Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
Rec. nº 70/A/94
Proc. R-345/94
Data: 1994-03-26
Área: A2
ASSUNTO: CONTRIBUIÇÕES E IMPOSTOS – IRS – CORRECÇÃO DA LIQUIDAÇÃO DO IRS
Sequência:
O Senhor …, contribuinte fiscal nº …, expôs à Provedoria de Justiça a situação verificada com a tributação do seu agregado familiar em IRS, no ano de 1991, que a Administração Fiscal teve oportunidade de analisar na sequência de dois requerimentos dirigidos, pelo contribuinte, a Sua Excelência o Ministro das Finanças – processos nºs …/93 e …/93, da Direcção de Serviços do IRS.
Os despachos exarados sobre as informações nºs IRS-…/93 e IRS-…/93, relativas, respectivamente, a cada um daqueles processos, foram no sentido do indeferimento do pedido de correcção da liquidação referente ao ano de 1991.
O fundamento invocado prende-se com a natureza do erro cuja correcção o contribuinte solicita, erro que não pode deixar de lhe ser imputado uma vez que, no preenchimento da declaração periódica referente ao ano de 1991, declarou, por lapso, rendimentos do ano anterior, rendimentos esses que já havia feito constar – correctamente – da sua declaração de rendimentos de 1990.
Deste facto, extrai a Administração Fiscal dois motivos de indeferimento da pretensão do contribuinte em ver corrigida a liquidação do imposto referente ao ano de 1991:
a) Por um lado, o contribuinte não recorreu, dentro do prazo previsto no artigo 123º do Código de Processo Tributário, aos expedientes previstos no artigo 131º do Código do IRS para obter tal correcção reclamação graciosa ou impugnação judicial;
b) Por outro lado, a Administração Fiscal está impossibilitada de proceder à revisão oficiosa do acto de liquidação, atento o disposto no artigo 94º, alínea b), do Código de Processo Tributário, que, tratando-se de revisão a favor do contribuinte, limita a utilização deste mecanismo aos casos de erro imputável aos serviços.
Creio, porém, que a interpretação e conjugação daquelas normas com outras disposições e princípios actualmente vigentes – e igualmente aplicáveis a este caso concreto – possibilita, se é que não impõe, uma solução mais consentânea com a pretensão do contribuinte que, no fundo, visa apenas obter a justa e devida adequação da tributação efectivamente realizada à situação de facto que lhe está subjacente.
O artigo 16º do Código de Processo Tributário, transpondo para o âmbito da Administração Fiscal o princípio constante do artigo 266º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, consagra a exclusiva subordinação da actividade tributária “ao interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos”, no seguimento, aliás, do que a melhor jurisprudência já vinha afirmando – veja-se o excerto do Acórdão do Tribunal Tributário de 2ª instância, de 03/11/88, in CTF nº 353, págs 250 a 259, segundo o qual:
«Os orgãos e agentes da Administração Fiscal devem actuar com justiça e imparcialidade no exercício das suas funções e, em qualquer caso, segundo as regras de equidade e boa fé, tudo conforme ao princípio da legalidade, limite e fundamento da acção administrativa».
Não basta, pois, uma simples aplicação “automática” da lei ao caso concreto para dar cumprimento integral ao princípio da legalidade. Para tal, sempre haverá que mitigar essa operação de aplicação da lei com a aplicação dos mencionados critérios de justiça, equidade e boa-fé.
Sem querer, porém, perder de vista o caso concreto do contribuinte atrás identificado, permito-me colocar especial ênfase no tipo de erro praticado, cuja constatação se revela particularmente simples para os serviços de fiscalização tributária, ainda que para tal tenha o contribuinte que fazer prova documental do que afirma, isto é, de que os montantes declarados no campo 14, quadro 4, do anexo A da declaração modelo 2 referente a 1991 (5.082.257$00) e no campo 08, quadro 4, do anexo B da mesma declaração (5.374.224$00), incluem rendimentos de 1991 – como seria suposto -, mas também erradamente, rendimentos referentes ao ano de 1990, que já haviam sido declarados na declaração referente àquele ano, sendo que os valores a constar dos mencionados quadros da declaração de 1991 deveriam ter sido, 2.900.681$00 e 2.826.612$00, respectivamente.
Dir-se-á que os prazos de que o contribuinte dispõe para exercer os seus direitos – de reclamação ou impugnação – são prazos peremptórios, cujo incumprimento extingue a possibilidade de o contribuinte exercer aqueles direitos.
Porém, não é menos verdade que a correcção da liquidação não se encontra única e exclusivamente dependente do exercício dos direitos de reclamação ou impugnação. E se assiste razão à Administração Fiscal ao invocar o artigo 94º, alínea b), do Código de Processo Tributário, para afastar a hipótese de revisão oficiosa da liquidação, por inexistência de erro imputável aos serviços, tal argumento já não colhe perante o disposto no nº 1, do artigo 35º, do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho, que dispõe:
«Devem ser restituídas as importâncias de quaisquer receitas que tenham dado entrada nos cofres do Estado sem direito a essa arrecadação».
A questão é particularmente importante no âmbito fiscal, quando é certo que está em causa uma relação Estado/contribuinte, encontrando-se este último numa situação particularmente onerosa, dado que sobre ele recaem deveres cujo cumprimento nem sempre se apresenta fácil para aqueles que, ao contrário do Fisco, não dispõem de meios e/ou conhecimentos adequados para o efeito, sendo de apenas 90 dias o prazo de que dispõem para corrigir erros com consequências tão graves como o aumento do imposto devido de cerca de 300.000$00 para mais de 900.000$00.
É, precisamente, neste tipo de relações, em que uma das partes detém uma posição de supremacia – quer porque dispõe de mais e melhores meios, quer porque detém poderes de autoridade que a outra parte não possui -, que assumem particular relevância os princípios da boa fé, da justiça material e do respeito pelos direitos e interesses legítimos dos particulares.
É com base não só no supra citado artigo 35º do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho, mas, em especial, na necessidade de respeito por aqueles princípios, que entendo justificar-se a intervenção do Provedor de Justiça neste caso.
Aliás, é nesta área que a actuação deste órgão do Estado pode – e deve -, contribuir para uma aplicação do direito mais consentânea com os direitos e interesses dos cidadãos, nomeadamente face àquelas actuações dos poderes públicos que, ainda que adstritas à rigorosa aplicação da lei, pecam por não atender, com a necessária flexibilidade, às particulariedades de cada caso concreto.
Precisamente porque nem sempre através de uma aplicação rigorosa da lei se obtém a solução mais justa, atribui a alínea a), do nº 1, do artigo 20º, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, ao Provedor de Justiça, competência para:
«Dirigir recomendações aos órgãos competentes com vista à correcção de actos ilegais ou injustos dos poderes públicos…»
Julgo poder afirmar que, no presente caso, estamos perante uma situação simultaneamente ilegal e injusta:
Ilegal, porque o Estado continua a arrecadar – enquanto o contribuinte vai liquidando as prestações de uma dívida que só em parte resulta da sua situação tributária -, importâncias que sabe não lhe serem devidas, fazendo letra morta do já várias vezes citado artigo 35º, do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho, numa actuação que configura, claramente, a violação do princípio da boa fé, na medida em que, com esta actuação, o Estado viola, conscientemente, direitos e interesses legítimos dos contribuintes.
Injusta, porque à responsabilidade declarativa que já onera o contribuinte, faz acrescer o carácter irreparável dos erros cometidos, desde que não detectados no (incompreensivelmente) curto prazo de 90 dias de que dispõe para o efeito, independentemente de quaisquer considerações acerca da desculpabilidade de tais erros.
Atento o exposto e, ainda, o sempre presente objectivo de aproximação da tributação efectiva à verdadeira capacidade tributária dos contribuintes, formulo a seguinte
RECOMENDAÇÃO
Que seja revogado o acto de liquidação de IRS referente aos rendimentos auferidos pelo Reclamante no ano de 1991, reformulando-se o cálculo do imposto devido, de modo a ser levada em consideração a correcção dos erros cometidos pelo contribuinte aquando do preenchimento e entrega da respectiva declaração periódica, dos quais já deu conta à Administração Fiscal.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel