relativamente às já existentes. Nem, com o devido respeito, faria sentido que fosse de outro modo. (…)


Sendo irrelevante, dado o interesse público em jogo, já referenciado, que a edificação a construir seja uma empena cega (sem aberturas), pois não está aqui em causa a devassa do prédio vizinho. Como irrelevante é que a construção prejudicada já exista, pois já vimos que estamos perante normas relacionais“.



32. Na defesa da natureza relacional ou bilateral também da norma do art. 60º do RGEU, já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 21 de Outubro de 1999 (1ª Sub., proc. 37.337, in Apêndice – Diário da República, I, 23.09.2002, págs.5857 e ss.)



33. Concordará comigo que na apreciação do licenciamento importava ter garantido condições de igualdade proporcional na repartição deste tipo de encargos, defendendo, por um lado, os legítimos interesses do primeiro construtor, mas obstando, ao mesmo tempo, à imposição de sacrifícios inúteis ou irrazoáveis ao posterior.



34. A presenciada abertura, no edifício habitado pelo reclamante, de vãos de compartimento de habitação à estrema, está justificada pelo facto de o mesmo ter sido construído antes da entrada em vigor do citado RGEU.



35. Merecendo, por tal facto, protecção que não mereceria se de obra ilegal se tratasse (o que aconteceria se se houvesse provado que aquelas aberturas haviam sido realizadas em desrespeito do regime legal instituído), haveria, pois, que ter encontrado uma solução que equilibrasse os interesses públicos e privados em confronto.



36. Embora tenha o senhorio do reclamante procedido legitimamente a uma abertura, à estrema, de vãos de compartimento de habitação (quarto e cozinha), entendo que não seria justo nem razoável exigir-se ao proprietário do edifício reclamado que assegurasse, como seu encargo, o cumprimento integral do afastamento imposto pelo art. 73º (na parte em que a sua empena confronta com o vão de um quarto) e pelo art. 60º (na parte em que se observa a confrontação entre fachadas em que ambas possuem vãos de compartimento de habitação).



37. Isto, para mais, ante a perspectiva de poder vir, no futuro, o proprietário do imóvel em que se encontra implantado o edifício habitado pelo reclamante a optar pela demolição do mesmo, seguida de nova construção. Neste caso, beneficiaria, sem razão bastante, da possibilidade de, novamente, construir até à estrema, ali abrindo vãos de compartimento de habitação e beneficiando toda a área do seu terreno, por ter sido o encargo com a distância integralmente suportado pelo vizinho.



38. Solução equilibrada e justa, afigura-se-me que seria a de ter exigido ao construtor do edifício reclamado que recuasse, nos limites do seu prédio, metade dos afastamentos determinados no art. 73º (na parte em que a sua construção se desenvolve em empena) e pelo art. 60º do RGEU (na parte em que de fachada com vãos de compartimento de habitação se trata).



39. Assim se acautelaria a protecção dos níveis mínimos de higiene, salubridade e privacidade do edifício, sem um encargo excessivo sobre o prédio onde se executou a nova edificação.



40. Assim se garantiria, também, a bilateralidade das imposições resultantes das citadas normas legais, assegurando ao prédio lesado a possibilidade de nele vir a demolir e a construir em condições muito aproximadas.



41. Mas assim não se fez, tendo a solução arquitectónica, de encosto da empena ao vão do quarto do reclamante, comprometido, irremediavelmente, a higiene e salubridade daquela habitação e das que lhe são contíguas.



42. Por seu turno, ao permitir-se a abertura de vãos de compartimento de habitação no edifício reclamado, à distância de pouco mais de três metros à estrema, causaram-se prejuízos imediatos à intimidade da vida familiar do reclamante, como também se impossibilita que no prédio venha, de futuro, a construir-se novo edifício com a abertura de vãos de compartimento de habitação àquela mesma distância da estrema. É que, se tal viesse acontecer, revelar-se-ia desrespeitado o distanciamento mínimo de dez metros, imposto no art. 60º do RGEU.



43. Concluo, pois, que deveria a Câmara Municipal de Setúbal ter indeferido o pedido de licenciamento do prédio reclamado, por se revelarem desrespeitadas as citadas normas dos art. 73º e art. 60º do RGEU.



