Director-Geral da Polícia Judiciária

Rec. n.º 43/A/00
Proc:R-1291/99
Data: 22-05-00
Área: A 5

Assunto: DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS. DIREITO AO BOM NOME E REPUTAÇÃO. COMUNICAÇÃO SOCIAL. SEGREDO DE JUSTIÇA.

Sequência: Parcialmente acatada

Foi dirigida uma queixa ao Provedor de Justiça na qual se alegava que a Directoria de Faro da Polícia Judiciária havia fornecido a determinados órgãos de comunicação social escrita a identidade do queixoso, arguido num processo-crime em investigação naquela Directoria, assim como outros pormenores respeitantes ao processo e que tal acção afectou, consideravelmente, a sua honorabilidade e bom nome, tanto mais que vive numa pequena comunidade rural, onde situações deste tipo assumem enormes repercussões.

Tendo sido solicitados esclarecimentos à Directoria-Geral da Polícia Judiciária, veio aquela dizer que a Polícia Judiciária de Faro não prestou aos jornalistas quaisquer informações relevantes que não fossem já do conhecimento daqueles, pelo que se deveria dar o caso por concluído, sem qualquer procedimento.

A Provedoria de Justiça fez notar que não se podia ignorar a circunstância de, entre outros aspectos, a Directoria de Faro da Polícia Judiciária ter confirmado a identidade de um dos arguidos do processo e, sobretudo, ter informado determinado jornalista que havia remetido o processo ao Ministério Público com proposta de acusação. Acção susceptível de configurar a divulgação da ocorrência de um acto processual, para os efeitos do disposto no artigo 86.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal, que proíbe, enquanto o processo estiver em segredo de justiça, a “divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação”.

A resposta da Directoria-Geral da Polícia Judiciária a esta argumentação não foi convincente, pelo que se recomendou ao Director-Geral da Polícia Judiciária, após invocação do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 121/80, de 23 de Julho, homologado em 19.01.81 – (no qual se concluiu, entre outros aspectos, que “… não pode a Polícia Judiciária, designadamente, fornecer informações que possibilitem a identificação, pelo público, das pessoas envolvidas nos processo …”) – que fossem adoptadas as medidas que couberem no caso concreto, nomeadamente de carácter disciplinar, e, bem assim, as medidas de carácter genérico tidas por úteis e necessárias à prevenção deste tipo de situações, violadoras do segredo de justiça e do direito ao bom nome e reputação dos arguidos.
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I

Em 16.04.99 a Provedoria de Justiça teve ocasião de solicitar esclarecimentos a V.Exa. a respeito de uma alegada violação do segredo de justiça, por parte da Directoria de Faro da Polícia Judiciária. Invocava-se na queixa que me foi dirigida que a referida Directoria havia fornecido a determinados órgãos de comunicação social a identidade do queixoso, arguido num processo-crime em investigação naquela Directoria, assim como outros pormenores respeitantes ao processo, o que teria dado azo à publicação de várias notícias em jornais de dimensão nacional e regional que sugeriam a prática dos crimes investigados, por parte do queixoso, afectando a sua honorabilidade e bom nome. Mais precisamente, referia-se na queixa:
“… Atendendo ao particular melindre da situação, tendo em atenção o conteúdo dos citados panfletos que atingiam de forma afrontosa e difamante algumas pessoas da região, e ainda devido ao facto de ser uma pequena comunidade rural, onde todas as pessoas se conhecem e convivem, esta divulgação provocou grande agitação na comunidade.

Na verdade, perante a forma como as notícias foram divulgadas com a confirmação da Polícia Judiciária dos nomes, entre os quais o meu, de dois arguidos neste processo, em termos de opinião pública, a interpretação corrente foi a de que um dos autores do crime havia sido eu;

Este facto causou um inusitado mau estar, junto a mim e de minha família, chegando-se ao cúmulo do meu pai, um senhor com 82 anos, ser provocado em plena via pública; …”

A Polícia Judiciária respondeu através do senhor Director Geral Adjunto, Dr… , tendo referido, no essencial, que “… se limitou a confirmar factos que eram já do conhecimento dos jornalistas em causa, referindo ter o processo sido remetido ao Ministério Público com proposta de acusação …” e que as notícias mencionadas resultavam do “… cruzamento de informações provenientes de fontes não identificadas com alguns dados de carácter genérico obtidos através desta Polícia” (cfr. v/ofício de 13.08.99).

A Provedoria de Justiça, embora aceitando, em parte, esta última explicação, fez notar que o facto de a Directoria de Faro da Polícia Judiciária ter dito a um determinado jornal que o processo havia sido remetido ao Ministério Público com proposta de acusação era susceptível de configurar a divulgação da ocorrência de acto processual, proibida pelo artigo 86.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal (cfr. n/ofício de 24.09.99).

A questão veio a ser objecto de uma Informação de Serviço, subscrita pela Exma. Senhora Dra. Ana Mafalda Duarte, Subdirectora-Geral Adjunta da Polícia Judiciária facultada à Provedoria de Justiça através do v/ofício de 31.12.99), na qual se concluiu pela improcedência da queixa. Tendo lido, com atenção, a referida Informação, não posso concordar com as respectivas conclusões, nos termos e pelos fundamentos seguintes:

II

Pretende a Polícia Judiciária, em traços gerais, que não colocou em causa o bom nome e reputação do queixoso, alegando, para tanto, que não era ele o único arguido no processo e que não foi expressamente mencionado na resposta dada ao jornal qual ou quais os visados na proposta de acusação. Acrescentando, logo de seguida, que “a Polícia Judiciária não divulgou o nome de qualquer arguido, antes referindo o jornalista desde logo, ao formular a questão, ser do seu conhecimento a qualidade do exponente como tal”. Salvo melhor opinião, tal bastaria para identificar perfeitamente a pessoa em causa. A Polícia Judiciária não divulgou o nome, mas confirmou o que lhe foi indicado pelo jornalista. Prova disso, aliás, é o facto de este último, tanto quanto é do meu conhecimento, não ter tido dúvidas algumas a esse respeito, conforme resulta do teor da notícia em causa publicada na edição do jornal “Público” de 05.03.99, sob o título – “Panfletos levam socialistas a tribunal” -: “O Presidente da comissão concelhia do PS e membro da Assembleia Municipal de Ourique, J…, vai ser constituído arguido pelo Ministério Público por difamação do Presidente da Câmara, M… (PSD). O caso reporta-se a 1994 e o dirigente político local surge neste processo associado ao ex-presidente do conselho directivo da Escola Básica de Ourique, A… O director-geral adjunto da Polícia Judiciária de Faro, S… , disse ao PÚBLICO que remeteu a 10 de Fevereiro para o Ministério Público de Ourique uma proposta de acusação resultante dum inquérito que tem como arguidos os dois indivíduos…”
(sublinhados nossos).

Fazendo uso da expressão utilizada na Informação em análise, dir-se-á que, ainda que a pessoa em causa não tenha sido expressamente identificada, tê-lo-á sido, ao menos, implicitamente.

Com efeito, verifica-se que o jornal “Público”, em 04.03.99, estando a par das suspeições que recaíam sobre o queixoso, dirigiu um fax ao responsável pela Directoria de Faro da Polícia Judiciária, no qual perguntava “em que medida estas suspeições correspondem a factos e se a Polícia Judiciária delegação de Faro, está a investigar em matéria desta natureza”.

Uma vez que o mencionado fax distinguia, claramente, dois grupos de factos ou processos, a Directoria de Faro respeitou a distinção e esclareceu, relativamente a cada uma das situações, que “Em 10.02.99 a Directoria de Faro remeteu para o M. P. de Ourique, com proposta de acusação, um inquérito em que é ofendido R… e arguido o indivíduo referido e outro pelo crime de difamação.
Relativamente à segunda questão, a Polícia Judiciária procede a investigações que se encontram em segredo de justiça”.

Creio que qualquer juízo isento reconhecerá a diferença entre as duas respostas. Se no que diz respeito ao primeiro grupo de factos a Polícia Judiciária confirmou a identidade de um dos arguidos e deu conta da sua própria posição relativamente à existência ou não de suficientes indícios da prática do crime – remessa do processo com proposta de acusação -, já no que concerne às restantes suspeições nada adiantou, limitando-se a referir que procedia a investigações e escudando-se, curiosamente, no segredo de justiça.

Refere essa Polícia Judiciária que a remessa de um processo com proposta de acusação não tem qualquer juízo de valor subjacente e que, além do mais, “não constitui um acto processual stricto sensu, mas antes um mero despacho intercalar (…)”.
Quanto ao autoproclamado desvalor das propostas dessa Polícia não me devo pronunciar.

Já no que diz respeito à suposta inexistência, no caso em apreço, de um acto processual, recordo que, nos termos do disposto no artigo 160.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, os simples despachos ou promoções de mero expediente são actos processuais.(1) O artigo 86.º do Código de Processo Penal – à luz do qual a questão deve ser equacionada – não faz qualquer distinção relevante entre os actos,(2) limitando-se a proibir a divulgação dos seus termos, assim como da sua própria ocorrência.

Com efeito, dispõe o citado artigo 86.º, no seu n.º 4, alínea b), que “O segredo de justiça vincula todos os participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de: (…) Divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação”. Entendo que, para este efeito, não poderá deixar de estar em causa a definição clássica de acto processual – “são actos processuais todos os factos voluntários que, pela função que desempenham, se integram numa sequência processual”(3). Não se porá certamente em causa, à luz desta definição e dos valores que subjazem à proibição constante do preceito acima mencionado do Código de Processo Penal, que a proposta de acusação formulada pela Polícia Judiciária deva ser considerada um acto processual.

De resto, esta ideia é reforçada pela própria Lei Orgânica da Polícia Judiciária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de Setembro, que dispõe no seu artigo 14.º, n.º 1, que “as acções de prevenção, de investigação criminal e as de coadjuvação das autoridades judiciárias estão sujeitas a segredo de justiça, nos termos da lei de processo”.

Como já se teve oportunidade de referir no ofício …, a essa Polícia endereçado em 24.09.99, a Provedoria de Justiça aceita que parte substancial do conteúdo das notícias em causa resultou de circunstâncias alheias à acção dessa Polícia – “cruzamento de informações provenientes de fontes não identificadas” -, conforme mencionado no v/ofício de 13.08.99. Não se pode, porém, ignorar o facto de a Polícia Judiciária, não só ter confirmado, ainda que implicitamente, essas notícias, como sobretudo ter informado o jornalista do “Público” acerca da remessa do processo ao Ministério Público com proposta de acusação. E, tendo em conta o atrás exposto, considerar tal acção proibida pelo artigo 86.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal, atendendo à ausência de autorização da autoridade judiciária (artigo 86.º, n.º 5, do Código de Processo Penal)(4) e, especialmente, ao facto de, no caso em apreço, a quebra do segredo de justiça não configurar nenhuma das excepções previstas no n.º 9 do artigo 86.º do mesmo Código.(5)Antes se tendo traduzido, conforme expressamente invocado pelo queixoso, numa acção lesiva do seu bom nome e reputação.

De resto, questão muito próxima da dos autos foi tratada, com amplo desenvolvimento, no Parecer n.º 121/80, de 23 de Julho de 1981, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, homologado em 19 de Outubro de 1981 – “Pertencendo a direcção da instrução criminal, por força da Constituição da República, a um Juiz de Instrução, constituindo a Polícia Judiciária mero organismo auxiliar de administração da Justiça, que legitimidade pode ela ter para prestar informações aos órgãos de comunicação social no âmbito dos processos em que se verifica a sua intervenção?”. A título conclusivo, respondeu o referido Conselho:
“1.ª – O carácter secreto do processo criminal e o consequente dever de aguardar segredo de justiça, impostos pelos artigos 70.º (…)(6) e seguintes do Código de Processo Penal, abrangem todos os actos do mesmo processo, incluindo a participação ou a denúncia que lhes servem de base; (…)
“3.ª – É inadmissível a derrogação do princípio do carácter secreto do processo criminal, quando ela for estritamente exigida pelo interesse da averiguação dos factos criminais ou da responsabilidade dos seus agentes e quando feita por forma a não violar o princípio da presunção da inocência do arguido e a não causar dano injustificado ao interesse da protecção da vida privada das pessoas envolvidas no processo:
4.ª – A Polícia Judiciária não pode prestar informações aos órgãos de comunicação social no âmbito de processos em que se verifica a sua intervenção fora dos casos e dos limites referidos na conclusão anterior e mediante prévia autorização dos magistrados a quem pertence a direcção do processo quando actuar sob esta: (…)
10.ª – (…) não pode a Polícia Judiciária, designadamente, fornecer informações que possibilitem a identificação, pelo público, das pessoas envolvidas nos processos (…).

A clareza das conclusões que acabo de citar dispensa, a meu ver, quaisquer outros comentários. Tendo em conta que as mesmas foram homologadas por despacho do Ministro da Justiça, prudente seria que fossem suficientemente difundidas no seio dessa Polícia.

III

Em face da queixa que me foi dirigida e ao abrigo das competências que me são conferidas por Lei, não posso deixar de censurar a actuação da Directoria de Faro da Polícia Judiciária, nos termos e pelos fundamentos expostos e, deste modo, RECOMENDAR a V.Exa., ao abrigo e para os efeitos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que se digne adoptar as medidas que couberem ao caso concreto, nomeadamente de carácter disciplinar e, bem assim as medidas de carácter genérico que tiver por úteis e necessárias à prevenção deste tipo de situações, violadoras do segredo de justiça e do direito ao bom nome e reputação dos arguidos.
Aguardo resposta de V. Exa. à presente recomendação, nos termos previstos no artigo 38.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
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(1)A noção de despacho de mero expediente consta do artigo 156.º, n.º 4, do Código de Processo Civil: “os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes (…)”.
(2)Como é sabido, a classificação dos actos processuais é susceptível de múltiplos critérios. Para além da relevante distinção entre actos decisórios e não decisórios, é possível referenciar inúmeras categorias, atendendo à função do acto processual na sequência do processo (actos de iniciação, de desenvolvimento e de encerramento): à entidade que os pratica (actos dos sujeitos processuais e actos de terceiros): à estrutura dos próprios actos (actos materiais e declarações) e à fase processual em que são praticados (actos de inquérito, actos de instrução, de julgamento, de recurso e de execução), cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, 1993, p. 11 e segs.
(3)Paulo Cunha, cadeira de Processo Civil e Comercial, II, 1938, p. 10, citado por Germano Marques da Silva, op. cit. Artur Anselmo de Castro adopta uma posição próxima desta, baseada nos efeitos do acto, considerando, com relevância para o caso em apreço, a noção de acto mediato – “(…) aqueles que determinam a prática de actos pelo órgão judicante, designadamente os preparatórios de certa providência, à qual subministram os motivos adequados”. Direito Processual Civil Declaratório, 1982, Vol. III, p. 12.
(4)”Pode, todavia, a autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo do acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade”.
(5)O segredo de justiça não prejudica a prestação de esclarecimentos públicos:
a)Quando necessários ao restabelecimento da verdade e sem prejuízo para a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa.
b)Excepcionalmente, nomeadamente em casos de especial repercussão pública, quando e na medida do estritamente necessário para a reposição da verdade sobre factos publicamente divulgados, para garantir a segurança de pessoas e bens e para evitar a perturbação da tranquilidade pública”.
(6)Equivalente, no Código de Processo Penal então em vigor – aprovado elo Decreto-Lei n.º 16489, de 15 de Fevereiro – ao artigo 86.º do Código de Processo Penal de 1987.