RECOMENDAÇÃO N.º 12/A/2006
[artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]
Entidade visada: Presidente do Conselho de Administração Estradas de Portugal, E.P.E.
Proc.º: 3970/05
Data: 22-09-2006
Área: A1
Assunto: direito de propriedade privada – expropriação pelo sacrifício – estradas nacionais
§1.º
Dos factos
1. Na sequência dos esclarecimentos prestados a coberto do ofício identificado supra subsistem controvertidas algumas questões que creio vale a pena esclarecer, sobretudo, por se descortinar o entendimento de nada haver a ressarcir ao reclamante, entendimento esse que constitui para este órgão do Estado motivo para objecções e para formular ao Conselho de Administração da EP-Estradas de Portugal, EPE, a presente Recomendação.
2. Recorde-se que o queixoso é proprietário dos prédios denominados Almoínhas e Pedregulhal, sitos na freguesia de Alfarelos, concelho de Soure, e que, sistematicamente, se vê impedido de neles construir por se prever a necessidade de atravessamento por uma futura variante à Estrada Nacional n.º 347, no lanço Montemor-o-Velho/ Ameal (Arzila).
3. A conclusão segundo a qual nenhum direito assiste ao proprietário parece tomar por base a informação de que ainda não haveria estudo prévio ou projecto aprovado, o que, de acordo com os elementos obtidos, não cremos confirmar-se.
4. Na verdade, o desaproveitamento do terreno mantém-se, há mais de 12 anos, pois, logo em 28.04.1994, o proprietário viu-se impedido de empreender uma operação de loteamento, segundo parecer emitido da ex-Junta Autónoma de Estradas, precisamente, com fundamento num estudo prévio.
5. Pouco tempo depois, em 13.05.1994, terá sido aprovado o projecto de execução da Estrada Nacional n.º 347 entre Montemor e Alfarelos pelo Senhor Director dos Serviços Regionais de Estradas do Centro, com a subsequente aprovação da planta parcelar e do mapa de expropriações em 08.08.1994, por despacho do Senhor Vice-Presidente da JAE.
6. De novo, em 21.08.1995, o reclamante viu parcialmente indeferidos, pela Câmara Municipal os pedidos de informação prévia, com base unicamente nos pareceres desfavoráveis da ex-JAE .
7. Segundo informação prestada pela Direcção de Estradas de Coimbra, a parcela de terreno será ainda afectada pelo troço do ramo F, do lanço Montemor-o-Velho/Arzila (2.ª fase) segundo estudo prévio aprovado.
8. Porque a parcela de terreno é marginada pela EN 347, entretanto desclassificada, encontra-se ainda condicionada pelas restrições à edificação impostas pelo Decreto-Lei n.º 13/71, de 23 de Janeiro.
9. O reclamante considera-se lesado, ora por não poder levar a cabo a operação urbanística, ora por não ter início o procedimento de expropriação por utilidade pública. E parece-me ter razão.
§2.º
Dos efeitos antecipados de uma expropriação incerta
10. Reconhecerá V. Ex.a. que, ao fim e ao cabo, o proprietário sofre antecipadamente todos os efeitos de uma expropriação por utilidade pública sem que esta tenha sido declarada. Todos menos um – precisamente, a justa indemnização a que teria direito. Não custa admitir que se trata de um prejuízo especialmente gravoso e que contrasta com todas as garantias concedidas pela Constituição e pelo Código das Expropriações aos proprietários contra actos ablativos do património.
11. Logo, e por natureza, o aproveitamento do prédio não está ao seu alcance, pois só o Estado e a EP – Estradas de Portugal, EPE, podem fazer cumprir a função a que o destinou.
12. Numa visão estrita e puramente formal da ordem jurídica, que não se compagina com um Estado de direito democrático, admitir-se-ia que esta situação se perpetuasse até que a EP – Estradas de Portugal – EPE, viesse a abrir mão da classificação do espaço ou viesse a executar a estrada prevista, adquirindo o imóvel.
13. Contudo, nem os princípios gerais de direito nem os imperativos éticos de boa administração podem deixar o aplicador do direito indiferente. E, muito em especial, o Provedor de Justiça, a quem cumpre, por natureza e imperativo constitucional, procurar junto dos poderes públicos as soluções que se mostrem mais justas sem prejuízo para o interesse público (artigo 21º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril).
14. Um exercício não fútil – decerto – é procurarmos situar-nos na situação do proprietário, privado há mais de uma década de fruir de um terreno que se destina incertus an e incertus quando a um fim de interesse público. Tudo isto, sem a menor retribuição ou compensação, no todo ou em parte, pelos lucros cessantes.
15. Pelo contrário, vê-se obrigado a cumprir pontualmente as obrigações tributárias que decorrem da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel.
§3.º
O direito à expropriação como direito fundamental em sentido material
16. De tal modo a ordem jurídica não é indiferente a esta situação que a tomou em linha de conta para o caso das estradas nacionais, no artigo 165º do respectivo Estatuto (Lei n.º 2.037, de 19.08.1949) e para o caso das estradas e caminhos municipais, no artigo 106º do pertinente Regulamento (Lei n.º 2.110, de 19.08.1961).
17. Em ambos os preceitos admite-se que, decorrido um determinado lapso de tempo, ao proprietário assiste o direito a ser ressarcido e o direito de lhe ver expropriado por utilidade pública o imóvel que, para o seu património, perdeu utilidade.
18. Trata-se de direitos – perante estes pressupostos – em tudo análogos aos direitos fundamentais que gravitam em torno da propriedade privada e, como tal, constitucionalmente relevantes em face do artigo 16º, n.º 1, do texto constitucional, em que pode ler-se:
Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.
19. Se a Constituição se absteve de tratar expressamente o significado desta cláusula aberta a outros direitos fundamentais consagrados na lei, como é, por exemplo, o caso do direito de reversão dos bens expropriados inutilmente, um efeito parece claramente de admitir.
20. No caso concreto, não é sequer necessário advogar a aplicação analógica do disposto no artigo 165.º do Estatuto das Estradas Nacionais.
21. Com efeito, basta individualizar os fins que levaram à aprovação do Decreto-Lei n.º 13/94, de 15 de Janeiro, para se reconhecer que o legislador não teve intenção de afastar as normas que visam proteger os particulares, consagradas no Estatuto das Estradas Nacionais.
22. Com este diploma, pretendeu-se prover à defesa das estradas nacionais contra a pressão que sobre elas é exercida por sectores da actividade económica, segundo podemos verificar da leitura do preâmbulo deste diploma.
23. Ao longo do corpo normativo do diploma pode-se confirmar esta preocupação, sem que, em contrapartida, se procure acautelar os direitos dos particulares afectados.
24. Estipula-se apenas um limite para a servidão non aedificandi constituída, ou seja, quando ocorra a publicação do acto declarativo de utilidade pública de expropriação.
25. E o legislador não teve a preocupação de acautelar de outra forma os interesses dos particulares afectados por este diploma, porque, precisamente, já estariam protegidos no Estatuto das Estradas Nacionais.
26. Em circunstâncias idênticas, os proprietários – e em especial os pequenos ou médios proprietários, como parece ser o caso – devem obter o mesmo tratamento.
§4.º
A igualdade na repartição dos encargos com o interesse público
27. Observo, por outro lado, que o disposto no artigo 9º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, se ajusta ao caso concreto.
28. Trata-se da imposição de um sacrifício especial e anormal a um proprietário quando comparado com a generalidade dos proprietários, embora resultante de um facto perfeitamente lícito – a necessidade colectiva a satisfazer com a construção de um rede viária consistente.
29. É o princípio constitucional da igualdade a reclamar o tratamento não discriminatório dos cidadãos na repartição de encargos com a satisfação do interesse público. É este o sentido da responsabilidade civil extracontratual por actos lícitos de gestão pública, respaldado no artigo 22º da Constituição.
30. Não para todo e qualquer sacrifício ou lesão, pois, de outro modo, tornava-se incomportável a actividade administrativa do Estado e dos municípios, mas para os prejuízos que ninguém deixará de reconhecer como manifestamente injustos.
Em conclusão, entendo dever a Estradas de Portugal, E.P.E., rever o seu entendimento, e recomendo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20.º, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, seja aplicado ao caso concreto o artigo 165.º do Estatuto das Estradas Nacionais (Lei n.º 2.037, de 19 de Agosto de 1949) ou, ao menos, o artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, reconhecendo-se que, impedido o proprietário de edificar com base em estudo prévio e projecto de execução de uma obra rodoviária, mas sem ser dado início ao procedimento de expropriação por utilidade pública, há cerca de 12 anos, deve aquele ser tratado segundo esta condição ou, pelo menos, como lesado em face do princípio da igualdade na repartição dos encargos com o interesse público. |
Permita-me chamar a atenção para o dever que incumbe à EP – Estradas de Portugal, E.P.E., de me transmitir, nos próximos 60 dias, a deliberação que vier a proferir (artigo 38.º, n.º 2, idem).
O Provedor de Justiça
H. Nascimento Rodrigues