44. O indeferimento imposto às câmaras municipais pelo art. 63º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, ao tempo aplicável (2), constituía um poder vinculado, encontrando-se obrigadas a recusar pedidos de licenciamento desconformes com as normas legais regulamentares em vigor. As citadas normas do RGEU são porventura as mais elementares, no que toca à implantação.



45. Tenha V. Ex.a. presente que as regras em análise têm por finalidade defender o interesse público na higiene e salubridade das edificações e na protecção da intimidade da vida privada, por forma a assegurar uma habitação condigna, objectivo constitucionalmente assinalado a todos os poderes públicos (artigo 65.º, n.º 1).



46. O licenciamento do edifício reclamado não protegeu, minimamente, como se viu, esses mesmos interesses.



47. Resta saber qual o valor jurídico negativo a reconhecer à licença de construção que infrinja disposições legais imperativas como estas – se a nulidade, mais gravosa e invocável a todo o tempo (3), se a anulabilidade, menos grave e, por isso, contingente, enquanto sujeita, nos prazos legalmente prescritos, à decisão de revogação ou à propositura de acção administrativa especial (4).



48. Se o princípio geral é o da anulabilidade (art. 135.º), no art. 133º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo, cominam-se com a nulidade “os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental“.



49. O regime dos direitos, liberdades e garantias, configurado nos artigos 17º e 18º da Constituição, aplica-se, não só aos direitos fundamentais incluídos no Título II – que tem uma epígrafe correspondente – mas também aos direitos fundamentais de natureza análoga.



50. Ora, no art. 66º, n.º 1, da Constituição, é a todos reconhecido o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.



51. Inscreve-se, pois, na lei fundamental, o direito de exigir a abstenção, por parte da Administração Central, das autarquias locais e de terceiros, da prática de acções lesivas do ambiente e o correlativo direito de as ver repelidas e obtida reparação pelos prejuízos imputados a essa violação (5).



52. A Constituição não se basta com o reconhecimento do direito ao ambiente, impõe também um dever de sua defesa (n.º 1, in fine). Assume, pois, a dupla perspectiva: (a) da proibição de atentar contra ele (b) da permissão de reagir face aos atentados praticados por outrem.



53. Pressupõe-se, aqui, a existência de um interesse colectivo, por se revelar o ambiente um dos elementos que contribuem para a qualidade de vida.



54. Na defesa do direito ao ambiente como direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias pronunciam-se, entre outros, José Joaquim Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Coimbra, 2007, p. 845, sublinhando o facto de a sua primazia justificar certas restrições do direito à “liberdade de construção potencial” impondo-lhe “ónus ou restrições socialmente adequadas“.



55. O artigo 66º da CRP confere, pois, aos cidadãos, concretos direitos subjectivos, a que correspondem deveres de protecção da Administração Pública.



57.O acto administrativo de licenciamento de obra está, pois, adstrito ao respeito pelo núcleo essencial do direito ao ambiente, segundo as circunstâncias do caso concreto.



58. Deverá, assim, avaliar-se, em cada uma das situações submetidas à apreciação, se o acto respeita aquele mínimo sem o qual esse direito fundamental não pode subsistir.



59. Pode ler-se em Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, de 25.05.1990 (6):




Deve entender-se o direito ao ambiente como um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (…) na parte e medida em que se traduz num direito à abstenção por parte do Estado, de acções perturbadoras e ou atentatórias do ambiente.


Essa analogia pode ainda fundamentar-se numa certa relação de meio a fim, entre o direito ao ambiente, como direito fundamental de natureza social e de prestação negativa, e o direito à vida, também direito fundamental, e incluído entre os direitos, liberdades e garantias.


Nesta perspectiva, defender o ambiente tem sentido como meio de garantir o direito à vida (…).


Assim sendo – cfr. o artigo 17º da Lei Fundamental -, esse preceito (o referido artigo 66º da Constituição da República) é directamente aplicável e vincula o Estado e demais entidades – artigo 18º, nº 1.


O acto administrativo que viole direitos, liberdades e garantias ou direitos sociais que devam ter o mesmo regime daqueles, não pode ter tratamento mais benévolo do que uma lei que se ocupasse da mesma matéria em desrespeito da Constituição.


Como este Conselho Consultivo tem entendido, e se escreveu, p.ex., no parecer nº 26/78, de 16 de Março de 1978 (7):


“Por força do artigo 18º, nº 1, da Constituição da República os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. Quer dizer: as normas que reconhecem os direitos fundamentais são regras jurídicas vinculativas de todos os órgãos do Estado e o poder executivo terá de actuar de forma a proteger e impulsionar a realização concreta dos mesmos direitos (-). Por outras palavras ainda, todas as autoridades encarregadas de aplicar o direito podem e devem dar operatividade imediata às normas constitucionais.


“É, afinal, a aplicação do princípio fundamental da não contradição da ordem jurídica, que postula a validade exclusiva das normas hierarquicamente superiores, ou seja, das normas constitucionais.


(…)


Na sequência do exposto, tanto basta para se qualificar de nulidade, e não de mera anulabilidade, o vício dos actos administrativos que violem, nos precisos limites atrás apontados, o referido preceito fundamental.



60. E conclui o citado Parecer que violam o art. 66º da CRP “os actos administrativos atentatórios do ambiente que não respeitem o conteúdo essencial desse direito, isto é, aquele mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir” sendo, portanto, nulos.



61. Defende, por seu turno, Diogo Freitas do Amaral (8), a necessidade da consideração do que designa “nulidades por natureza” e que entende consubstanciarem-se nos casos em que, por razões de lógica jurídica, o acto não pode deixar de ser nulo, por se revelar totalmente inadequado o regime da simples anulabilidade. Aponta como tais, e entre outros, os “actos que violem os direitos fundamentais do cidadão em face da Constituição“, por quanto a eles existir direito de resistência nos termos previstos no art. 21º da CRP (9).



62. Com especial interesse para a apreciação do caso que agora nos ocupa, atentemos, agora, na doutrina que emana do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1ª Sub., de 26.10.2000 (10).




o art. 133º, n.º 2, alínea d) do CPA fulmina com a nulidade “os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”.


Estão seguramente dentro da previsão legal desta norma a violação dos direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I da CRP, bem como os direitos de caracter análogo àqueles espalhados pela Constituição (“direitos fora do catálogo”) ou mesmo que se encontrem fora da Constituição, com assento em norma de direito internacional (ou comunitário) ou em lei ordinária (art. 16º, nº 1 da CRP) (…).


Poderão estar dentro de igual previsão a violação dos direitos económicos, sociais e culturais do Título III da mesma Lei Fundamental e os respectivos direitos análogos, entre os quais se encontram os direitos ao ambiente e à qualidade de vida (art. 66º da CRP), por força do seu art. 16º, nº 1, desde que tenham sido objecto de concretização legislativa e os actos que violam tais direitos afectem o seu “conteúdo essencial” ou o seu “núcleo duro”.


Quer dizer, o direito à qualidade de vida tem de ser entendido, neste sentido, como um bem jurídico objectivo sem “contudo abstrair do facto de se tratar sempre de direitos fundamentais com sujeito”.


E assim, só haverá violação do “conteúdo essencial” ou do “núcleo duro” do direito fundamental, quando o acto administrativo restritivo praticado tenha um tal impacte que não deixe qualquer sentido útil ao direito fundamental, isto é, não há possibilidade de este, depois de restringido, poder desempenhar a sua finalidade.



63. Se dúvidas restarem quanto à essencialidade do conteúdo atingido, vale a pena ter presente que a exposição à luz solar é componente fundamental do direito a um ambiente sadio: Todos têm direito a um nível de luminosidade conveniente à sua saúde, bem-estar e conforto na habitação… (artigo 9.º, n.º 1, da Lei de Bases do Ambiente).



64. Se justamente o mínimo de três metros é estipulado imperativamente no artigo 73.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas como a protecção mínima para salvaguarda da exposição à luz solar, não há como deixar de concluir que a violação deste preceito lesa os padrões mais elementares do direito a um ambiente sadio (art. 66.º, n.º 1, da Constituição).



65. Sublinha-se a grave situação de insalubridade encontrada no fogo habitado pelo reclamante – que se revela, agora, praticamente inabitável – e o facto de se ter concluído que esta derivava do admitido encosto da empena do prédio reclamado a um dos vãos de compartimento de habitação que o servem. Sou, por conseguinte, levado a concluir pela nulidade do acto de licenciamento desta construção por violação do conteúdo essencial do direito ao ambiente.



66. Importa, todavia, considerar as consequências que uma eventual declaração de nulidade do acto de licenciamento municipal em causa comportaria.



67. Como se sabe, o acto nulo é, por definição, insusceptível de produzir efeitos jurídicos sólidos, já que a nulidade pode ser arguida a todo o tempo, e pode ser oficiosamente declarada também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal (11).



68. Pedro Gonçalves e Fernanda Paula Oliveira, em estudo dedicado à nulidade dos actos de gestão urbanística (12), maxime das licenças, chamam a atenção, contudo, para a necessidade de uma rigorosa ponderação na aplicação deste regime:




O princípio da improdutividade jurídica dos efeitos típicos do acto não elimina (…) toda a sua produtividade, já que não se trata apenas de uma aparência de acto administrativo. E isto é particularmente evidente quando os actos administrativos em causa são actos de gestão urbanística que investem o particular no poder de realizar operações urbanísticas pois, ao abrigo deles, mesmo que nulos, tais operações podem consolidar-se efectivamente: podem ser operações de loteamento e respectivas obras de urbanização que se efectivam, construções que se edificam e que se consolidam, passando a ser utilizadas pelos titulares das respectivas licenças ou por terceiros adquirentes.



69. Atente-se, ainda, que vem o art. 134º, nº3, do Código do Procedimento Administrativo, admitir o reconhecimento de efeitos putativos ao acto nulo – por força do decurso do tempo e de harmonia com os princípios gerais de direito.



70. Não pode, pois, no caso que agora nos ocupa, deixar de merecer a devida atenção o lapso de tempo já decorrido desde a prática dos actos de licenciamento da construção e sua utilização, bem como o facto de, segundo foi dado a conhecer na visita efectuada, já se encontrarem habitadas algumas das fracções, e não ter dados que levem a concluir que os seus ocupantes não sejam terceiros de boa fé, que se assumem nesta relação multipolar como contra-interessados com interesse legítimo na manutenção destes actos.



71. Não me parece, outrossim, que uma eventual declaração de nulidade das licenças concedidas, com a consequente sujeição da obra reclamada ao regime das obras ilegais (susceptíveis de vir a ser objecto de ordem de demolição com o conteúdo e alcance necessário à sua conformação com a legalidade urbanística) seja a solução mais consentânea com a defesa do interesse público que agora importa acautelar.



72. Isto, porque, antes de declarar a nulidade, cumpre a quem dispõe dessa competência ponderar, pesando todos os inconvenientes e benefícios que a decisão comporta para a esfera dos interesses que se pretendem acautelar.



73. No caso, admito que poderia ser excessiva tal solução, na medida em que se descortinam outras possibilidades de restituir ao fogo prejudicado as condições mínimas de salubridade.



74. O que interessa é, pois, verificar se existe uma outra solução que, mantendo intocável a licença de construção concedida, salvaguarde o direito do residente no prédio vizinho a nele habitar condignamente, o mesmo é dizer, em condições de higiene e salubridade suficientes.



75. Para o efeito, não é de excluir como solução aquela que se descreve e se complementa pelo esboço da habitação do reclamante.



Tendo em conta eventual correcção das condições de habitabilidade da residência do reclamante, sugiro as seguintes acções :




a) a introdução de um sistema de renovação e ventilação mecânica da Instalação sanitária.



b) a eliminação do vão do quarto, transformando-o num espaço de arrumo interior, ou reunir este ao espaço contíguo da cozinha, transformando como área adicional desta.



c) a construção de uma nova janela na parede da chaminé, perpendicular à fachada em causa, e o encerramento do vão de janela fronteiro aos vãos de compartimentos de habitação do edifício reclamado.



d) a reconstrução dos elementos construtivos e redes de abastecimentos, dos revestimentos e acabamentos interiores dos compartimentos degradados da residência do reclamante, bem como dos revestimentos e acabamentos do telhado e da fachada em causa.



76. Tratando-se o local habitado pelo reclamante de fogo arrendado, estas intervenções sempre teriam de obter o consentimento prévio do senhorio.



