Presidente da Junta de Freguesia de Mouronho

Rec. n.º 64/A/2000
Proc.: R-4769/98
Data: 20-09-2000
Área: A 6

Assunto: CEMITÉRIOS – TRANSLADAÇÃO.

Sequência: Não acatada

A Senhora … e os seus filhos solicitaram a intervenção do Provedor de Justiça relativamente à trasladação dos restos mortais do seu pai e avô, inumado no coval n.º …, do Cemitério Paroquial de Mouronho em …

Invocam os reclamantes que oportunamente solicitaram à Junta de Freguesia a que V. Ex.ª ora preside autorização para proceder à trasladação dos restos mortais daquele seu familiar para a campa n.º ….. do mesmo cemitério, que lhes está concedida. No entanto, em 29 de Junho de 1992, sensivelmente um mês antes do termo do prazo legal de cinco anos então em vigor para a possibilidade de exumação, foi inumado no mesmo coval o corpo de uma outra pessoa.

Devido a este facto, em 14 de Setembro de 1993, o Presidente da Junta de Mouronho autorizou a trasladação solicitada pelos ora reclamantes após o decurso de cinco anos a contar da data da segunda inumação no local. Volvido esse lapso de tempo os reclamantes solicitaram a execução do acto de trasladação anteriormente autorizado, tendo V. Ex.ª remetido a questão para apreciação da Assembleia de Freguesia de Mouronho que, nas palavras da reclamante, deu o assunto por encerrado.

Instado esse executivo a pronunciar-se sobre a questão, foi V. Ex.ª ouvido pelo Delegado do Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Tábua, nos termos do art.º 28.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, em 21 de Março de 1999.

Nesta sede, declarou V. Ex.ª que decorridos cinco anos sobre a segunda inumação no supra identificado coval, “a família não falou mais do assunto, pelo que, uma vez que a campa era pertença da Junta de Freguesia, foi a mesma vendida a outra família e ali sepultada outra pessoa, mantendo-se as ossadas da primeira”. Só passado algum tempo, a família da reclamante “se lembrou de fazer a trasladação, não sendo então já possível fazê-la, em virtude de a campa ter sido vendida a outras pessoas e já ali estar sepultada uma pessoa cujos familiares não autorizam que seja efectuada a trasladação”, razão pela qual, em seu entendimento, a questão se revela insolúvel.

Na génese de toda esta inusitada situação está a autorização de inumação de um segundo cadáver no supra identificado coval, em desarmonia com a interdição de abertura de sepulturas antes do decurso do período legal de inumação de cinco anos, então em vigor por força do art.º 22.º do modelo de regulamento dos cemitérios paroquiais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48 770, de 18 de Dezembro de 1968.

Não obstante esta segunda inumação, a questão estaria ultrapassada caso a autorização de trasladação dos restos mortais do familiar dos reclamantes tivesse sido executada em tempo útil, sendo certo que estes detinham a legítima expectativa de que, no termo do prazo legal de interdição de abertura de sepulturas, lhes seria permitido proceder à trasladação das ossadas do seu familiar, sem mais entraves, para o espaço que lhes fora concedido no mesmo cemitério.

Resulta incompreensível a razão pela qual esse órgão autárquico veio posteriormente àquela autorização conceder a terceiros o espaço correspondente ao coval n.º ….., sem acautelar o prévio cumprimento da trasladação, de forma a evitar a previsível eclosão do conflito que está na origem desta queixa ao Provedor de Justiça.
De facto, era razoável que, em momento anterior à atribuição da concessão do espaço correspondente ao coval n.º ….., esse executivo tivesse informado os familiares da primeira pessoa ali inumada da pretensão da família do segundo inumado, no intuito de acautelar a realização da trasladação autorizada. Além disso, a Senhora … protesta ter efectuado contactos verbais com essa Junta dos quais não terá resultado nenhuma resposta concreta.

Em face desta incorrecta condução do processo, é exigível que esse órgão autárquico solucione este caso de forma a salvaguardar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos envolvidos, à cabeça dos quais se destaca como merecedor de tutela a efectivação da trasladação das ossadas em causa, acto que, sublinhe-se, deveria ter ocorrido durante o segundo semestre de 1992.

Constituem pressupostos legais da trasladação a legitimidade dos requerentes, o decurso de um período nunca inferior a três anos após a inumação e a inexistência de razões de interesse público, nomeadamente relativas à saúde pública, que obstem à sua realização, requisitos que se encontram integralmente preenchidos no caso em apreço.
Não procede o invocado argumento da oposição dos concessionários do coval n.º …., “proprietários” desse espaço, como justificação para não realização da trasladação para o local pretendido pelos reclamantes.

