Ministro da Saúde
Rec. nº 177/94
Processo: I.P. 30/92
Data: 1994-12-12
Área: A4
Assunto: SAÚDE
Sequência: Não acatada
Desde 1992, têm vindo a ser apresentadas múltiplas reclamações visando o regime das taxas moderadoras estabelecido no Decreto-Lei nº 54/92, de 11 de Abril, nomeadamente a insuficiência da lista das isenções contempladas no seu artº 2º, nº 1, bem como a indefinição dos meios de prova correspondentes e referidos no nº 2 do mesmo normativo.
A maior parte das reclamações têm como objecto o disposto no artº 2, nº 1, que prevê em termos insuficientes, as razões de natureza médica susceptiveis de isentarem determinados grupos de cidadãos do pagamento no acesso aos cuidados de saúde.
Invocam que, para além das patologias contempladas, muitas outras deveriam ser consideradas, pois pela sua cronicidade e agudizações obrigam os doentes a recorrerem frequentemente aos cuidados de saúde, situação que se traduz em custos, por vezes incomportáveis, com os seus meios de subsistência.
Tendo em vista o início da instrução das mesmas reclamações, bem como a tentativa de delinear os traços essenciais e orientadores da estratégia a adoptar relativamente ao assunto ora em apreço e, designadamente, com o objectivo de percepcionar a posição das várias entidades visadas quanto às questões fulcrais em causa, foram solicitados esclarecimentos a diversas entidades.
Estudada a matéria na sua generalidade e analisado o conjunto de questões que se colocam acerca da problemática das taxas moderadoras e do direito à saúde, privilegiei uma dupla perspectiva (jurídica e médica), procurando delimitar os problemas que se colocam à luz de princípios de justiça, equidade e correcção legal do sistema.
Compulsando todos os elementos reunidos, nomeadamente os que resultaram das diligências anteriormente referidas, entendo, ao abrigo da competência que me é conferida pelo artº 20º, nº 1, al. b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, dever
RECOMENDAR
a Vossa Excelência se digne proceder à alteração do actual sistema das taxas moderadoras, previsto no DECRETO-LEI Nº 54/92, DE 11 DE ABRIL, nos seguintes termos:
I
(Princípios Gerais)
Correcção do sistema segundo os princípios da justiça e da equidade.
De acordo com aqueles dois princípios, alguns dos que actualmente pagam taxas moderadoras, deverão ser colocados na categoria de isentos, e outros, actualmente isentos, passarão a pagar taxa moderadora.
O actual sistema de gratuitidade tendencial consagrado na Constituição, assume uma dupla perspectiva objectiva (enquanto qualificativa do Serviço Nacional de Saúde) e subjectiva (enquanto relacionada com as condições económicas e sociais dos cidadãos), o que permite estabelecer uma conexão entre gratuitidade e carência económica dos destinatários.
Na verdade, na medida em que o texto constitucional faz depender o carácter tendencialmente gratuito do Sistema Nacional de Saúde das condições económicas e sociais dos cidadãos dele beneficiários, tal preceito viabiliza várias soluções, desde a gratuitidade absoluta para os mais carenciados à fixação de taxas moderadoras.
No entanto, a linha de fronteira entre uns e outros é, em termos de rendimentos, o salário mínimo nacional.
II
(Correcções ao Decreto-Lei nº 54/92, de 11 de Abril)
Artigo 2º, nº 1, alínea b)
Deverão estar isentos do pagamento das taxas moderadoras os beneficiãrios do abono de família e não apenas as crianças até aos 12 anos de idade.
A dependência dos pais em termos económicos prolonga-se ou pode prolongar-se até final da formação escolar.
É esse o critério utilizado pelo Decreto-Lei nº 197/77, de 17 de Maio, no que se refere ao limite de idade para a concessão do abono de família.
Equiparar tais condições às de isenção do pagamento de taxas moderadoras, significa pugnar pela harmonia do sistema jurídico como um todo, nomedamente quando as circunstâncias e as situações devam ter consequências comuns. Se é possível beneficiar-se do abono de família até aos 24 anos de idade, não se encontra fundamento para não se poder beneficiar de isenção de pagamento das taxas moderadoras até semelhante idade, sendo certo que em ambos os casos se atenderia aos encargos familiares.
O sistema de fiscalização desta isenção poderia ser idêntico ao do abono de família, isto é, isenção de qualquer justificação escolar até aos 14 anos; justificação de matricula em estabelecimento de ensino secundário ou equiparável, dos 14 aos 18 anos e de justificação de matricula em estabelecimento de ensino superior ou equiparável, dos 18 aos 25 anos.
Artigo 2º, nº 1, alínea c)
Deverão ser contemplados pela isenção de pagamento das taxas moderadoras todos os deficientes pelo facto de o serem.
A isenção ora em apreço, deve ter como fundamento e ser atribuída em função da deficiência, e apenas desta, e não das condições para se beneficiar da pensão social ou de invalidez, ou do rendimento que aufere, ou do rendimento do agregado familiar como actualmente acontece. Na verdade, o abono complementar a crianças e jovens deficientes é concedido até aos 24 anos de idade, em função da deficiência (artº 5º do DL nº 170/80, de 29 de Maio), mas, com idade superior a 24 anos, terão direito a um subsídio mensal vitalício, se não estiverem em condições de beneficiar da pensão social ou de invalidez (artº 6º, idem);
Fazer depender a isenção de pagamento das taxas moderadoras da deficiência e não de outro qualquer benefício de segurança social é também uma reclamação da Associação Portuguesa de Deficientes, pois alega que o novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, relativamente a pessoas com deficiência, não preveniu os dispositivos necessários e adequados com vista a simplificar, a todos os níveis, o acesso à saúde por parte destes utentes privilegiados.
Com efeito, a elevada frequência com que têm de recorrer aos serviços de saúde, a inacessibilidade prática ao ensino e a grande percentagem de desemprego que os afecta, justificam a isenção proposta.
Artigo 2º, nº 1, alínea e)
Relativamente a contribuintes casados, deverá consagrar-se na lei o quociente conjugal utilizado na legislação fiscal (splitting system) e no §4 da circular normativa nº 4 de 28/4/92 (Doc. 1 do proc. respeitante a esta recomendação).
Igualmente, deverá estabelecer-se uma ponderação percentual a acrescer aos rendimentos sujeitos a isenção por cada dependente a cargo.
Este alargamento deverá ser acompanhado de um maior rigor na verificação das situações em que é excedido o salário mínimo nacional, quer nos casos em que os pensionistas auferem mais que uma pensão, quer naqueles em que são simultâneamente trabalhadores no activo e inscritos na Segurança Social ou Caixa Geral de Aposentações e, tendo pensão de sobrevivência, auferem outros rendimentos.
Artigo 2º, nº 1, alínea i)
Os trabalhadores independentes deverão ser incluídos nesta alínea e sujeitos a limites idênticos aos dos trabalhadores por conta de outrém, já que não se vislumbra qualquer razão para um tratamento desigual.
Relativamente a contribuintes casados, e quando existam dependentes a cargo, aplica-se regime idêntico ao proposto a esse respeito a propósito da alínea e) do nº 2 do artº 2º.
Artigo 2º, nº 1, alínea j)
Deverão ser também isentos do pagamento das taxas moderadoras os acidentados do trabalho com incapacidade não inferior a 50%.
Sempre que o exame seja feito por ordem do Tribunal, a cobrança da taxa moderadora deve efectuar-se à entidade responsável mediante apresentação de factura passada em seu nome e não directamente aos utentes.
Artigo 2º, nº 1, alínea 1)
Devem ser estabelecidos critérios e parâmetros de gravidade e cronicidade das doenças, aferidas por relatório médico, que possibilitem, para além do estabelecimento de uma lista exemplificativa de situações nosolágicas, o seu constante alargamento e apreciação individual de casos não compreendidos na referida listagem.
Esta apreciação individual poderá ser feita por uma Comissão que avalie as condições de isenção do pagamento de taxas moderadoras, ou de outros benefícios facilitadores da assistência pelos serviços oficiais, conforme sugestão do Colégio de Medicina Interna no oficio nº …/CE de 29/6/94 (Doc. 2 no proc. da presente recomendação).
Assim, deve ser mantida uma lista não taxativa de situações nosológicas, já que a sua existência é absolutamente indispensável como elemento de referência.
Todavia, como a lista actualmente consagrada no artº 2º, nº 1, alínea l) é manifestamente insuficiente, deverão acrescentar-se as patologias que os vários Colégios de Especialidade entenderam poderem fundamentar a isenção de pagamento das taxas moderadoras (Docs. 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 no proc. da presente recomendação).
Nestes termos,
a) Na área da Cardiologia:
a.1) Insuficientes cardíacos crónicos;
a.2) Doença coronária;
a.3) doentes valvulares crónicos;
a.4) Arritmias;
a.5) Hipertensão arterial;
a.6) Cardiopatias congénitas com necessidade de vigilância ou terapêutica regular.
b) Na área da Imuno-alergologia:
– Asma Brônquica.
c) Na área das Doenças Infecciosas:
c.1) Hepatites viricas;
c.2) Sifilis e,
c.3) todas as doenças sexualmente transmissiveis.
d) Na área da Medicina Fisica e Reabilitação:
d.1) Hemiplegia;
d.2) Paraplegia;
d.3) Tetraplegia;
d.4) Doença motora cerebral;
d.5) Doença degenerativa do sistema nervoso central;
d.6) Amputação de membros;
d.7) Insuficiência vascular periférica grave;
d.8) Insuficiência respiratória crónica;
d.9) Artrite reumatoíde e
d.10) outros Reumatismos inflamatórios.
e) Na área Dermatologia:
e.1) Neoplasias cutâneas malignas;
e.2) Genodermatoses com compromisso funcional ou expressão clinica importante;
e.3) Dermatoses crónicas (Psoriase, Ulcera de perna, outras dermatoses crónicas com compromisso funcional ou expressão clínica importante);
e.4) Doença de Behçet;
e.5) Dermatoses bolhosas;
e.6) Doenças transmitidas sexualmente;
e.7) Lepra e
e.8) Tuberculose cutânea.
f) Na área da Endocrinologia:
f.1) Tumores hipofisários;
f.2) Hipopituitarismos;
f.3) Insuficiências suprarenais crónicas;
f.4) Hipotiroidismo congénito e
f.5) Doenças metabólicas deformantes dos ossos.
g) Na área da Oftalmologia:
g.1) Glaucoma;
g.2) Diabetes Ocular.
h) Na área da Medicina Interna:
h.1) Doentes transplantados;
h.2) Doentes insuficientes respiratórios crónicos por doenças neuromusculares, ou da parede toráxica ou broncopulmunares que necessitem de Oxigenoterapia diária domiciliária, ou de ventilação mecânica domiciliária e
h.3) Mucoviscidose.
i) Na área da Neurologia:
– doentes neurológicos crónicos e/ou irreversíveis que requeiram apoio médico, terapêutico e/ou meios complementares de diagnóstico, com carácter regular.
j) Na área da Reumatologia:
j.1) Artrite Reumatoide;
j.2) Lupus eritematoso sistémico;
j.3) Esclerodermia;
j.4) Osteoporose documentada;
l) Na área da Pediatria:
l.1) Fibrose quistica;
l.2) Paralisia cerebral;
l.3) Displasias broncopulmonares;
l.4) Erros inatos do metabolismo;
l.5) Anemias crónicas;
l.6) Coaqulopatias crónicas;
l.7) todas as doenças do tecido conjuntivo;
l.8) Doenças auto-imunes;
l.9) Cardiopatias congénitas ou adquiridas crónicas;
l.10) Epilepsia;
l.11) Hidrocefalia;
l.12) Doença celíaca e outras doenças de má absorção e intolerâncias alimentares;
l.13) Cromosopatias;
l.14) Doença inflamatória crónica do intestino
l.15) Hepatopatias crónicas;
l.16) Hipertensão portal;
l.17) Epidermolise bolhosa;
l.18) Endocrinopatias crónicas;
l.19) Metropatias crónicas;
l.20) todos os atrasos mentais;
l.21) doenças neurológicas degenerativas;
l.22) Displasias osseas;
l.23) Miopatias;
l.24) Artrogripose;
l.25) Deficites imunitários congénitos ou adquiridos (sem ser HIV);
l.26) Deficites sensoriais;
l.27) Doenças malformativas e
l.28) Deficites motores.
Artigo 2º, nº 1, alínea o)
Deverão ser abrangidos os alcoólicos crónicos e toxicodependentes, mesmo que não inseridos em programas de recuperação no âmbito de serviços oficiais, desde que tenham idêntico objecto.
III
(Situações omissas no artº 2º)
1 – O cuidado de saúde deve ser prestado independentemente do pagamento, como decorre da circular nº 6/92, de 21/4/92 (Doc. 13 no proc. da presente recomendação).
Esta regra deveria constar do Decreto-Lei.
2 – Os reclusos deveriam incluir-se na alinea f) do nº 1 do artigo 2º;
3 – O regime das pessoas sem recursos – indigentes – deveria constar de uma nova alínea do nº 1 do artigo 2º, desde que sujeitos a prova de insuficiência de rendimentos.
4 – Os beneficiários das Misericórdias, deveriam ser abrangidos no artigo 2º nº 1 alínea g).
IV
(Artigo 2º, nº 2 – Meios de prova)
A inserção dos meios de prova em lei ou regulamento é limitativa e pode ter efeitos perversos. Porém,
1 – É útil a sua divulgação em desdobrável explicativo e nele deverão constar todos os esclarecimentos e interpretações já efectuados nas circulares normativas nº 2 de 31/3/92, nº 3/DO de 11/3/92 e nº 6 de 21/4/92 (Docs. 14, 15 e 13 no proc. da presente recomendação), bem como as que venham a ser publicadas sobre a matéria.
2 – Devem ser aceites todos os meios de prova, incluindo a testemunhal (cfr. nº V da Resolução 21/87 do Conselho de Ministros, in D.R. – I Série de 29/5/87).
V
(Informação)
É necessário providenciar meios para uma maior informação sobre as taxas moderadoras, para evitar que pesem mais nos orçamentos das famílias de médios e baixos recursos. Na verdade, nem todos os cidadãos isentos de pagamento das taxas moderadoras usufruem do seu direito, essencialmente por falta de informação.
O utente de médios e baixos recursos, não está informado nem sobre as consequências da doença ou disfunção, nem sobre as soluções alternativas para as controlar, havendo utentes realmente necessitados que serão dissuadidos de recorrer ao sistema de saúde tempestivamente, vindo a utilizá-lo mais tarde.
Com mais informação evita-se na maior parte dos casos a duplicidade de cuidados.
Impõe-se a divulgação em termos mais eficientes do significado dos diversos Serviços de Atendimento Permanente, com o objectivo de estes cumprirem na prática e efectivamente a sua missão alternativa às urgências.
Cumpre-me, por fim, pedir a Vossa Excelência, que se digne informar-me sobre a sequência desta Recomendação, nos termos do artº 38º, nº 2, da Lei nº 9/91 de 9 de Abril.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel
Anexo: 15 documentos (no proc. da presente recomendação)