77. Assim, e no caso de tal não se afigurar possível, por se desconhecer a identidade do senhorio (13), ou por este não prestar a devida e necessária autorização, deverá o município de Setúbal ponderar o realojamento do munícipe/prejudicado



78. Qualquer um destes meios apresenta-se-me como manifestamente vantajoso para o interesse público (acautelando, do mesmo passo, a defesa dos direitos do particular/prejudicado), quando comparado com a situação que se seguiria à declaração da nulidade da licença de construção com a consequente alteração da obra nos termos necessários para acautelar a salubridade da edificação confrontante, e concomitante obrigação de ressarcir todos os lesados pelos múltiplos e relevantes prejuízos que tal acção iria causar.



79. E é ao município de Setúbal que incumbe assumir, em primeira linha, a responsabilidade pelos danos, em face do regime da responsabilidade civil extracontratual, pelos prejuízos a imputar aos actos de gestão pública, conforme o disposto no Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967 (14) e pelo no artigo 52º n.º 3 e n.º 5 do já citado Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro(RJLMOP) (15).



80. Aqui se prevê, que possa(m) o(s) lesado(s) fazer valer o seu direito ao ressarcimento pelos danos sofridos em consequência de actos (ou omissões) ilícitos, causados culposamente, por órgãos ou agentes administrativos, no exercício das suas funções e por causa desse exercício.



81. Considera-se no artigo 6º do citado Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, como ilícitos: os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.



82. Tem vindo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo a admitir que a obrigação de indemnizar depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: facto, ilicitude, culpa, nexo de causalidade e dano, isto por referência ao que se dispõe no art. 483º do Código Civil (16).



83. No que respeita à ilicitude, a conduta do agente geradora do dano tanto pode consistir num comportamento positivo como numa omissão, ou seja, desde que exista o dever legal de actuar, a omissão dos actos devidos é susceptível de gerar obrigação de reparação do dano causado.



84. A ilicitude da conduta da Câmara Municipal de Setúbal residiu no consentido desrespeito pelas normas dos artigos 60º e 73º do RGEU, maxime deste último, tendo causado ao reclamante um prejuízo intolerável para as condições de higiene e salubridade do fogo que habita.



85. Com referência à culpa, o artigo 4º do Decreto-Lei n.º 48.051 de 21 de Novembro de 1967, remete expressamente para o critério estabelecido no artigo 487º do Código Civil – a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (n.º 2), competindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão salvo havendo presunção legal de culpa (n.º1).



86. A culpa, como ensinou João de Antunes Varela (17), significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E essa conduta será reprovável quando o lesante em face das circunstâncias concretas da situação podia e devia ter agido de outro modo.



87. Há-de ser tida em conta, neste particular, a doutrina do Acórdão do STA, de 04.12.2003 (Processo n.º 557/03): perante a noção de ilicitude que consta do artº 6º (18) – sobretudo na parte final – fica, neste domínio, reduzido o campo de operatividade autónomo do conceito de culpa.



88. Ou seja, entende-se que se não ocorrer relevante justificação, será reprovável e, por conseguinte, culposa, a conduta da Administração que se apresente como violadora da lei.



89. Isto porque, encontrando-se a Administração Pública sujeita a uma especial obrigação de actuar em obediência à lei (de acordo com o princípio da legalidade inscrito no art. 3º do Código do Procedimento Administrativo), o elemento culpa dilui-se na ilicitude quando, através da prática de um acto administrativo ilegal, é violado o dever de boa administração.



90. E não se retira dos elementos carreados para a Provedoria de Justiça que tenha ocorrido justificação atendível para o comportamento assumido pela Câmara Municipal de Setúbal, como não se me afigura justificado o alegado desconhecimento da situação com a consequente tentativa de transferência integral da responsabilidade pelo ocorrido para os técnicos responsáveis pela obra.



91. Pesam as sucessivas queixas apresentadas pelo munícipe prejudicado e a chamada de atenção para o problema feita em informação técnica subscrita pela Arquitecta Filipa Gil, já em 20.03.2002, isto por contraponto à omissão de reparo nas repetidas acções de fiscalização feitas à obra e a singela conclusão de que o assunto deveria entender-se confinado a uma questão de vizinhança.



92. Recorde-se o que escreveram Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao art. 563º do Código Civil (19):




A disposição deste artigo, pondo a solução do problema na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, mostra que se aceitou a doutrina mais generalizada entre os autores – a doutrina da causalidade adequada – que o Prof. Galvão Teles formulou nos seguintes termos: «Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar».