É entendimento unânime da doutrina (1) que sobre o terreno ocupado por uma sepultura ou jazigo não incide qualquer direito de propriedade privada mas sim um direito de ocupação de uma parcela de terreno do domínio público para o fim próprio que lhe está destinado, constituído mediante um acto de concessão de uso privativo desse mesmo domínio público, como, aliás, claramente resulta da definição das competências das juntas de freguesias nesta matéria, actualmente consagradas pelo art.º 34.º, n.º 6, al. d), da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.

Ora, tratando-se de áreas do domínio público, o direito de propriedade dos terrenos em causa não se transfere para os particulares, devendo a sua utilização exercer-se de forma compatível com o interesse público, sem prejuízo dos interesses particulares em benefício dos quais se constitui a concessão, mas só destes. O conteúdo dos direitos emergentes da concessão aos particulares reflecte necessariamente as circunstâncias em que se realiza a sua ocupação. Explicitando, a concessão do terreno em causa confere direitos para o seu aproveitamento como espaço de inumação e culto mortuário mas não permite pensar na constituição de qualquer relação de domínio sobre os restos mortais que aí estiverem ou venham a estar depositados.

Balizado por este enquadramento jurídico e ponderados os interesses em confronto, sempre haverá que concluir-se pela desnecessidade de autorização do concessionário para a efectivação do direito de trasladação subjectivado nas pessoas dos reclamantes.

Pese embora o art.º 38.º do modelo de regulamento dos cemitérios paroquiais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48 770, de 18 de Dezembro de 1968, em vigor ao abrigo do art.º 32.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 411/98, por não contrariar o regime que nele se consagra, enunciar a necessidade de autorização do concessionário para a realização de inumações, exumações ou transladações em sepulturas perpétuas, esta terá que ser avaliada no âmbito da qualificação jurídico-administrativa da concessão de espaços funerários, nunca podendo tal consentimento constituir-se como requisito absoluto que impeça a realização do interesse público ou se sobreponha a outros direitos e interesses legítimos tutelados pela legislação mortuária.
Naturalmente que aqui realço o direito subjacente ao regime actualmente consagrado pelo art.º 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98, que, sem prejuízo das regras aplicáveis, permite às pessoas nele elencadas darem sepultura aos seus mortos no espaço cemiterial que pretenderem.

Sempre se deverá entender que a razão de ser da autorização, reportada à realização daqueles actos durante e no âmbito da concessão, é garantir a afectação do terreno concessionado da maneira efectivamente pretendida pelo concessionário, assegurando, designadamente, a reserva do espaço para inumação e permanência no local dos restos mortais das pessoas que ele determinar, o que não é o caso do familiar dos reclamantes, cuja inumação é anterior à concessão e alheia à vontade do concessionário.

Por todas estas ordens de razões a falta de autorização do concessionário do coval n.º …. do cemitério paroquial de Mouronho não deve impedir a trasladação dos restos mortais inumados no local antes da sua concessão, acto autorizado pela entidade competente e a solicitação de familiares com legitimidade para requerer a sua prática. De facto, revela-se de uma iniquidade inaceitável que a mera oposição do concessionário do terreno de sepultura esteja a obstar à trasladação de ossadas pretendida pelo cônjuge sobrevivo da pessoa falecida, não existindo qualquer interesse atendível que a tal obste.

Acresce que do acto de trasladação das ossadas em causa não resulta qualquer prejuízo ou dano digno de assinalar que afecte o objecto da concessão que, como já foi referido, consiste na utilização do espaço da sepultura relativamente a restos mortais de pessoas determinadas pelo concessionário, nem tão-pouco se configura como um acto atentatório dos direitos de personalidade post mortem legalmente tutelados, no que respeita à pessoa ali inumada em segundo lugar, desde que sejam tomados os cuidados exigíveis durante a operação de levantamento das suas ossadas.

Nestes termos, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 9/91, RECOMENDO:

à Junta de Freguesia de Mouronho que efectue as diligências necessárias para que se proceda com urgência à trasladação dos restos mortais de …, inumado no coval n.º …. do cemitério local, de harmonia com a autorização concedida para a prática desse acto em 14 de Setembro de 1993, independentemente da vontade do concessionário desse espaço.
De harmonia com o disposto no art.º 38º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, deverá V. Ex.ª comunicar ao Provedor de Justiça a posição que assume relativamente a esta recomendação, no prazo de 60 dias a contar da sua recepção.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

H. NASCIMENTO RODRIGUES
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(1) Cf. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 1991, pg. 940 e segs.; Freitas do Amaral, A utilização do domínio público pelos particulares, 1963, pg. 376 e segs.; Vítor Lopes Dias, Cemitérios, jazigos e sepulturas, 1963, pg. 376 e segs.