Presidente do Conselho de Administração do INFARMED
Rec. n.º 5/A/00
Proc.:R-2556/99
Data:2000.01.25
Área:A 3
Assunto: ASSUNTOS ECONÓMICOS. CONCORRÊNCIA. FARMÁCIA. TRANSFERÊNCIA. PORTARIA N.º 806/87, DE 22 DE SETEMBRO. PORTARIA N.º 325/97, DE 13 DE MAIO.
Sequência: Não Acatada.
1. Como é do conhecimento de V.Ex.ª, foram-me dirigidas duas reclamações relativas ao processo de transferência da farmácia …, da freguesia de … para a freguesia de …, ambas do concelho de Trancoso.
2. No âmbito da instrução do respectivo processo, foi enviada a estes serviços cópia do parecer de 20.5.98 da comissão de avaliação, constituída nos termos do artigo 18.º, n.º 2, alínea b) da Portaria n.º 806/87, de 22.9, alterada pela Portaria n.º 325/97, de 13.5, sobre o qual recaiu o despacho de autorização de transferência do Conselho de Administração do INFARMED em 25.5.98.
3. Analisado o referido parecer, verifica-se que a requerente fundamenta o seu pedido de transferência com base em “alterações de índole urbanística e geográfica”.
Assim, “a acentuada diminuição da população rural e consequente desertificação em face do fenómeno imigratório dos mais jovens na deslocação para os centros urbanos”, “a concentração de meios e serviços de saúde nos centros urbanos que tem vindo a impossibilitar a fixação de médicos nas zonas rurais envolventes”, e a “alteração na rede viária que deslocou o tráfego da zona da farmácia” justificariam a sua transferência.
4. A comissão de avaliação concordou com tais argumentos, concluindo que “as alterações de índole urbanística que decorrem da desertificação da freguesia e principalmente da localidade onde se encontra a farmácia são evidentes, dado o número pouco expressivo de habitantes na freguesia”.
De acordo com o mesmo parecer, atendendo à facturação dos anos de 1993/1997, quando observada à luz do índice de preços do consumidor anual INE/Classe V – Saúde-Medicamentos, esta representa um valor deficiente para a viabilidade económica da farmácia, não obstante revelar um acréscimo, em termos absolutos, nos anos de 1993/1994 e 1995/1996.
5. Chegados a este ponto, importa agora analisar o texto da Portaria n.º 806/87, de 22.9, alterada pela Portaria n.º 325/97, de 13.5, à data aplicável. Esta Portaria dispõe, no artigo 18.º, n.º 1, alínea d) que será “autorizada a transferência por deliberação do conselho de administração do INFARMED (…) sempre que ocorram alterações de índole geográfica, urbanística ou de qualquer outro tipo que tornem inviável a sua exploração”.
6. No caso concreto, o pedido de transferência deu entrada no INFARMED em 27.8.97, tendo a requerente adquirido por trespasse a farmácia em causa em 27.5.97, conforme consta da respectiva escritura pública, de que foi remetida cópia a estes serviços.
7. Verifica-se, pois, que decorrido apenas três meses após a aquisição da farmácia, a proprietária invoca “alterações de índole urbanística e geográfica que tornam inviável a sua exploração”.
Ora, do referido parecer da comissão de avaliação não consta que o reduzido número de habitantes da freguesia resulte de alterações ocorridas em tão curto período de tempo e, quanto ao valor da facturação anual, cabe perguntar, sendo este valor indiciador de falta de viabilidade económica, por que motivo foi a farmácia adquirida.
Por outro lado, não parece fazer sentido analisar a facturação dos últimos cinco anos, quando o proprietário da farmácia a transferir era outro.
Do exposto resulta, com clareza, que a aquisição da farmácia … apenas poderá corresponder a uma de duas situações: ou tratou-se de um erro grosseiro da adquirente, que só três meses depois analisou as contas do estabelecimento e se apercebeu da desertificação da freguesia, ou então, foi a farmácia adquirida expressamente com o objectivo da sua transferência para a cidade de Trancoso.
8. Afigura-se, pois, em face do parecer analisado, que a comissão de avaliação não aplicou correctamente a disposição regulamentar em causa, que exige que ocorram alterações de índole geográfica, urbanística ou outras que tornem inviável a exploração da farmácia. Assim, ao autorizar a transferência da referida farmácia, diminuiu a dispersão da rede de farmácias, prejudicando não só a população de … mas também as populações das freguesias limítrofes que aí se poderiam abastecer.
9. Esta incorrecta aplicação do regime legal de instalação e transferência de farmácias é tanto mais grave quanto o certo é que este regime encontra a sua razão de ser na existência de interesses de ordem pública que importa salvaguardar.
De facto, constitui interesse publicamente relevante assegurar o acesso de todos os cidadãos às farmácias, de forma acessível, rápida e permanente. Por outro lado, constitui também interesse público relevante assegurar a disciplina e o controlo da produção, comercialização e uso de produtos químicos, biológicos e farmacêuticos.
Neste quadro, a conjugação dos requisitos de capitação e distância, pressupostos legais para a abertura de farmácias, visa a criação de uma rede de estabelecimentos farmacêuticos tão homogénea quanto possível, de forma a evitar a sua proliferação em zonas economicamente mais apetecíveis, em desfavor de áreas a descoberto.
10. Tal não prejudica a relevância que assume a viabilidade económica dos estabelecimentos farmacêuticos, tanto mais que a estabilidade da empresa farmacêutica possui uma vertente de relevância pública que ultrapassa a estrita dimensão empresarial da actividade, na medida em que a sua falta potencia deficiências no serviço prestado aos cidadãos.
Por essa razão, em situação de conflito entre os dois interesses, acessibilidade dos cidadãos às farmácias, por um lado, e viabilidade económica das mesmas, por outro, importa ponderar cuidadosamente os interesses em questão.
Nesse sentido aponta o preâmbulo da Portaria n.º 325/97, que introduziu a possibilidade de transferência em caso de alterações que tornem inviável a exploração da farmácia, onde se refere: “atento o interesse público de que se reveste o exercício da actividade farmacêutica, para além da vigência escrupulosa das regras relativas à instalação e modo de funcionamento das farmácias, devem igualmente criar-se condições que evitem a inviabilidade da sua exploração, flexibilizando as situações que podem justificar a transferência da farmácia”.
Claramente resulta do exposto que, no caso em apreço, o alegado interesse da adquirente da farmácia … na sua viabilidade económica não merece protecção, não havendo razão para prevalecer relativamente aos interesses públicos em presença.
11. Verifica-se, pois, que a requerente obteve autorização para instalação de uma farmácia numa localidade já servida de farmácias, sem que para tanto tenha sido necessário aguardar a abertura de concurso por parte do INFARMED, ou sujeitar-se aos locais para os quais são abertos os referidos concursos, e sem sequer ter de respeitar os critérios legalmente estabelecidos para responder e ser o primeiro classificado em tais concursos.
Está, pois, em causa, a utilização de um mecanismo de transferência previsto para situações de inviabilidade económica com efeitos contrários aos objectivos daquele mecanismo.
12. No entanto, não obstante a ilegalidade apontada, o acto de autorização de transferência da farmácia … da freguesia de … para a freguesia de …, no mesmo concelho de Trancoso, consolidou-se na ordem jurídica pelo decurso do tempo, não podendo nesta data ser revogado com fundamento na sua invalidade.
Por seu turno, uma vez que é um acto constitutivo de direitos, não pode ser revogado sem o consentimento dos interessados. Tal regime resulta do disposto nos artigos 140.º e 141.º do Código de Procedimento Administrativo, conjugados com o artigo 28.º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
13. Assim, foi a requerente notificada em 9.6.98 do deferimento do pedido de transferência, por meio do ofício n.º…, sendo-lhe comunicado que “por deliberação do Conselho de Administração de 25.5.98 (acta n.º 490/II), foi autorizada a transferência da farmácia (…) devendo respeitar as distâncias mínimas às outras farmácias, centros de saúde e estabelecimentos hospitalares”.
Na sequência do deferimento do pedido de transferência, a requerente entregou ao INFARMED em 8.2.99 a planta e a memória descritiva e justificativa do imóvel onde se situaria a nova farmácia, tendo sido aposto sobre esta memória o carimbo “autorizo por delegação”, assinado e datado de 10.3.99.
Mais tarde, em resposta ao ofício n.º…, desse Instituto, nos termos do qual se refere ter chegado ao conhecimento “a suspeita de que essas distâncias não terão sido respeitadas”, a requerente juntou ao processo uma certidão emitida pela Câmara Municipal de Trancoso que refere expressamente que as distâncias ali referidas (no que interessa, distância de 281m da farmácia da Misericórdia) se reportam ao “percurso pelo traçado mais próximo”.
