Ministro da Saúde
Rec. n.º 223A/93
Proc.: R-1639/91
Data: 1993-12-27
Área: A 3
Assunto: RESPONSABILIDADE CIVIL – SAÚDE – HEMOFÍLICOS – VIH – RESSARCIMENTO E COMPENSAÇÃO DE LESÕES – VER TB. REC N.º 81/A/94.
Sequência: Sem resposta conclusiva
Faço remeter a Vossa Excelência uma Recomendação, formulada nos termos do art.º 20.º, n. ° 1, alíneas a) e b), a qual se reporta ao ressarcimento de lesões causadas por actos de transfusão de sangue ou seus derivados, contaminados por agentes causadores de SIDA, em estabelecimentos públicos de saúde.
A presente Recomendação surge como resultado do processo à margem epigrafado, cuja instrução se fundou, em grande parte, nos elementos que o ilustre antecessor de Vossa Excelência fez chegar a este órgão do Estado.
Do mesmo passo, entendi dever utilizar a mesma competência para propor a atribuição de alguns benefícios complementares a todos os cidadãos portugueses que se encontrem infectados pelo HIV.
Certo da boa atenção que a iniciativa deste órgão do Estado não deixará de merecer por parte de Vossa Excelência,
Apresento os meus cumprimentos.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
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C/C:
Comissão de Saúde da Assembleia da República
Faço remeter a Vossas Excelências, para os devidos efeitos, uma cópia da Recomendação que hoje fiz chegar a Sua Excelência, o Ministro da Saúde.
Está em causa procurar melhorar as condições de cidadãos que hajam contraído enfermidades causadas pelo HIV, através de actos de transfusão realizados em estabelecimentos públicos de saúde.
Não poderei deixar de lamentar a não colaboração atempada que fora solicitada a este órgão do Estado por Vossas Excelências quanto à apreciação de dois projectos-lei. Se é certo que as causas dessa omissão poderão ser imputadas a um modo indesejado como funcionaram estes Serviços, o certo é que a responsabilidade recairá sempre sobre o seu titular, razão pela qual apresento o meu pedido de desculpas.
Espero, todavia que esta contribuição venha, de algum modo, a permitir uma solução mais adequada para aquele que considero um dos mais dramáticos problemas vividos pela sociedade portuguesa.
Com os meus cumprimentos.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
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Ministro da Justiça
Faço remeter a Vossa Excelência cópia de uma Recomendação que hoje enviei a Sua Excelência, o Ministro da Saúde.
Tem por objecto as condições de ressarcimento dos lesados por actos de transfusão realizada em estabelecimentos públicos de saúde que hajam sido contaminados pelos agentes causadores de SIDA.
Com os meus cumprimentos.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel
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Primeiro-Ministro
Faço remeter a Vossa Excelência cópia de uma Recomendação que hoje entreguei, para os devidos efeitos, a Sua Excelência, o Ministro da Saúde.
Trata-se de procurar melhorar a condição de cidadãos que hajam sido contaminados pelos agentes causadores da SIDA, através de actos de transfusão realizados em estabelecimentos públicos de saúde.
Com os meus cumprimentos.
0 PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
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Ministro das Finanças
Faço remeter a Vossa Excelência cópia de uma Recomendação que hoje enviei a Sua Excelência, o Ministro da Saúde.
Trata-se de procurar melhorar a condição de cidadãos que hajam sido contaminados pelos agentes causadores de SIDA, através de actos de transfusão realizados em estabelecimentos públicos de saúde.
Com os meus cumprimentos.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
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Presidente da Associação Portuguesa de Hemofílicos
Junto envio cópia da Recomendação que hoje fiz chegar a Sua Excelência, o Ministro da Saúde.
Trata-se, como pode observar, de uma versão com algumas alterações, de forma a tornar mais explícitos determinados aspectos do seu conteúdo.
Creio encontrarem-se dissipadas as dúvidas e objecções formuladas após a reunião com a Exm.ª Senhora Vice-Presidente, em 30 de Novembro p.p. .
Com os meus cumprimentos.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
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I – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
(A) – Dos Factos –
1.Em 31.01.1986 foi autorizada, por despacho da Senhora Secretária-Geral do Ministério da Saúde, a aquisição de lotes de factor VIII – um derivado do sangue, largamente utilizado no tratamento de portadores de hemofilia, como factor de coagulação.
2.Pelo menos desde 1985, foram pretendidas e sugeridas acções que salvaguardassem o acto médico de transfusão de se tornar num veículo difusor da síndrome da imunodeficiência adquirida, em virtude de contaminação de produtos transfundidos pelo agente seu causador.
3.Assim, organizou-se um concurso exclusivo para este tipo de produtos, acompanhado por uma comissão técnica, da qual fizeram parte médicos especialistas de Imuno-hemoterapia.
4.Tal veio a ser o concurso n.º 15/86, o qual permitiu a adjudicação do produto, em partes iguais, às empresas Aviquímica e A. Paiva dos Santos, representantes, respectivamente, do Laboratório austríaco Plasmapharm-Sera e da empresa Sero.
5.Apesar das notícias vindas a lume na Áustria e das sucessivas manifestações de apreensão junto das autoridades sanitárias quanto aos produtos comercializados pela Plasmapharm-Sera, foi mantida a adjudicação.
6.Em 05.05.1986, viria a ser publicado um despacho da Senhora Ministra da Saúde, de 18.04.1986, pelo qual foram impostas providências destinadas a garantir a verificação e subsequente eliminação da eventual possibilidade de serem portadores dos agentes actualmente reconhecidos como causadores da síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) ” todos os lotes de sangue, seus componentes e fracções terapêuticas (DR, II Série, 18.04.1986).
7.O mesmo despacho, embora de execução imediata, tolerava um prazo máximo de 90 dias a partir da data da sua publicação para ” se encontrar em execução efectiva na totalidade dos serviços ” (idem).
8.Foram solicitadas, pela Associação Portuguesa dos Hemofílicos, informações à Áustria sobre a idoneidade do produto adjudicado em 31.01.1986.
9.Não obstante a falta de resposta, o produto foi administrado a partir de 18.08.1986, no Hospital de São José (HCL), em Lisboa.
10.Em Dezembro de 1986, o Ministério da Saúde tomou conhecimento da análise efectuada na Áustria, cujo resultado indicava a não administração do produto. Posteriormente (em 1992), mercê de testes realizados em Portugal, porventura através de meios mais sofisticados, provou-se ser o produto susceptível de transmitir a infecção pelo VIH-1.
11.Contudo, só em 10.02.1987 viria a ser ordenado que se retirasse dos hospitais o lote em causa (lote 810536, da Plasmapharm-Sera), quando paradoxalmente já teria sido consumido na sua totalidade.
12.Por despacho de 23.12.1991 (cfr. DR, II Série, de 24.01.1992), o Senhor Ministro da Saúde criou um grupo de trabalho incumbido da elaboração de um relatório, cujo objectivo era, entre outros, o de investigar um eventual nexo de causalidade entre a contaminação de cerca de 30 hemofílicos e o lote n.º 810536.
13.Tal relatório foi concluído e entregue ao Sr. Ministro da Saúde em 24.06.1992, com a designação de Relatório do GRUPO “SIDA/Hemofílicos”.
14.Com a publicação do Decreto-lei n. ° 237/93, de 3 de Julho, o Estado admitiu a celebração de convenções de arbitragem com cada um dos hemofílicos ou seus herdeiros legais que exijam indemnização por contaminação “pelo vírus da imunodeficiência humana” em estabelecimentos públicos de saúde, através da transfusão de sangue ou de produtos seus derivados.
15.No preâmbulo deste diploma reconhece-se que:
“O recurso à importação de medicamentos derivados de plasma humano permitiu salvar e tratar inúmeros doentes e continuará a ser imprescindível à medicina moderna. Porém, antes da despistagem do vírus da imunodeficiência humana, parte desses medicamentos serviu de seu difusor, designadamente entre os hemofílicos.”
16.Dois aspectos merecem, antes de mais, ser salientados do conteúdo deste diploma. Primeiro, a necessária autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade (art.º 3.º, n.º 1, alínea a)). Segundo, a vinculação por um limite máximo indemnizatório, como condição da celebração das convenções de arbitragem pelo lado do Estado (idem, alínea d)). Este limite veio a ser quantificado através da proposta de convenção de arbitragem apresentada pelo Estado (vd. infra).
17.O limite da indemnização, condição da celebração da convenção, como se referiu, foi fixada na proposta de convenção de arbitragem apresentada pelo Estado e aprovada pelo despacho conjunto A-30/93-XII, de 27.08.1993 (publicado in DR, II Série, n.º 216, de 14.09.1993).
(B) – Discussão e fundamentação –
18.Os doentes submetidos a actos médicos de transfusão de sangue ou de produtos seus derivados têm sido considerados, justamente, como um dos principais grupos de risco no contágio pelo VIH.
19.Dentro dos chamados grupos de maior risco, este conjunto é, muito provavelmente, aquele sobre o qual menos suspeitas de negligência por parte dos doentes podem recair quanto ao modo de contaminação pelos agentes conhecidos como causadores da SIDA, porquanto o seu livre consentimento para a realização de actos de transfusão é condicionado por razões clínicas, inclusivamente de estrita sobrevivência, por vezes.
20.Os portadores de hemofilia destacam-se no interior deste conjunto, sem no entanto, deverem ser esquecidos todos os restantes indivíduos aos quais são administrados sangue ou produtos seus derivados.
21.Assim e se é certo que o Estado não se pode furtar, por todos os meios que estejam ao seu alcance, a disponibilizar formas de apoio a todos os contaminados pelos agentes causadores da SIDA, haverá também de, acrescidamente, ter em conta a situação especial daqueles que se tornaram seropositivos, ainda que acrescidamente, a partir de actos médicos realizados em estabelecimentos públicos de saúde.
22.Na verdade, pelo menos relativamente aos actos médicos de transfusão realizados em estabelecimentos públicos de saúde, o Estado assume uma posição de garante da idoneidade e qualidade dos produtos administrados. Desta posição de garante resultam deveres de cuidado, cujo cumprimento se traduz quer na produção de normas regulamentares necessárias e adequadas, quer na prática de actos individuais e concretos, quer ainda na realização de operações materiais.
23.Analisem-se, então, as conclusões relatadas pelo referido Grupo “SIDA/Hemofílicos”, nomeado por despacho ministerial (vd. supra), para o efeito de determinar se o Estado cumpriu ou não os deveres de cuidado e diligência a que estava adstrito, em face das circunstâncias de facto, do direito vigente e em função da posição de garante que desempenha.
24. Pode ler-se a fls.10, do citado documento, sob o título de “Conclusões”:
“(1) 0 lote 810536 da Plasmapharm podia ser susceptível de transmitir a infecção pelo vírus da SIDA.
(2) O produto entrou no H. S.José em Junho de 1986 na quantidade de 500 frascos e, a partir de 18 de Agosto do mesmo ano, começou a ser utilizado, presumindo-
-se, que foi administrado até final de Setembro de 1986.
(3) O Hospital de S. José não administrou o produto sem que tivesse em seu poder o certificado de análise do laboratório produtor, comprovando a negatividade para o vírus da SIDA. (…)
(5) Sabemos, contudo, que até à data da entrada do mesmo nos HCL, já havia pelo menos 38 hemofílicos seropositivos dos 107 estudados até então (…).
6) Há, todavia, alguns doentes em relação aos quais, embora não possa ser estabelecida uma relação linear entre a administração do produto e a seropositividade, esta eventualidade não se pode excluir. Acresce, ainda, um problema difícil de superar que diz respeito à existência de testes com resultados falsamente positivos e falsamente negativos, o que dificulta ainda mais o estabelecimento da relação causa/efeito, entre administração do lote e a seropositividade. (…)
11) A partir de 1987 todos os factores de coagulação e posteriormente todas as Imunoglobulinas adquiridas através de concurso da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde passaram a ser testados para o vírus da Hepatite B e da SIDA no Instituto Português do Sangue, não tendo sido autorizada a administração de quaisquer produtos cujos resultados mostrassem haver susceptibilidade de transmissão destas infecções”.
25. Em primeiro lugar, cumpre apreciar o cuidado por parte da Administração Pública na aquisição do lote 810536, cuja nocividade ficou comprovada decisivamente, em Dezembro de 1986. Importa pois, saber se a actuação administrativa se conformou com as normas jurídicas em vigor, ao tempo, e saber também se, nessa actuação, a Administração ” empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias (cfr. art.º 493.º, n.º 2, do Código Civil).
26. De um lado ou de outro, não pode a actuação do Ministério da Saúde e das autoridades hospitalares, ficar isenta de críticas.
27. Com efeito, no próprio relatório citado é admitido que apesar de as exigências formuladas quanto ao concurso para aquisição do produto permitirem a salvaguarda contra a transmissão de VIH (fls.74), o certo é que se faz sustentar, do mesmo passo que ” o método estabelecido para o controlo burocrático era criticável “(idem). De modo inequívoco, afirma-se a fls.71:
” Há que salientar contudo, a incongruência entre as normas estabelecidas e o processo de verificação do seu cumprimento. Concretamente entre a exigência contida no artigo 3.º das ‘Condições Especiais’ e a comprovação da condição estabelecida na alínea b) dos novos requisitos.”
28. Por outras palavras: embora se exigisse às empresas concorrentes um certificado do laboratório de origem comprovando a inactivação do HTLVIII, com indicação da metodologia adoptada (vd. of. de 11.09.1985), depois, o pedido do certificado de análise, ficava na disponibilidade de cada hospital.
29. Além deste aspecto, o relatório não deixa de enunciar outra censura. A fls. 70 lê-se:
” Colocada a questão aos Serviços de Aprovisionamento da Secretaria-Geral estes referem que o requisito desta alínea b) se reporta à marca e não a cada lote do produto como, em nosso entender deveria ser.
Daí que nunca se tenha encontrado naqueles serviços qualquer referência ao lote 810536. “
30. Mais se afirma no mesmo texto (f1s.70) ser estranho não existirem quaisquer boletins analíticos desse lote, quando é certo haver boletins analíticos relativos a outros lotes.
31. Em 18.08.1986, quando começou a ser administrado o lote 810536 – eventualmente, só uma parte, pois é admitido terem sido destruídos alguns frascos que compunham o mesmo – encontrava-se já em vigor o despacho n.º 12/86, de 18 de Abril.
32. Ora, nunca até esta data foi enviado pelo Ministério da Saúde à Provedoria de Justiça documento algum que demonstre ter sido cumprido o disposto nos n.ºs 1 e 4 do aludido despacho. Tão só resulta ter ficado assegurada a idoneidade da marca. E repare-se que no mesmo despacho se afirma:
“4.1 – Os produtos e fracções derivados do sangue, destinados a serem utilizados para fins terapêuticos, que se encontrem ainda disponíveis nos serviços hospitalares, sem obedecerem aos requisitos indicados, deverão ser substituídos por outros em relação aos quais tenham sido observadas as condições aqui referidas.”
33. A tudo isto devem acrescer as fundadas suspeitas, primeiro levantadas pela imprensa austríaca e veiculadas pela empresa A.P. Santos, sobre a inocuidade de produtos do laboratório em questão (Plasmapharm-Sera), entre o momento da adjudicação (31.01.1986) e o momento da sua administração no Hospital de S. José (desde 18.08.1986). De novo, se recorrerá, para ilustrar as referidas suspeitas a transcrições do relatório do Grupo “SIDA/Hemofílicos”:
a)”Em 20 de Fevereiro daquele ano de 1986, portanto após a aquisição do produto, a APH, em carta datada de 28 de Janeiro, remete ao Dr. Pedro Franco, ao tempo director do Instituto Português de Sangue e membro da Comissão de Escolha da Secretaria-Geral, fotocópias da documentação já apresentada pela firma A.P. Santos, ao Serviço da Aprovisionamento da Secretaria-Geral.
Discutida a questão, o Dr. Pedro Franco entendeu que seria de manter a adjudicação, uma vez que não estava em causa nenhum lote de factor VIII.
A Comissão defendeu idêntica posição mas com outro argumento: o de que o Laboratório estava a ser controlado pelas autoridades estatais, garantia que não podiam ter com os outros.” (fls.67 e 66)
b)”Em 8.5.86 pediu à Comissão Técnica de Escolha que efectuasse uma análise cega a todos os produtos (os da Plasmapharma e outros), proposta que não mereceu acolhimento. (cf. Informação n.º 58, de 18.7.86 dos Serviços de Aprovisionamento da Secretaria Geral).” (fls.66)
c)”Em 30.6.86 a APH escreve ao GTS sugerindo que este Grupo proponha para os hemofílicos medidas idênticas às que foram tomadas quanto aos doentes hemodialisados, previstas no despacho 11/86, e envia as estatísticas da WH Aids Center onde vem enunciado o número de hemofílicos seropositivos portugueses – o 3.°- a nível mundial – manifestando a sua preocupação.”
d) “Em 21.7.86, a APH solicita uma entrevista à Senhora Secretária-geral, que não foi concedida.” (fls.66)
34. Entretanto, fora solicitado, pela APH, um estudo do lote a um laboratório austríaco. Não obstante a falta de qualquer resposta por parte desta entidade, o lote começou a ser utilizado a partir de 18.08.1986, garantido a partir da apresentação de um “certificado de qualidade, pela firma” (fls.65).
35. À luz destes factos, não pode deixar de ser considerada censurável a omissão da Administração de não suspender a administração do lote em causa, até serem obtidos todos os esclarecimentos possibilitados, ao tempo, pelos conhecimentos médicos.
36. E não se afirme que os resultados então obtidos eram satisfatórios, quando, na verdade, poucos meses após, foi possível colher a informação austríaca, na qual eram referenciadas as bandas de Western-Blot que o produto apresentava, aconselhando a não administração do mesmo.
37. Só a partir do início de 1987, todo o sangue e seus derivados com fins terapêuticos terão passado a ser testados para o vírus causador da SIDA no Instituto Português de Sangue, deixando de se permitir a administração de produtos cujos resultados, em concreto e por espécie, revelem susceptibilidade de transmissão dos agentes referidos.
38. Ora, não passa despercebido que a utilização desta metodologia adoptada a partir de 1987 poderia, com largo proveito da saúde pública, ter sido determinada para o ano de 1986, porquanto os conhecimentos científicos não terão progredido extraordinariamente entre os dois anos.
39. Recorde-se pois, neste contexto e relativamente à responsabilidade civil extracontratual da Administração, o disposto no art.º 64.º, do Decreto-lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967:
” Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”
40. Posto isto e reconhecendo não ter agido a Administração segundo critérios de diligência e cuidado pressupostos pela actividade de risco em questão, interessa ponderar a questão da determinação de um nexo de causalidade entre a utilização do lote 810536, a partir de 18.08.1986. no Hospital de S.José, e os resultados posteriores de seropositividade evidenciados por indivíduos que haviam sido submetidos a actos de transfusão de sangue ou de produtos seus derivados, como é o caso dos factores de coagulação, durante o período em questão.
41. De acordo com o relatório citado – o qual se reporta, nas suas finalidades e conclusões, exclusivamente a hemofílicos – dos 58 casos tratados no Hospital de S.José e referenciados em Junho de 1992, 38 já se encontrariam seropositivados à data do início da administração do lote 810536. Conclui o Grupo de Trabalho ser provável que a maioria dos hemofílicos se tenha infectado antes da disponibilidade das técnicas de detecção do vírus e antes das técnicas de inactivação, à semelhança do que aconteceu no resto do mundo” (fls.9). Todavia, haverá sempre a considerar o facto do agravamento acrescido propiciado por uma segunda inoculação.
42. Após aquela data, surgiram, pelo menos, 20 hemofílicos tratados em S.José com seropositividade para o VIH.
43. No entanto, com excepção de quatro deles, não existe qualquer exame anterior que demonstre negatividade.
44. Refira-se também que “restam 42 hemofílicos no H. S.José que até Maio de 1992, nunca tinham efectuado a pesquisa para o VIH neste hospital, por recusarem a realização do teste ou porque não voltaram à consulta” (fls.9).
45. A partir destes pressupostos de facto, a demonstração de um nexo de causalidade entre a apontada conduta da Administração e a seropositividade de hemofílicos e não hemofílicos que vieram exigir do Estado o pagamento de indemnizações, coloca estes últimos numa posição de manifesta fragilidade em relação à qual o Provedor de Justiça não pode ser estranho. Isto porque, em princípio, caberia aos lesados “fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado” (art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil), pese embora a equidade segundo a qual julga o Tribunal arbitral criado a partir do Decreto-lei n.º 237/93, de 3 de Julho (cfr. art.º 3.º, n.º l, alínea a)).
46. Neste tipo de casos, vem a doutrina reconhecendo necessidade de vulnerabilizar o ónus da prova. Como afirma o PROF. SINDE MONTEIRO (“Aspectos Particulares da Responsabilidade Médica” in Direito da Saúde e Bioética, ed. Lex, 1991, Lisboa, pp. 147), ” pode entender-se que a “criação de um risco injustificado” ou o “agravamento dos riscos”, culposamente provocado pelo acto médico são um fundamento válido para aligeirar a prova do nexo causal, podendo conduzir à inversão do ónus”.
47. De acordo com esta ideia, à qual não são de todo alheias motivações de equidade, como reconhece o ilustre Autor, o ónus pode recair, em diferentes graduações, mais ou menos, sobre o lesado.
48. Por outro lado, o art.º 8.º do já citado Decreto-lei n.º 48051, de 21 de Novembro, estabelece uma presunção em desfavor do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no caso de se tratar de prejuízos especiais e anormais, estando em causa “serviços administrativos excepcionalmente perigosos” ou “coisas e actividades da mesma natureza”, independentemente da licitude da conduta.
49. Todavia, observe-se que não é objecto desta estatuição a ónus da prova quanto ao nexo de causalidade. A citada norma apenas estabelece uma presunção de culpa do Estado em favor do lesado.
50. Importará pois, sequencialmente, considerar um facto sobejamente relevante para as questões em apreço. Retomando o relatório sempre citado, pode ler-se, nas conclusões, a fls.10:
(4) No Hospital de S.José, à semelhança de todos os outros hospitais do País, não era ao tempo registado na ficha do doente o lote que lhe era administrado, mas, unicamente, as unidades de factor, quer sob a forma de concentrado comercial, quer sob a forma de crioprecipitado, não se sabendo, assim, quais os hemofílicos a quem foi aplicado o produto respeitante ao referido lote. “
51. A impossibilidade de conhecer a quem foi transfundido o produto de determinado lote, exclusivamente determinada pela ausência de quaisquer registos que permitam estabelecer a correlação, cabe por inteiro à Administração Pública, a qual não agiu, uma vez mais, com a prudência e cuidado que a utilização médica de sangue e de produtos seus derivados exige.
52. A prova do nexo causal por quem que invoca o direito a uma indemnização por actos de gestão pública ilícitos, tornar-se-ia assim, na situação vertente, demasiado onerosa.
53. Contudo, face a estas circunstâncias, mais que uma vulnerabilização equitativa do ónus da prova (vd.supra-45), mais que uma presunção de culpa por parte do Estado nos termos da responsabilidade objectiva assacada pelo art.º 8.º (a qual prescinde da ilicitude do facto gerador de dano, vd. supra-47), beneficiarão os lesados da regra de inversão do ónus da prova inscrita no art.º 344.º, n.º 2.º, do Código Civil, onde se dispõe:
“Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”
54. A diferença entre o recurso a esta disposição e aos outros meios mencionados (aliás, o art.º 8.º do Decreto-lei 48051, de 21 de Dezembro, caso fosse de aplicá-lo, não afastava a regra geral do art.º 342.º, n.º 1, do CC) constitui uma diferença subtil, mas também substancial.
55. Com efeito, por esta via, “o ónus da prova do contrário significa simplesmente que se essa prova não for feita nem resultar de outros elementos do processo se tem como assente o facto presumido ” (vd. RLJ, 106.º, 383).
56. Em resumo e por outras palavras, deve sublinhar-se o posicionamento, em desfavor do Estado, dos seguintes aspectos:
a)A posição débil, de quase sujeição, dos doentes a quem são administrados sangue ou produtos seus derivados com fins terapêuticos, a qual lhes restringe intensamente qualquer domínio de facto sobre os citados actos médicos e sobre os demais actos de gestão pública conexos – impondo, assim, uma necessária cedência da regra geral sobre o ónus da prova, em termos equitativos;
b)O não cumprimento de deveres de cuidado quanto aos riscos inerentes, em concreto, à administração do sempre referido lote de factor VIII, adjudicado pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, em 31.01.1986 – indiciando negligência;
c)A representação desses mesmos riscos, por repetidas vezes, pela Associação Portuguesa dos Hemofílicos e por outras entidades, junto de órgãos da Administração com competência para determinar a suspensão da utilização do lote n. ° 810536, enquanto não fossem possuídos resultados claramente satisfatórios, em termos de segurança dos indivíduos sujeitos a transfusão – indiciando negligência consciente;
d) A ausência de quaisquer registos a partir dos quais seja possível fixar “a posteriori” um nexo de causalidade entre a administração de um lote infectado e as lesões sofridas – invertendo o ónus da prova, à luz do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil;
e)O não cumprimento de disposições regulamentares contidas no despacho n.º 12/86, de 18 de Abril (DR, II Série, de 05.05.1986), nomeadamente, as dos n.ºs 1, 4 e 4.1.
57. A tudo isto, ainda poderá acrescer, a responsabilidade por omissão quanto à não publicação de normas regulamentares ou legislativas que determinassem a aplicação de conhecimentos científicos correntes e comummente tidos por adequados à época. É importante considerar que a utilização do método de pré-
-aquecimento, em 1986, não seria de desprezar.
58. Desde finais de 1985 que a comunidade científica chamava a atenção para o método de pré-aquecimento, como um meio preventivo, relativamente eficaz, de evitar a administração de produtos contaminados.
59. A este propósito, refira-se que em 31.03.1992, a República Francesa veio a ser condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a prestar uma indemnização aos herdeiros de um doente infectado pelo VIH, o qual havia sofrido transfusões várias em estabelecimentos públicos de saúde, baseando-se, para tanto, na omissão normativa de prevenir diligentemente essas situações.
60. Afirma-se no acórdão que:
“… admitindo mesmo a subsistência de algumas incertezas sobre os hipotéticos efeitos secundários da técnica do pré-aquecimento, nos finais do ano de 1985, a revelação da amplitude da catástrofe sanitária anunciada exigia que autoritariamente fosse posto cobro e sem demora à distribuição de produtos contaminados.” (T.N.)
61. A ideia de responsabilidade do Estado por omissões legislativas ou regulamentares, mesmo fora do âmbito da inconstitucionalidade por omissão, encontra suporte no art.º 22.º da Constituição. Neste sentido, pode afirmar-se, como RUI MEDEIROS (in Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Liv. Almedina, Coimbra, 1992, pp. 353) que:
“Os danos devem ser imputados à Administração quando o órgão ou agente administrativo goza de liberdade na fixação do conteúdo do acto ou regulamento ou pode, inclusivamente, não o emitir. Assim, havendo discricionariedade da escolha ou da decisão, o lesado pode fundamentar o seu pedido de indemnização não só na Constituição, mas também nos preceitos legais que regem a responsabilidade objectiva da Administração. “
(C) – Discussão e fundamentação: Análise da solução proposta pelo DL 237/93, de 3 de Julho –
62. Mais de sete anos após o início da administração do factor contido no lote 810536, o legislador reconheceu “… que o normal funcionamento dos mecanismos da ordem jurídica não providenciaria de forma adequada a reparação devida aos doentes que tenham sido, eventualmente em estabelecimentos de saúde pública, contaminados pelo vírus da imunodeficiência humana ” (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 237/93, de 3 de Julho). Do mesmo passo, optou ” pela colocação à disposição dos hemofílicos, ou seus herdeiros legais, de um mecanismo alternativo ao recurso aos tribunais:a celebração de convenções de arbitragem com o Estado” (idem).
63. Para além de ser lamentável a demora na procura de uma solução mais adequada, o regime definido pelo Decreto-Lei n.º 237/93, de 3 de Julho, revela algumas iniquidades.
64. Elas resultam, fundamentalmente, de duas das condições que o Estado-
-legislador impõe ao Estado-administração para poderem ser celebradas convenções de arbitragem.
65. A primeira está na exigência de autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade (art.º 3.º, n. ° 1, alínea a)).
66. Ora, como vimos, o julgamento segundo critérios equitativos permitiria a flexibilização do ónus da demonstração do nexo causal, pressuposto pela responsabilidade civil.
67. Porém e como pôde ser já observado, a actuação negligente da Administração ao não registar ou ao não conservar registos dos lotes administrados a cada um dos doentes, faz accionar o mecanismo previsto pelo art.º 344.º, n.º 2, do CC.
68. Por outro lado, não seria de excluir a aplicação do art.º 494.º, do mesmo código, o qual garantiria a incisão de juízos de equidade na fixação das indemnizações.
69. Assim, não se vê como haja necessidade, por parte do Estado, em cingir a celebração de convenções de arbitragem a uma autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade, tanto mais que, na falta de indicação em contrário pela convenção de arbitragem, esse meio apenas garantirá “a possibilidade de afastamento, no julgamento do caso concreto, das normas tecidas, não tanto com os fios da estrita justiça, da pura razoabilidade ou da criteriosa igualdade, mas com o cardado da certeza do direito ou da segurança do comércio jurídico” (Prof. ANTUNES VARELA, RLJ, n.° 3831, p. 182).
70. A tudo isto acresce o facto de, nos termos do art.º 29, n.º 2, da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, a autorização dada aos árbitros para julgarem segundo a equidade envolver renúncia aos recursos para os tribunais judiciais comuns.
71. Em segundo lugar, a condição assinalada pelo art.º 3.º, n.º 1, alínea d), do mencionado diploma de 3 de Julho p.p., é flagrantemente injusta e, por desventura, inconstitucional.
72. Afigura-se inaceitável que o Estado, o qual é uma das partes nos litígios a submeter a um Tribunal arbitral, possa socorrer-se da via legislativa, de forma a limitar o montante das indemnizações a atribuir.
73. Trata-se, com efeito, de uma situação de excesso de poder legislativo, admitindo, com o Prof. GOMES CANOTILHO que:
“… o fim imanente à legislação imporia os limites materiais da não contrariedade, razoabilidade e congruência .” (Direito Constitucional, Coimbra, 1991, p.1026)
74. E prossegue o mesmo Autor, a este propósito:
” Uma consideração especial merecerão as leis medida. O problema do excesso do poder legislativo põe-se com grande acuidade neste tipo de actos legislativos. Sendo as leis simultaneamente disciplina e acto, normação e execução, bem pode acontecer que os poderes legislativos sejam expressamente utilizados para furtar o acto ao controlo contencioso normal (…) “. (ob. cit. p.1027)
75. Na verdade, ao impor uma limitação máxima às indemnizações fixadas pelo Tribunal arbitral e, ao mesmo tempo, ao inviabilizar o recurso das suas decisões, o Estado está a agir irrazoavelmente e em manifesta incongruência com o objectivo de estabelecer “um meio alternativo” (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho).
76. Não está em discussão a legitimidade do Estado para, em abstracto, fixar limites máximos de indemnização por alguns tipos de dano, como o fez nos arts. 508.º e segs. do Código Civil. Porém, ao invés, nos termos da alínea h), do art.º 3.º, n.º 1, daquele diploma, assiste-se a uma utilização do poder legislativo como meio de limitar os poderes de um Tribunal perante o qual, o mesmo Estado será réu.
77. Por fim e ainda no tocante ao disposto no Decreto-Lei n.º 237/ 93, de 3 de Julho, há-de reconhecer-se que este diploma estabelece uma desigualdade de tratamento não fundada, ao restringir a celebração de convenções de arbitragem aos cidadãos hemofílicos ou seus herdeiros legais, deixando à margem, entre outras, todas as restantes pessoas lesadas por transfusões de sangue ou produtos seus derivados realizadas em estabelecimentos públicos de saúde.
78. Embora os factores de coagulação sejam fundamentalmente administrados a portadores de hemofilia, o sangue e outros seus derivados obtidos por fraccionamento encontram larga aplicação terapêutica em muitas outras situações, as quais exigem do legislador um tratamento tão semelhante quanto possível. De outro modo, estar-se-á em clara violação do princípio da proibição do tratamento discriminatório, contida no art.º 13.º da Constituição.
II – CONCLUSÕES
De acordo com o que ficou exposto e em nome da atribuição constitucional que lhe é conferida de conduzir à prevenção e reparação de injustiças (art.º 23.º, n.º 1, CRP), entende o Provedor de Justiça fazer uso dos poderes que lhe são confiados pelo seu Estatuto (Lei n.º 9/91, de 9 de Abril), no art.º 20.º, n.º 1, alíneas a) e b) e, como tal, RECOMENDAR:
1.º – A pública assumpção pelo Estado de responsabilidade por administração terapêutica de sangue e produtos seus derivados contaminados por agentes causadores de SIDA, em estabelecimentos públicos de saúde. Importa reconhecer, nomeadamente, a administração nos serviços do Hospital de S.José (HCL) do lote n.º 810536 (P1asmapharm-Seca) de factor VIII, adjudicado em 31.01.1986 pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde e obter esclarecimentos sobre a eventual aplicação de outros lotes com a mesma origem. Por outro lado, o Estado não deve refutar liminarmente riscos causados e eventuais lesões produzidas a partir da administração de factores não comerciais, cujas condições de inocuidade não se julgue terem sido suficientemente garantidas.
2.º – A criação de um sistema de ressarcimento célere, eficaz e adequado aos valores de solidariedade nacional e de respeito pela dignidade humana que a situação dos lesados faz exigir (cfr. Recomendação n.º R(88)4, do Conselho da Europa, “Sobre as Responsabilidades de Saúde no domínio da Transfusão de Sangue” adoptada pelo Comité dos Ministros da Saúde, em 7 de Março de 1988).
Assim, deverá ser constituída uma comissão perante a qual serão apresentados os pedidos de indemnização por todos quantos demonstrem, tão só:
i) terem recebido, por transfusão, sangue ou outro produto seu derivado, em estabelecimentos públicos de saúde nos quais se reconheça terem sido administrados, durante certos períodos, lotes contaminados, importados ou de origem doméstica;
ii) ser o primeiro resultado conhecido de seropositividade posterior aos períodos durante os quais esses mesmos produtos contaminados tenham sido administrados;
iii) terem sido as aludidas administrações de produtos contaminados efectuadas em momento posterior ao do conhecimento difundido de meios de rastreio ; poderá apontar-se o início de 1986, sem excluir a possibilidade de outras situações de manifesta negligência em período anterior, já que os deveres de cuidado se tornaram progressivamente mais exigentes com a evolução dos conhecimentos científicos; assim, há-de ser tido em conta o facto de o método de pré-aquecimento ter merecido ampla divulgação nos meios clínicos e hospitalares a partir de 1984 e sendo certo que apesar das incertezas, indicadas ao tempo, quanto ao sucesso obtido através da sua utilização, as desvantagens eram já tidas por desprezíveis, designadamente porquanto se observava a preservação da actividade coagulante.
3.º – Todos os requerentes deverão ser provisoriamente indemnizados, na pendência do cálculo das respectivas indemnizações definitivas.
4.º – As indemnizações deverão ter em conta a situação económica do lesado e a extensão do seu agregado familiar. Para o efeito, deverá ser aprovada uma tabela indiciária que garanta o respeito essencial pelo princípio da não discriminação infundada.
5.º – As somas a atribuir deverão ser calculadas, tendo também em atenção a evolução da doença e as seguintes categorias definidas pelos “Centers of Disease Control” (EUA), quanto à contaminação pelo VIH :
1. infecção assintomática;
2. infecção aguda;
3. linfadenopatia contínua e generalizada;
4. outras doenças repercutidas pela infecção;
5. SIDA.
(cfr. Relatório da Federação Mundial de Hemofilia sobre o estado da assistência financeira, em 1991)
6.º- As indemnizações deverão seguir o regime definido para a indemnização em renda, pelo art.º 567.º, do Código Civil.
7.º – As indemnizações poderão ser pagas através de um fundo, ao qual será reconhecida personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira. A sua administração deverá ser confiada a um conselho composto por representantes do Estado, dos lesados, de instituições particulares de solidariedade social e das associações públicas com atribuições no campo da saúde.
8.º – As suas receitas terão origem em subvenções públicas, em contribuições das companhias seguradoras e das indústrias farmacêuticas, assim como em somas percebidas a título de sub-rogação nos direitos dos lesados. A falta de obtenção das receitas indicadas em segundo e terceiro lugar não obstará à prestação dos pagamentos.
9.º – A recomendada criação deste fundo, poderá em nada afectar a actividade desenvolvida pelo “Fundo de Apoio Social aos Hemofílicos Infectados com o Vírus da SIDA”, criado por despacho de Sua Excelência, o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, de 31.07.1992 (vd. DR, II Série, de 18.08.1992).
10.º – Apenas no caso de não-aceitação pelos interessados da indemnização proposta pela comissão – e após mediação, eventualmente, do Provedor de Justiça – se justificará o processo arbitral.
11.º – A actividade da Comissão deverá desenvolver-se sem prejuízo do regular funcionamento dos mecanismos criados pelo Decreto-Lei n.º 237/93, de 3 de Julho. Com efeito, o sistema recomendado pretende constituir, relativamente aos processos em curso, um meio gracioso de composição dos litígios, alternativo mas não excludente, cujo bom sucesso, em cada caso, poderá mover as partes à transacção sobre o objecto da causa e à revogação da convenção de arbitragem.
12.º – O Tribunal arbitral, em todo o caso, não deverá necessariamente apreciar tais recursos segundo juízos de equidade, de forma a deixar subsistir a possibilidade de recurso para os Tribunais judiciais comuns.
13.º – Em caso algum, deverá o Tribunal arbitral ficar cingido por limites máximos na fixação de indemnizações.
14.º – O direito ao ressarcimento deverá ser reconhecido, também, a todas as pessoas que foram infectadas através dos lesados por via da prestação de cuidados de saúde ou por consequência de outros factores inerentes às relações familiares.
15.º – O direito ao ressarcimento deverá ser reconhecido, ainda, a todos quantos se encontrem em relação de estreita dependência económica do lesado, na proporção dessa mesma dependência.
16.º – Relativamente ainda aos cidadãos hemofílicos (ou portadores de outras patologias que os situem em relação de estreita dependência da administração de sangue ou seus derivados em estabelecimentos públicos de saúde) que não possam demonstrar a verificação dos pressupostos enunciados na segunda conclusão, deverá, com a maior brevidade, ser instituído um meio de atribuição de compensações semelhante ao facultado a vítimas de acidentes catastróficos ou ao resultante do Decreto-Lei n.º 324/85, de 6 de Agosto (servidores do Estado atingidos por actos de terrorismo), em cujo preâmbulo se invocam “razões de interesse público ou de ordem moral”.
Esta via, subsidiária do sistema recomendado, não pode deixar de ser exigida, quanto mais não seja, em nome do princípio constitucional da solidariedade, inscrito na parte final do art.º 1.º da lei fundamental.
17.º – Por fim e relativamente a todos os cidadãos portugueses que se apresentem seropositivos deverá reforçar-se um sistema nacional de entreajuda, o qual visará propiciar os seguintes benefícios sociais:
a)Tratamento domiciliário, com vista a garantir a preservação do ambiente familiar dos doentes e uma melhor qualidade de vida, evitando frequentes deslocações a estabelecimentos de saúde e possibilitando um aproveitamento mais adequado do número de camas hospitalares. Do mesmo passo, contribuir-se-á para a salvaguarda da reserva de intimidade da vida privada;
b)Realização de programas culturais e de férias, de forma a motivar a plena integração dos doentes nas diversas comunidades e grupos sociais dos quais fazem parte;
c) Concessão de facilidades especiais na utilização de transportes públicos (v.g. tarifas reduzidas, direitos especiais de marcação antecipada de lugares), por recurso a esquemas que evitem qualquer forma de exposição involuntária do estado clínico ou mesmo de estigmatização social;
d)Concessão de linhas de crédito bonificado para aquisição de habitação própria e de meio de transporte próprio;
e) Concessão dos seguintes benefícios fiscais:
i) isenção de sisa na aquisição de prédio ou fracção autónoma de prédio urbano, bem como de terreno para construção destinados exclusivamente à habitação;
ii)isenção de imposto sobre as sucessões e doações nas transmissões a favor de quaisquer beneficiários;
iii) ao nível do imposto sobre o rendimento a equiparação a deficientes para efeitos de aplicação do disposto no art.º 44.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-lei n.º 215/89, de 1 de Julho;
iv) a elevação em 50% do limite às deduções específicas previstas no art.º 25.°, n.º 1, do Código do IRS;
v)elevação em 50% dos limites de deduções à colecta previstos nas alíneas a), b) e c), do art.º 80.º, n.° 1, do Código do IRS;
vi) aplicação das tabelas mensais de retenção na fonte específicas para os deficientes titulares de rendimentos do trabalho dependente e de pensões;
vii) isenção do imposto automóvel na aquisição de veículos com motores a gasolina ou a gasóleo, com cilindrada respectivamente até 1600 e 2000 cc.
Recordo a Vossa Excelência, ser a presente RECOMENDAÇÃO formulada do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Estatuto aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril. Como tal, vincula o seu destinatário ao cumprimento dos deveres contidos no sem prejuízo da informação a este Órgão do Estado sobre todas as medidas eventualmente tomadas quanto aos fins visados, nos termos do art.º 29.º, n.º 4 (idem), para cujo cumprimento é fixado o prazo máximo de quinze dias.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL