RECOMENDAÇÃO N.º 13/A/2006
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]
Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Proc.º: R-331/04
Data: 03-10-2006
Área: A1
Assunto: Desafectação – domínio público municipal – alvará de loteamento n.º 1120, de 14.10.1999 – Av. Almirante João Azevedo Coutinho, Murtal, freguesia da Parede
I
Exposição de motivos
1. Houve já oportunidade de proceder à audição de V.Ex.a. a respeito de reclamação que me foi apresentada, em 27.01.2004, pelos proprietários dos sete lotes de terrenos constituídos pela operação de loteamento identificada pelo alvará n.º 1.120, de 14.10.1999, em prédio com a localização descrita supra.
2. Os reclamantes, originariamente, opunham-se à intenção da Câmara Municipal de Cascais de declarar a nulidade da deliberação que licenciara a operação de loteamento, assim como dos ulteriores actos de licenciamento da construção de edificações.
3. A decisão camarária, cujo projecto fora levado ao conhecimento dos proprietários para audiência prévia, baseava-se em parecer interno que concluía ser nula a licença da operação de loteamento, porque os lotes n.º 2 a n.º 7 se encontrariam parcialmente implantados no que seria o leito de um caminho público municipal.
4. Opuseram os queixosos que todos os lotes se encontravam implantados em conformidade com as plantas e prescrições do alvará. Este dado fora conferido nos processos de licenciamento das construções de cada um dos sete lotes, tendo as respectivas licenças de construção sido emitidas a partir de finais de 2001.
5. Por outro lado, uma sobreposição dos lotes, a sul, em parcela municipal implicaria a utilização pela Câmara Municipal de Cascais, a norte, de uma superfície superior à área de 1070, m2, prevista na licença para arruamentos.
6. De todo o modo, contestava-se que tal situação pudesse implicar a nulidade da operação de loteamento, nos termos em que o município de Cascais pretendia fazer valer.
7. E acrescentavam terem adquirido os lotes em momento posterior ao da sua divisão jurídica, por loteamento, sem que tivessem tido intervenção alguma na operação urbanística.
II
Conclusões preliminares
8. Analisada a situação, e visto quanto nos foi transmitido através do ofício n.º 37.143, de 29.07.2004, do Senhor Director do Departamento de Assuntos Jurídicos e da Secretaria Geral, foi dirigido a V.Ex.a o ofício n.º 14.468, de 20.08.2004, em cujo se teor se concluía, em suma, o seguinte:
a) a validade da licença de loteamento não pode ser posta em causa por questões possessórias ou afins, nomeadamente pelo uso parcial de um caminho público;
b) isto, porque o licenciamento de uma operação urbanística de loteamento não tem como efeito nenhuma transmissão da propriedade do bem imóvel loteado, nem a constituição, modificação ou extinção de direitos de natureza real ou obrigacional, salvo as parcelas cedidas ao município, as quais ficam afectas, de imediato, ao domínio público municipal com a emissão do alvará de loteamento (art. 44.º, n.º 3, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro – RJUE);
c) o licenciamento que compreenda parcela de terreno não pertencente ao promotor não opera, por si só, uma transmissão do bem, porquanto o possuidor da coisa supostamente esbulhada mantém-se na titularidade do bem e pode recorrer aos meios adequados à defesa dos seus direitos;
d) tal não significa que a licença seja inválida, porquanto esta apenas remove os impedimentos de natureza urbanística que pudessem obstar ao aproveitamento edificatório do imóvel (1);
e) e, se as licenças urbanísticas não produzem efeitos translativos, nem outros, sobre situações de direito privado de natureza real ou obrigacional, também não afectam a dominialidade de um bem público;
f) em sentido contrário ao dos pareceres do Gabinete de Assuntos Jurídicos, de 11.02.2003 e de 13.04.2004, em que o município sustentava a sua posição e que apontavam para a nulidade do licenciamento, o desvalor jurídico susceptível de afectar a validade da licença em causa não seria a nulidade;
g) ainda que se tivesse verificado erro sobre os pressupostos de facto que levaram ao licenciamento da operação em terrenos que, mais tarde, se veio alegar pertencerem ao domínio publico municipal, tal vício determinaria a anulabilidade do acto, entretanto sanada pelo decurso do tempo;
h) mas, no essencial, não se confirmou que a parcela pertencesse a um verdadeiro caminho público;
i) a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, seguindo uma interpretação crescentemente restritiva da doutrina do assento de 19.04.1989, vem definindo caminho público como aquele que, para além de se encontrar no uso directo e imediato do público é utilizado indiscriminadamente, desde tempos imemoriais, e encontra-se afecto a uma utilidade pública;
j) assim, a utilização de um caminho público – municipal ou vicinal – terá por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância (2);
k) ora, não se descortina um interesse público na utilização de caminho que se limita a servir de acesso, desde a via pública, a um imóvel, ainda que do domínio privado do município de Cascais, nem tão-pouco se encontra prédio algum que deva ter-se como encravado, em termos que permitam justificar a constituição de uma servidão legal de passagem;
l) por último, verificou-se que, após a notificação aos queixosos do projecto de decisão no sentido de declarar a nulidade, veio a ser emitido o alvará de licença que titulou o deferimento do pedido de alterações ao projecto de arquitectura apresentado no âmbito do licenciamento da construção a executar no lote n.º 4;
m) tal levou a supor que a Câmara Municipal de Cascais houvesse, entretanto, revisto o seu entendimento.
9. Em resposta, o Senhor Director do Departamento de Assuntos Jurídicos e da Secretaria Geral, através do ofício n.º 51621, de 11.11.2004, enviou informação elaborada por aqueles serviços em 04.11.2004.
10. Naquela informação oferecia-se como melhor solução a de proceder à “… alteração do alvará de loteamento nº 1120, com a intervenção de todos os titulares de lotes, observando-se neste caso o disposto no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho, expurgando-se os vícios que inquinam o licenciamento.“
11. Mais se entendia que, atenta a suposta natureza da parcela usurpada, esta deveria ser desafectada do domínio público municipal, transitando para o património do município para posterior alienação em hasta pública.
III
Das averiguações
12. Com o propósito de se observar a implantação dos lotes titulados pelo alvará e as características do terreno confinante a tardoz com os mesmos, os serviços deste órgão do Estado efectuaram deslocação ao local, em 12.01.2005.
13. Em representação da Câmara Municipal de Cascais, estiverem presentes o Senhor Arq. João Tiago Gonçalves, Director do Departamento de Urbanismo, o Senhor Eng. Jorge Oliveira, Chefe da Divisão de Fiscalização e Infra-estruturas, o Senhor Topógrafo Luís Seguro e o Senhor Dr. João Mário Carrapiço, Técnico Superior de Direito de 1ª Classe.
14. Foi, na ocasião, verificado por todos que o local apresentava a configuração de um antigo caminho, cujo desuso era manifesto, mesmo por peões e, por maioria de razão, inapto para o trânsito automóvel, como seria característico de um caminho público.
15. Por outro lado, não se encontravam indícios de benfeitoria alguma a expensas do município, uma vez que o local se encontra por desmatar e apresenta obstáculos pedregosos múltiplos. E mais se admitiu, contando, de resto, com o testemunho do Senhor Eng. Jorge Oliveira, que há cerca de 40 anos, pelo menos, nenhuma viatura circula pelo referido leito.
16. Confirmou-se, deste modo, a afirmação dos queixosos, segundo a qual, o aludido caminho público não mais seria do que um atravessadouro entre prédios particulares.
17. Tendo em atenção os resultados decorrentes da diligência, e com vista a ultrapassar a questão da equívoca implantação dos lotes sem prejuízo do interesse público e com o menor sacrifício dos interesses legalmente protegidos dos adquirentes dos lotes, foi elaborado o parecer interno n.º 8/MF/05, de 15.02.2005, de cujo teor se pediu a pronúncia de V.Ex.a., por meio do oficio n.º. 3.080, de 17.02.2005.
18. Em convergência com a posição do município, afirmada em 4.11.2004, considerou-se justificada a alteração ao loteamento e ao respectivo alvará, no sentido de ser integrada a parcela a sul, sobre a qual vieram a ser constituídos os lotes.
19. Quanto à natureza de tal parcela, ainda que pudesse, em tempos remotos, ter integrado um caminho público municipal, o manifesto e reconhecido desuso determinara a desafectação tácita do domínio público municipal e a sua automática transição para o domínio privado do município.
20. Como, entretanto, pôde verificar-se que o município beneficiara com a área que hoje serve a via pública (Av. Almirante Azevedo Coutinho e Av. Engenheiro Adelino Amaro da Costa), cedida pelo promotor da operação de loteamento, considerou-se poder e dever ser outorgada uma permuta.
21. E esta sugestão não resultou apenas da tentativa de criar uma solução conforme com o interesse público e o menos lesiva possível dos direitos dos particulares. Esta solução encontra-se na lei, em disposição por vezes esquecida, mas nem por isso diminuída na sua eficácia jurídica.
22. Trata-se do disposto no artigo 107.º do Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais (aprovado pela Lei n.º 2.110, de 19.08.1961), segundo o qual, os troços das vias municipais que, em virtude da execução de variantes, deixem de fazer parte da rede municipal, podem ser incorporados nos prédios confinantes por troca com terrenos utilizáveis em estradas ou outros melhoramentos de interesse público, ou por venda, nos termos do disposto nos artigos 8º. e 9º. do Decreto n.º 19.502, de 24 de Março, de 1931.
23. Sobre o teor do parecer elaborado por estes serviços, pronunciou-se V.Ex.a através do ofício n.º 55.098, de 15.11.2005, em que nos transmitia encontrar-se a permuta dependente, apenas, da desafectação do interstício de terreno pelo loteamento. Admitia, por um lado, a solução, mas parecia afastar-se, sem mais, a desafectação tácita que o aludido caminho sofrera pelo desuso e perda de utilidade pública.
24. Este entendimento seria reiterado no último ofício de V.Ex.a. (n.º 21.712, de 10.05.2006) em que se insistia pela necessidade de desafectação dominial da parcela em causa, obrigando a uma deliberação da Assembleia Municipal.
IV
Da desnecessidade de desafetação dominial
25. O município de Cascais já admitiu que da inexacta implantação do loteamento não resultou prejuízo para o domínio público municipal, na medida em que ocorreu compensação da área adquirida a sul, pela utilização de maior superfície na construção da via pública.
26. Insiste, porém, na necessidade de fazer intervir a Assembleia Municipal de Cascais, propondo-lhe que delibere a desafectação da parcela em causa. Até ao presente momento, esta iniciativa parece não ter tido lugar, o que justifica, da nossa parte, reatar a posição da sua desnecessidade. Note-se que os proprietários têm sido sacrificados com dificuldades várias – desde a privação de algumas licenças de utilização até à intervenção judicial do Ministério Público, nos tribunais administrativos, embora sem êxito nas providências cautelares requeridas.
27. Permita-me retomar os argumentos expendidos no parecer interno de 15.02.2005, em que se procurava resolver a questão controvertida por harmonização dos interesses públicos e privados em causa, e na mais estrita e irrepreensível conformidade com a lei.
28. Ao admitir-se a posse de uma parcela do atravessadouro que, em tempos, poderá ter sido um caminho público municipal (3), cumpre indagar da natureza que assumia a parcela que se afirma ter sido usurpada pelos proprietários dos lotes ao tempo do licenciamento.
29. De acordo com o estabelecido no art. 6.º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34.593, de 11 de Maio de 1945, são caminhos municipais os que se destinam a permitir o trânsito automóvel.
30. Ora, como se pôde observar no local, o espaço em causa, já muito antes da operação de loteamento, não era utilizado para o trânsito automóvel.
31. Este facto foi demonstrado pelos queixosos, através de elementos juntos ao processo, merecendo especial referência um levantamento ortofotográfico à escala 1:2000, elaborado pelo Gabinete de Cartografia e Cadastro do Departamento de Urbanismo e Infra-estruturas de Cascais, no qual se observa – ainda antes da implantação dos lotes e após a execução dos trabalhos camarários de prolongamento da Av. Almirante João de Azevedo Coutinho e da Av. Engº Adelino Amaro da Costa – não existirem indícios do suposto caminho público municipal na localização pretendida.
32. Por outro lado, de acordo com a orientação jurisprudencial dominante (4), e sufragada pela generalidade da doutrina, a dominialidade pública de um caminho resulta da sua construção, ou apropriação, por uma pessoa colectiva pública. O uso pelo público, que outras orientações acolhem como requisito essencial para a classificação, constitui, tão-só, presunção de dominialidade pública, mas presunção juris tantum, ilidível por prova em contrário.
33. No presente caso, além da notória inviabilidade no uso por automóveis, também não foi indiciado qualquer tipo de intervenção municipal no sentido de promover a conservação, ou a melhoria, do aludido caminho.
34. Tratar-se-á, antes, como fazem notar os reclamantes, de um atravessadouro, de um atalho, isto é, uma simples passagem entre prédios particulares, que, em tempos, era usada por peões para encurtar o percurso entre dois locais (5) A infra-estruturação viária da zona tornou obsoleta, de há muito, a utilidade colectiva.
35. Mas de todo o modo, os atravessadouros foram abolidos com a entrada em vigor do Código Civil de 1966/67, com excepção restrita aos que, de acordo com art. 1384.º, se dirigirem a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à sua utilização ou aproveitamento de uma outra.
36. Este não é o caso e, ainda que existisse alguma fonte ou ponte nas imediações, o prolongamento da Av. Engº Adelino Amaro da Costa e da Av. Almirante João de Azevedo Coutinho, teria tornado absolutamente desnecessária a utilização de tal passagem.
37. Por conseguinte, a admitir-se ter o local servido outrora como caminho público, este encontrar-se-ia desafectado do domínio público municipal pelo desuso, em momento muito anterior ao do licenciamento, designadamente com a ampliação das citadas vias (6).
38. Note-se, ainda, que a desafectação tácita dos leitos de estradas e caminhos públicos – por inutilidade superveniente – é reconhecida, sem reservas, como uma excepção aos princípios gerais da dominialidade. Por regra, os bens do domínio público que o não são por natureza – mas por atribuição – só podem perder esta qualidade por intervenção expressa dos poderes públicos, em alguns casos por acto político ou legislativo. Mas os caminhos públicos são, justamente, uma excepção.
39. Da jurisprudência dos tribunais superiores sobre o assunto, vale a pena tomar em linha de conta as seguintes decisões:
” É sabido que a desafectação tácita – de que é exemplo típico o caso da estrada velha que, pela abertura de outra com a mesma utilidade deixou de ser utilizada ao trânsito – se verifica sempre que uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração (….). Por virtude da desafectação tácita a coisa perde o carácter público e fica pertencendo ao domínio privado da pessoa colectiva de direito público, tornando-se alienável e prescriptível” – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.01.1998, Recº 12.737.
“A desafectação tácita determina a integração do bem anteriormente público no domínio privado da entidade pública respectiva, passando o leito do caminho a integrar o domínio privado da pessoa colectiva pública a que pertencia.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2004, Proc. 04B2576.
“Deixando de ser utilizado e deixando, assim, de servir ao seu fim de utilidade pública, cessa a função que estava na base do carácter dominial e opera-se a desafectação tácita, ficando a pertencer ao domínio privado da pessoa colectiva de direito público sua proprietária” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.02.1998, Proc. Processo 98A720.
40. Como já foi observado, do desuso do troço resultou a sua integração no domínio privado do município.
41. E nem sequer se trata de parcela que faça parte do domínio privado indisponível. Pelo contrário, o legislador teve presente este tipo de situação e claramente aponta para a alienação destes bens em benefício dos proprietários confinantes.
42. Como se estabelece no citado artigo 107.º do Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais, os troços das vias municipais que, em virtude da execução de variantes, deixem de fazer parte da rede municipal, podem ser incorporados nos prédios confinantes por troca com terrenos utilizáveis em estradas ou outros melhoramentos de interesse público, ou por venda, nos termos do disposto nos artigos 8º. e 9º. do Decreto n.º 19.502, de 24 de Março, de 1931 (7). Nunca o município de Cascais apresentou razões para não aplicar estas disposições legais, quando, na verdade, são aplicadas por outras câmaras municipais e, de forma válida, como reconhece a jurisprudência.
43. A este respeito, transcreve-se a melhor doutrina que dimana do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17.01.1980, Proc.º 12.737, (Ap. Diário da República, 11.04.1984), suficientemente elucidativa:
II – Resulta desta disposição a desafectação tácita dos troços de vias municipais que sejam dispensáveis, por desnecessários aos interesses colectivos.
III – Esses troços de vias municipais perdem o carácter público e ficam a pertencer ao domínio privado das câmaras municipais, tornando-se alienáveis e prescritiveis. A alienação é feita nos termos constantes dos artigos 8 e 9 do Decreto n.º 19502.
IV – Operada a desafectação tácita, viola as disposições dos artigos 107 da lei n.º 2110 e 8 e 9 do Decreto n.º 19502, por erro de qualificação do terreno, a deliberação municipal que declara dever manter-se como do domínio público o troço que deixou de fazer parte da via municipal visto continuar a ser indispensável a vários utentes” .
44. Não se encontra, assim, a menor dúvida quanto à aplicabilidade do disposto nas referidas disposições do Decreto n.º 19.502, de 24 de Março, de 1931, ao caso vertente.
45. Haverá ainda que ter em conta a afirmação dos queixosos, segundo a qual, o recuo na implantação dos lotes terá resultado da utilização, na frente norte, de uma área superior àquela que havia sido cedida para arruamentos no âmbito da operação urbanística de loteamento.
46. Conforme descrito, a superfície de terreno do loteamento efectivamente utilizada pela Câmara Municipal de Cascais para melhoramentos da Av. Engº Adelino Amaro da Costa e da Av. Almirante João de Azevedo Coutinho extrapolou a superfície de 1070,00 m2, prevista no alvará para arruamentos. E, com efeito, é visível um alargamento desta última artéria – no seu leito, passeios e lancis – por contraste com o troço poente.
47. Aliás, a não ser assim, os lotes não poderiam cumprir a extensão que lhes reconhece o alvará.
48. Nos termos do disposto no art. 8.º do Decreto n.º 19.502, de 24 de Março, de 1931, estará a parcela ocupada pelos lotes em condições de ser adquirida por permuta com a área que exceda os aludidos 1070m2.
49. Em conformidade com levantamento topográfico que os queixosos obtiveram junto de perito em topografia, em 8.02.2005, a área efectivamente utilizada pelo município no melhoramento das referidas vias de comunicação totaliza 1.993,54 m². Encontra-se, assim, excedida a área de cedências convencionada de 1070 m² em 923,54 m².
50. De acordo com o mesmo levantamento, a superfície de terreno indevidamente ocupada pelos lotes corresponde a 980,77m².
51. Assim sendo, tudo justifica que seja lavrado um certificado de troca entre a parcela de terreno municipal sita a tardoz dos lotes, e que em tempos terá sido utilizada como passagem, e a área sacrificada em excesso, na frente norte dos lotes, à melhoria de arruamentos.
52. Relativamente à diferença de 57,23 m2 (980,77m2 – 923,54 m2), correspondente a cerca de 1,3%, caso não seja considerada na habitual tolerância para com as discrepâncias entre levantamentos topográficos e o descrição registral, poderá ser adquirida pelos reclamantes através de venda directa, nas condições estabelecidas nos artigos 8.º in fine e 9.º do sempre citado Decreto n.º 19.502, de 24 de Março, de 1931.
53. Em qualquer dos casos, e nos termos do regime decorrente das normas acima indicadas, estará sempre afastada a necessidade de recurso à hasta pública como modo de alienação da superfície do antigo caminho ocupada pelos lotes. Pelo contrário, das citadas disposições legais parece mesmo resultar um direito potestativo à sua aquisição por parte dos proprietários confinantes, no caso os queixosos.
54. Há-de ponderar-se, por outro lado, que o município de Cascais conserva uma parcela significativa do leito do caminho no seu domínio privado, o que lhe permitirá, no futuro, aliená-la aos proprietários confinantes de ambas as margens – nas mesmas condições – ou simplesmente promover a sua requalificação urbanística.
V
Conclusões
a) O antigo caminho a tardoz dos lotes compreendidos na operação de loteamento identificada pelo alvará de n.º 1120, de 14.10.1999 encontra-se desafectado tacitamente;
b) Tal parcela integra, desde há muito, o simples património municipal;
c) De acordo com o estabelecido no artigo 107.º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais (Lei n.º2110, de 19 de Agosto de 1961) e dos artigos 8.º e 9.º do Decreto n.º 19.502, de 24 de Março de 1931, deverá efectuar-se a permuta daquela parcela, equivocamente usada pelos lotes;
d) O princípio do prosseguimento do interesse público determina os órgãos a agirem ou deixarem de agir na estrita medida em que aquele o reclame, procurando a solução que, sem o postergar, menos sacrifique os administrados;
e) A perda do interesse público num antigo caminho compromete as iniciativas municipais que se mostrem lesivas dos direitos dos particulares.
Assim, nos termos do disposto no artigo 20º, n.º1, alínea a), da Lei n.º9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente expostas, recomendo à Câmara Municipal superiormente presidida por V.Ex.a que delibere abster-se de maiores delongas e admita a resolução do conflito por certificado de troca, a outorgar com os proprietários dos lotes, relativo à superfície de terreno anteriormente afecta ao caminho e sobre a qual se estendeu o loteamento. |
Dignar-se-á V.Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues
[1] “… o mero licenciamento de uma construção particular não tem qualquer repercussão na definição da propriedade do terreno em que a construção se implanta, nem tem repercussão directa nas relações desse prédio com o prédio confinante” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25.05.2004, processo n.º 1672/03, www.dgsi.pt).
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[2] “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente” (Acórdão do Supremo tribunal Administrativo, de 15.06.2000, www.dgsi.pt).
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[3] O troço apenas representado como caminho público em levantamento cadastral efectuado em 1947/1948 pelo então Instituto Geográfico e Cadastral, publicado no Diário do Governo de 31.03.1950.
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[4] v. por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.03.1985, in BMJ nº 345, p. 366.
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[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.11.1993, in BMJ, nº 431, p. 300 e ss.
E, na definição dada por António Carvalho Martins, uma via que encurta um percurso que as pessoas utilizam para um percurso breve, em substituição de um percurso menos breve (in Caminhos Públicos e Atravessadouros, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1990, p. 47 e ss.).
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[6] Segundo ensina Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 9ª edição, vol. II, p. 932), a desafectação tácita resulta, não de um acto legislativo ou administrativo, mas da prática consequente à perda da utilidade pública do bem, o qual passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração, nomeando a “estrada velha que, pela abertura de outra com a mesma utilidade, deixou de ser utilizada para trânsito” (ob.cit., p. 934); e “São exemplos de desclassificação tácita a passividade ou o silêncio da Administração relativamente a um troço de estrada que deixou de ser necessário por ter sido feita uma rectificação de traçado ou a um rio que secou “(José Pedro Fernandes, loc. Desafectação, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume III, Lisboa 1990, p. 550 e ss ).
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[7] “Sempre que da construção ou rectificação de estradas ou caminhos rurais tenha resultado a possibilidade de serem dispensados, por desnecessários aos interesses colectivos, quaisquer troços de estradas ou caminhos, poderão os mesmo ser imediatamente incorporados nos prédios confinantes, se os respectivos proprietários os aceitarem, por troca com terrenos utilizáveis em estradas ou noutros melhoramentos de interesse público, ou por venda, cujo preço será liquidado sumariamente nos termos do artigo anterior e seus parágrafos (…)” – artigo 8º. do Decreto nº 19.502, de 24 de Março, de 1931.
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