 


IV
CONCLUSÕES


A – O acto de licenciamento municipal, ao abrigo do qual, se executou a obra reclamada mostra-se nulo, por verificada violação do conteúdo essencial (um mínimo de exposição à luz solar) de um direito fundamental com natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (artigo 66.º, n.º 1, da Constituição).



II – A declaração de nulidade desse acto, com as necessárias consequências deve porém ser sopesada, verificados os interesses em contraponto e encontradas soluções que se revelam aptas a garantir, mau grado a manutenção do acto, a protecção do conteúdo essencial do direito que a Constituição pretende ver assegurado.



III – A execução de obras no fogo tomado de arrendamento pelo queixoso ou o seu realojamento, apresentam-se, pois, como compromissos possíveis e razoáveis, em alternativa à declaração de nulidade do acto de licenciamento da construção à inexorável demolição.



III – Incumbe ao município de Setúbal prover, em primeira linha, pela satisfação dos interesses do munícipe prejudicado, porquanto não logrou provar, como lhe competia, não se encontrarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, por danos causados por acto de gestão pública. Isto, sem prejuízo de poder reagir contra o reclamado particular.



Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), RECOMENDO ao município de Setúbal, superiormente representado por V.Ex.a., a assunção do dever de reparação dos danos verificados na edificação identificada, procedendo a obras de correcção e alteração (tecnicamente possíveis) ou provendo ao realojamento do morador em termos condignos.



Mais solicito a V. Exa. que se digne mandar inquirir das razões por que as sucessivas vistorias empreendidas pelos serviços municipais nunca detectaram nada a propósito da situação reclamada (vd. ponto 15).



Dignar-se-á V. Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues



Anexo:
peça desenhada.



  


 







Notas de rodapé:


(1) Publicado no Apêndice ao Diário da República, de 31.12.1996, Vol. III (Junho), págs. 4621 e segs Neste mesmo sentido, Acórdão do STA, 1ª Sub., de 8.07.1999, Proc. 044785, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 9.09.2002, págs. 4708 e segs; Acórdão do STA, 2ª Sub., de 17.06.2003, Proc. 01854/02.
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(2) Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares, na redacção do Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro e pela Lei n.º 22/96, de 26 de Julho.
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(3) art. 134º do Código do Procedimento Administrativo.
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(4) art. 135º e art. 141º do Código do Procedimento Administrativo.
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(5) J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pp. 346 e ss..
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(6) Parecer nº 36, de 1989, Colectânea de Pareceres, Volume III, pag. 421 e Diário da República, nº 120, II série, pp. 5596 e ss..
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(7) Publicado no e no Boletim do Ministério da Justiça, nº 281, pp. 103 e no Diário da República, nº 145, II série, de 26.06.1978.
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(8) Direito Administrativo (Lições), Vol. III, 1985, pp. 310 e ss..
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(9) Na defesa do acto administrativo inconstitucional como acto nulo vide, também, MARCELO REBELO DE SOUSA , O valor Jurídico do Acto Inconstitucional, Vol. I, 1988, pp. 332.
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(10) Apêndice ao Diário da República, 12.02.2003, Vol. I (Outubro), pp. 7646 e ss..
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(11) artigos 134, n.º 1 e n.º 2, 137, n.º 1, e 139, n.º 1, a), todos do Código do Procedimento Administrativo.
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(12) O regime da nulidade dos actos administrativos de gestão urbanística que investem o particular no poder de realizar operações urbanísticas, in Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, 1999 (2), p. 17.
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(13) Informou o reclamante que vem efectuando o depósito da renda em instituição bancária por desconhecimento da exacta pessoa do dono do edifício.
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(14) Regula a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública .
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(15) Esta matéria encontra-se presentemente tratada no art. 70º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, que aprovou o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação e revogou o Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro.
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(16) Acórdão do STA, 1ª Subsecção do CA, de 04.12.2003, Proc. 557/03; Acórdão do STA, 3ª Subsecção do CA, de 19.01.2005, Proc. 1325/03.
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(17) Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª ed. p. 531 e segs..
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(18) Do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967.
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(19) Código Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição.
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