Ministra da Educação

Processo:R.0294-95
Rec.n° 86-A/95
Data:1995-09-06
Área: A4

Assunto:FUNÇÃO PÚBLICA – PROCESSO DISCIPLINAR – AMNISTIA – ARQUIVAMENTO – DIREITO DE AUDIÊNCIA – RECURSO.

Sequência: Acatada

I- Os factos:

1. A Inspectora-Principal do quadro único de pessoal dos organismos e serviços centrais e regionais do Ministério da Educação, colocada na Delegação Regional do Norte da Inspecção-Geral de Educação, Licenciada …, reclamou para esta Provedoria de Justiça, em 31/1/95, do seguinte:

Tendo-lhe sido instaurado processo disciplinar, em relação ao qual não chegou a ser concluída a instrução, deduzida a
respectiva acusação, nem garantido o direito de defesa, foi o mesmo mandado arquivar, por aplicação da amnistia decretada pela
Lei n° 15/94, de 11 de Maio, com base num parecer cujos fundamentos a reclamante entende que prejudicam o seu direito de
defesa, bem como a sua reputação profissional.

1.1. Assim, na sequência de processo de inquérito prévio, e por despacho, de 2/12/93, do então Secretário de Estado dos Ensinos Básico e Secundário, foi mandado instaurar procedimento disciplinar à reclamante for factos relacionados com a forma como
estava a decorrer o processo de implementação do novo sistema de avaliação dos alunos do ensino básico (7° ano).

1.2. Dado início à instrução do processo, em 5/5/94, não chegou, porém, a ser formalizada a acusação, nos termos do n° 2 do
artigo 57° do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei n° 24/84, de 16 de Janeiro, nem a arguida foi notificada para efeitos
de defesa, nos termos do artigo 59° do mesmo diploma.

1.3. Com efeito, através do ofício n° …, de 28/10/94, da Delegação Regional do Norte da I.G.E., a reclamante foi notificada do despacho da Senhora Inspectora-Geral da Educação, de 30/9/94, o qual, exarado sobre o Parecer n° 228 / GJ / 94 da Inspecção Geral da Educação, mandava arquivar o processo nos termos da Lei n° 15/94. (cfr. doc. 1 anexo ).

1.4. É contra a fundamentação do referido despacho constante do citado parecer que a reclamante se insurge, na medida em que
nele se dão como provados factos cuja menção, da forma como é feita, considera lesarem o seu direito de defesa e os seu bom nome profissional.

1.5. Segundo a reclamante, não é admissível que o citado parecer emita juízos finais e conclusivos sobre a actuação da
reclamante, porquanto tal actuação não foi cabalmente apreciada e discutida nos termos da lei, pelo que se viola o artigo 57° do
Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei n° 24/84, de 16 de Janeiro.

1.6. Deste modo, carece de fundamentação o despacho, de 30/9/94, da Senhora Inspectora-Geral, o qual se deveria limitar a
aplicar a Lei n° 15/94, violando, ainda, os direitos de defesa e ao bom nome e a dignidade pessoal da reclamante, legal e
constitucionalmente garantidos.

2.Diz-se no ponto 2 do citado Parecer n° 228/GJ/94:
“2. Instruído exaustivamente o processo, foram recolhidas provas suficientes que permitiram concluir ter a inspectora, só depois de terminado o ano lectivo de 1992/93, informado as autoridades competentes sobre a forma anómala como estava a decorrer o processo de implementação do novo sistema de avaliação dos alunos do 7° ano.
Tal infracção seria enquadrável na alínea e) do n° 1 do artigo 24° do Estatuto disciplinar, a que corresponde a pena da alínea c) do n° 1 do artigo 11° do mesmo Estatuto-Suspensão.
3. Contudo, como:
a) Os factos delituosos que se encontram provados nos autos foram praticados em data anterior a 16 de Março de 1994;
b) O arguido nunca foi punido disciplinarmente;
c) Os factos imputados não integram a prática de qualquer ilícito criminal;
Entendemos estarem reunidos todos os requisitos para que o presente procedimento disciplinar seja abrangido pela amnistia concedida pela Lei n° 15/94, de 11 de Maio.
4. Face ao exposto deve o presente procedimento disciplinar ser considerado extinto.”

3.Sobre este parecer a Senhora Inspectora-Geral da Educação exarou, em 30/9/94, o seguinte despacho:” Concordo. Arquive-se, nos termos da L 15/94.”

4.Deste acto foi apresentado pela reclamante recurso hierárquico, o qual veio a merecer despacho de indeferimento de V. Exa., em 5/6/95, exarado sobre o Parecer n° 80 / GJ / 95 da Inspecção-Geral da Educação.

5.Porém, anteriormente, na sequência da queixa apresentada pela reclamante, foi oficiado por esta Provedoria de Justiça à Senhora
Inspectora-Geral de Educação ( cfr. ofício n° …, de 24/2/95, doc. 2, em anexo ), alertando-se para a forma como tinha sido
aplicada ao referido procedimento a Lei n° 15/94, face ao próprio regime da amnistia, tal como resulta do artigo 126° do Código
Penal. Questionava-se, ainda, sobre se o parecer controvertido se teria limitado a verificar o preenchimento dos pressupostos da
amnistia ao caso concreto, parecendo ir mais longe e exprimir um juízo conclusivo sobre os factos cuja prática fora imputada à
reclamante e que justificara a instauração do procedimento disciplinar.

6.Através do ofício …, de 8/6/95 da Inspecção-Geral da Educação foi comunicado a esta Provedoria o Parecer n° 80/GJ/95,
(Cfr, doc. 3, em anexo ), bem como o despacho de indeferimento proferido por V. Exª no recurso hierárquico interposto pela
interessada.

7. No referido parecer considera-se contraditória a decisão da recorrente em pretender aceitar o arquivamento por força da
aplicação da lei da amnistia, vindo, todavia, atacar-se os termos e fundamentos da decisão de arquivamento do procedimento.

8. Segundo o mesmo parecer a aplicação da lei da amnistia exige que se esteja perante “efectivas infracções”, justificando-se a
conclusão retirada, a seguir, para o não provimento do recurso, do seguinte modo: ” 3.4. Temos, portanto, que das duas uma, ou o arguido aceitava a aplicação da Lei da amnistia, ciente de que isso implicava uma cominação em abstracto de pena disciplinar não
superior a suspensão, o que sempre se teria de referir, ou vinha solicitar, no prazo de 10 dias, a não aplicação da lei, a fim de, eventualmente, provar a inexistência de infracção.”

II- O direito:

9.À data em que foi aplicada a amnistia à reclamante, pendia sobre esta uma mera presunção de infracção e não uma infracção
efectiva, uma vez que ainda não tinha sido apurada a responsabilidade disciplinar a que o procedimento disciplinar se destina (enquanto sucessão de actos e formalidades destinadas ao apuramento da verdade), com salvaguarda do direito de audiência e defesa do arguido, cuja falta gera nulidade insuprível, nos termos do n° 1 do artigo 42° do Decreto-Lei n° 24/84.

10. Por outro lado, é sabido como a doutrina tem entendido que, a par do direito de audiência e defesa do arguido em processo
disciplinar, garantido, igualmente, no n° 3 do artigo 269° da Constituição, deverão, em matéria de regime de defesa em processo
disciplinar, ser adaptadas, no aplicável, as regras de defesa consagradas para o processo penal no artigo 32° da Constituição,
maxime, o disposto no seu n° 2, enquanto presume a inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.

11. Com efeito, no caso vertente, não está em causa que o facto cuja prática foi imputada à reclamante seja cominado,
abstractamente, com a referida pena, inferior a suspensão, coberta pela amnistia. Tal cominação é aceite pala reclamante que reclama a aplicação da Lei n° 15/94 ao seu caso concreto.

12. O que a reclamante não aceita é que, concomitantemente à necessária verificação dos pressupostos da aplicação da mesma lei
aos factos imputados ( aos quais, apurada a sua responsabilidade, abstractamente, a pena de suspensão), sejam expressos juízos
conclusivos sobre a prática da infracção; a reclamante tinha sido objecto da instauração de um procedimento destinado a averiguar a existência de infracção, o qual, por força da lei da amnistia, ficou extinto, não tendo chegado ao seu termo.

13. Não parece, pois, legítimo, a partir desse momento, dar a infracção como provada, já que as provas, porventura obtidas no
decorrer do processo disciplinar, não possuem carácter definitivo, antes da conclusão do mesmo, com a notificação da decisão ao
arguido.

14. Como se sabe, a doutrina, na esteira do ensinamento de BELEZA DOS SANTOS, distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, sendo a primeira, por anterior à condenação, susceptível de extinguir o próprio procedimento, ( no caso vertente, o
procedimento disciplinar), ao contrário da segunda que apenas faz cessar a execução da pena (Cfr. n° 1 do art° 126° do Código
Penal).

15.Parece útil transcrever, pelo seu significado, o que se refere, a este respeito, no Parecer da PGR, n° 134/80 (1):
“Para LUIS OSÓRIO o objecto da amnistia é a incriminação existente e o efeito dela é a não aplicação dessa incriminação; a amnistia aniquila os factos incriminados … de sorte que aos olhos da justiça, por uma ficção legal, consideram-se como se nunca tivessem existido, salvo os direitos de terceiros em relação à acção civil para a reparação do dano.
Como lei do esquecimento, apaga juridicamente a infracção, destrói retroactivamente os seus efeitos e se não pode destruir aqueles que se produziram e são indestrutíveis, faz desaparecer todos aqueles cuja acção persiste quando a lei amnistiadora se publicou.

A amnistia é um acto jurídico que retira retroactivamente a um facto o seu carácter delituoso, suprimindo-lhe o elemento legal que tinha permitido qualificá-lo como infracção.
A infracção deixa de ter relevância jurídica, já que a amnistia como que a faz desaparecer do mundo do direito; é a própria acção com todas as suas consequências que o legislador quer tolher, apagando a falta definitivamente na memória dos homens”.

16. Por outro lado, MARCELO CAETANO (2) comparava a amnistia própria (concedida antes da condenação ) com a absolvição:

” A lei que concede a amnistia pode referir-se a infracções ainda não punidas ou a penas aplicadas. Quando se refira às faltas, cessa a responsabilidade disciplinar dos arguidos pela comissão de alguma delas, devendo arquivar-se os processos em curso e pôr termo à suspensão preventiva que tenha neles tido origem , com reparação de vencimentos como no caso de absolvição.
Amnistiadas penas aplicadas e que estejam a ser cumpridas, cessam os efeitos ainda não produzidos mas ficam intactos os
já passados. Assim as suspensões de exercício e vencimentos ficarão reduzidas aos dias já decorridos, voltando imediatamente o funcionário ao serviço.”

17. A idênticas conclusões se chegou no Acordão do S.T.J., de 9/10/68 (3), no qual, em procedimento penal, se considerou
irrelevante a confissão de factos feita pelo arguido, durante a instrução preparatória.

18. Esta orientação segundo a qual a amnistia própria deve ser equiparada à absolvição, destruindo mesmo efeitos já produzidos,
resulta do disposto n° 5 do artigo 6° e, “a contrario,” do n° 4 do artigo 11°, ambos do Estatuto Disciplinar.

19. Deste modo e, por maioria de razão, forçoso é concluir, no caso presente, não ser legítimo retirar quaisquer consequências
dos resultados a que, porventura, já se tivesse chegado no âmbito do processo disciplinar instaurado à reclamante, uma vez que os
mesmos só poderiam produzir efeitos, após conclusão do processo disciplinar.

20. Ora, não é isso o que resulta do parecer sobre o qual foi decidida a extinção do procedimento por força da lei da amnistia .
Com efeito, é sabido que o despacho de “concordo” sobre anterior informação ou parecer se apropria dos fundamentos
daqueles ( Cfr. n° 1 do artigo 125° do Código do Procedimento Administrativo ).
Porém, no parecer em causa refere-se, mau grado a aplicação da amnistia, que “foram recolhidas provas suficientes que
permitiram concluir ter a inspectora…” (segue-se a descrição da infracção que lhe era imputada ).

21. Na medida em que se extraem conclusões sobre os resultados a que se chegara já no âmbito do processo disciplinar, pode dizer-se que, pelo referido despacho, são afectados direitos fundamentais da reclamante, como o direito ao bom nome e reputação, consagrado no artigo 26° da Constituição.

22. É claro que, com a mera aplicação da amnistia, a reclamante não conseguirá ver, formalmente, reconhecida a sua inocência. Para tal teria de lançar mão de acção cível declarativa, no caso de demonstrar ter nisso interesse ( Cfr. Parecer da PGR n° 134/80,
loc. cit. p 176). O que, no caso presente, nem será necessário por não ter chegado a haver condenação, pese embora o teor conclusivo do despacho de arquivamento.

23. É claro que a reclamante sempre poderia ter recorrido à alternativa prevista no n° 1 do artigo 6° da Lei n°15/94, requerendo a não aplicação da amnistia.
Porém, só à mesma pertencia optar, em tal matéria.
Tendo-o feito, como e quando o fez, a favor da aplicação da amnistia, parece legítima a sua expectativa sobre a extinção do
próprio procedimento disciplinar, que ainda decorria, e bem assim relativamente à não inclusão de qualquer conclusão àcerca da
prática da infracção.

24. Tal efeito pode, ainda, ser alcançado, através da alteração do despacho de arquivamento controvertido (cfr. artigo 147° do
Código do Procedimento Administrativo).

25. Em face do exposto, entendo dever formular a seguinte Recomendação:

Que seja revogado o despacho de V.Exa., de 5/6/95, sobre Parecer n° 80/GJ/95 da I.G.E., que indeferiu o recurso do despacho de arquivamento do processo disciplinar, de 30/9/94, da Senhora Inspectora-Geral da Educação, determinando-se, na sequência, a reformulação dos fundamentos deste último despacho, constantes do Parecer n° 228/GJ/94 dos mesmos Serviços, na medida em que nele se consideram provados factos que, tendo sido objecto de procedimento disciplinar que não alcançou o seu termo, por força da aplicação da amnistia, o não podem ser.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel

Notas:
(1)in B.M.J. n° 318, Julho 1982 p.168.
(2)Cfr.Manual de Direito Administrativo,Tomo II, 8ª edição, p.803.
(3) Cfr. B.M.J. n° 180, Ano 1968,p. 197.