Colocadas dúvidas quanto ao cumprimento deste requisito, uma vez que a Portaria n.º 806/87, cuja aplicação estava em causa, se refere à “área delimitada por uma circunferência de 250m de raio”, aquela Câmara Municipal terá enviado ao INFARMED nova certidão, de acordo com a qual a distância entre a nova farmácia e a farmácia … é de 203m, ou seja, uma distância inferior à distância mínima estabelecida pela referida Portaria.
Afigura-se, pois, que a localização da nova farmácia não cumpre os requisitos legais de distância superior a 250m, em raio, de outra farmácia.
14. Com vista a esclarecer cabalmente esta questão, foi solicitado ao arquitecto consultor desta Provedoria de Justiça que se pronunciasse, tendo este emitido o parecer de que se anexa cópia.
Em face do teor do mesmo, verifica-se que a localização da nova farmácia não cumpre os requisitos legalmente estabelecidos de distância mínima relativamente à farmácia … e à farmácia da …, pelo que o acto de autorização é ilegal.
15. Quanto ao argumentado pelo INFARMED, de que a farmácia da …, propriedade da Santa Casa da Misericórdia, seria uma farmácia privativa, pelo que as disposições legais relativas à distância mínima entre farmácias não seriam aplicáveis, tal não procede, uma vez que a farmácia … se encontra aberta ao público há largos anos.
Esta situação é expressamente autorizada pelo disposto na Base II, n.º 4 in fine, da Lei n.º 2125, de 20.3.65, que dispõe que “(…) as farmácias que estas instituições actualmente possuam abertas ao público podem continuar no mesmo regime”.
Tal resulta, aliás, do alvará da farmácia …, alvará n.º 3362, emitido em 2 de Maio de 1980, na sequência da destruição do alvará antigo, em incêndio ocorrido naquela farmácia no ano de 1975.
Nada consta no referido alvará no sentido de que a farmácia em causa apenas preste serviços a determinado grupo de pessoas, em condições especiais, sendo certo que, caso a farmácia fosse privativa, tal deveria constar expressamente do alvará, conforme dispõe o artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 48547, de 27.8.68.
16. Por outro lado, ainda que assim não fosse, o certo é que a distância em raio entre a nova farmácia e a farmácia …, contígua à farmácia …, é também inferior a 250 m, conforme resulta do parecer e planta que se anexa.
17. Assim, uma vez que a distância em raio entre as farmácias … e a … e a farmácia a transferir é inferior a 250 m, estamos perante uma situação de incumprimento das regras legais relativas à distância mínima entre farmácias, pelo que o acto de autorização da nova farmácia, praticado em 10.3.99, é ilegal.
18. Atenta a invalidade do acto de aprovação da localização da nova farmácia a transferir de …, viciado de erro no pressuposto de facto “distância inferior a 250m de farmácia pré-existente”, deve este ser revogado com brevidade.
Com efeito, o acto de autorização da nova farmácia, constitutivo de direitos, cumprirá um ano em 11.3.00, não sendo a partir de então passível de revogação com fundamento na sua invalidade, e sem o consentimento da interessada, conforme resulta dos preceitos legais referidos no ponto 12 supra, pelo que deverá o acto de revogação ser praticado até àquele data.
19. Por último, saliento que, a confirmar-se o invocado perante este órgão do Estado, a farmácia … encontra-se actualmente a funcionar sob a responsabilidade de um ajudante técnico, deslocando-se a directora técnica àquela farmácia apenas duas ou três vezes por semana, uma vez que não reside em … .
Tal comportamento contraria o disposto nos artigos 83.º, n.º 1 e 87.º do Decreto-Lei n.º 48547, de 27.8.68, alterado pelo Decreto-Lei n.º 214/90, de 28.6.90, cumprindo ao INFARMED efectuar as diligências necessárias com vista a apurar a veracidade de tal situação, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alínea k) do Decreto-Lei n.º 495/99, de 18 de Novembro.
Face a todo o exposto, RECOMENDO
Seja revogado o acto de autorização da localização da nova farmácia na freguesia de … , na cidade de Trancoso.
Seja averiguado o cumprimento das disposições legais que exigem a permanência do director técnico na farmácia …, na freguesia de …, enquanto não se realizar a transferência.
Do despacho que venha a recair sobre a presente recomendação, agradeço me seja dado conhecimento.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL