Ministro das Finanças
Rec. n.º 4/B/00
Proc.: P-6/93
Data:2000.03.02
Área:A 6
Assunto: ASSUNTOS FINANCEIROS. BANCA. AQUISIÇÃO DE CASA PRÓPRIA. CRÉDITO. SEGURO. ANÁLISES CLÍNICAS.
Sequência: Não Acatada
1. A esmagadora maioria das seguradoras, para não falar na sua totalidade, exigirá actualmente a quem pretenda subscrever um contrato de seguro para efeitos de empréstimo no âmbito do crédito à habitação, a realização de um conjunto de testes clínicos, designadamente com vista à detecção de doenças graves e/ou terminais cujo resultado poderá condicionar a decisão da seguradora. Tal imposição verifica-se normalmente quando os capitais seguros são superiores a um determinado montante, verificando-se que a respectiva celebração é inviabilizada, impossibilitando a concessão do empréstimo pela entidade bancária, quando se confirmam determinados patologias ou situações clínicas, de que constitui apenas um exemplo a seropositividade para o HIV, isto apesar de não ser uniforme o procedimento das seguradoras neste domínio.
A questão colocada na recomendação que adiante formularei é manifestamente delicada, envolvendo considerações que se prendem com a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, com o respeito pelo princípio da liberdade negocial e com aspectos decorrentes das necessidades específicas de protecção dos interesses públicos subjacentes à actividade seguradora em geral.
2. De facto, a permanente solvabilidade das entidades que exercem tal actividade é factor determinante da confiança dos agentes económicos e do público em geral na capacidade de as mesmas prosseguirem de forma sólida e estruturada as funções que lhes estão destinadas. Por tal facto, não se põe de todo aqui em causa a necessidade do estabelecimento de condições e limites envolvendo as operações realizadas no âmbito do seu exercício, de forma a salvaguardar-se a solidez financeira das empresas, logo a própria credibilização e mesmo a subsistência do sector.
A inviabilização da celebração de um contrato de seguro para efeitos de obtenção de crédito à habitação com fundamento no facto comprovado de a esperança de vida do eventual tomador do seguro estar fortemente condicionada pela detecção de uma qualquer patologia grave e mesmo terminal, poderá de alguma forma justificar-se à luz do princípio da liberdade contratual e das considerações acima tecidas a propósito das especificidades do exercício da actividade seguradora. Importa, no entanto, não deixar de considerar os aspectos que se prendem com os direitos e interesses de um cidadão naquelas condições. Só uma solução que pondere de forma equilibrada o leque de direitos e interesses em causa obviará à conflitualidade que inevitavelmente a actuação das seguradoras acaba por desencadear. Não se pretende de forma alguma que as seguradoras deixem de exigir a realização de testes clínicos para os efeitos visados, nem tão pouco interferir na ponderação do resultado dos mesmos para efeitos da celebração ou não do contrato aqui em foco. Pretende-se tão só que seja encontrada uma solução que sirva os interesses legítimos tanto da entidade que exerce a actividade seguradora como do cidadão que se vê impossibilitado de obter um empréstimo para aquisição de habitação pelo facto de se encontrar afectado por uma patologia que potencialmente condicionará a sua longevidade. É essa solução de equilíbrio que me parece não estar devidamente salvaguardada, dirigindo-me nesta sede a Vossa Excelência por entender que o Estado terá, no âmbito da matéria em análise, não só uma palavra a dizer mas uma verdadeira tarefa a cumprir.
3. Conforme adiantam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª edição revista, 1993, pgs. 344 e 345), o direito à habitação “consiste, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias” (…). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objectivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio “direito social”. (…) Enquanto tal, o direito à habitação implica determinadas obrigações positivas do Estado. (…) É, pois, um direito positivo que justifica e legitima a pretensão do cidadão a determinadas prestações”.
No caso de que nos ocupamos, a realidade económica e a dinâmica financeira associadas ao exercício da actividade seguradora deixam desprotegido o cidadão que simultaneamente se debate com a possibilidade de uma enfermidade grave e muitas vezes fatal e com a impossibilidade de por via desse facto não poder aceder a um empréstimo para compra de habitação. É certo que a questão apresentada reconduzir-se-á a situações em que estão em causa montantes de alguma forma significativos, já que, segundo se apurou, não tem sido exigida a efectivação de pelo menos alguns testes clínicos no que toca ao crédito abaixo de um determinado valor. Tal facto, justificável conforme referido se analisado de uma perspectiva financeira, não afasta no entanto a discriminação gerada com a actuação das seguradoras, devolvendo ao Estado, designadamente por imposição dos art.ºs 65.º e 13.º da Lei Fundamental, respectivamente consagradores do direito à habitação e do princípio da igualdade, a incumbência constitucional de dar solução ao vazio criado. Provavelmente só a iniciativa do Estado permitirá alcançar uma solução adequada à complexa questão descrita, por exemplo através da criação legal de um fundo público que garanta as situações consideradas de elevado risco para as seguradoras e por tal razão pelas mesmas inviabilizadas, devidamente enquadrado por um regime adequado de prestação de garantias reais e por um conjunto de requisitos no que respeita designadamente ao limite máximo do valor a garantir, a conceber pelo governo mediante o estudo das possibilidades existentes no âmbito dos recursos financeiros que possam ser afectados para o efeito. No sentido da adopção pelo Estado de uma política clara face à questão, e a propósito especificamente do HIV, opinou oportunamente o Conselho da Europa, através da Recomendação n.º R (89) 14, adoptada pelo seu Comité de Ministros em 24 de Outubro de 1989, que me não parece devidamente acatada na ordem jurídica portuguesa.
Na sequência do que resulta exposto, RECOMENDO a Vossa Excelência:
a) que, designadamente através do Instituto de Seguros de Portugal, se proceda a um levantamento da situação actual no que respeita por um lado à exigência por parte das seguradoras, no domínio da subscrição dos contratos de seguro para efeitos de concessão de crédito à habitação, da efectivação de análises clínicas para detecção de patologias graves e/ou terminais, em que condições essa obrigatoriedade existe e quanto à actuação dessas mesmas entidades no caso de serem confirmadas, por via dos testes descritos, patologias que condicionam a esperança de vida dos eventuais tomadores de seguros.
b) que, com fundamento nos argumentos acima expendidos, seja ponderada a criação legal de um fundo público que garanta as situações consideradas de elevado risco para as seguradoras, por tal motivo pelas mesmas recusadas, accionável subsidiariamente às garantias reais oportunamente estabelecidas, podendo estar-lhe subjacente um conjunto de requisitos, designadamente no que respeita ao limite máximo do valor a garantir e um rácio adequado de cobertura por essas mesmas garantias reais.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL