Presidente da Câmara Municipal de Palmela
Número: 39/A/98
Processo: 2759/96
Data: 28.05.1998
Àrea: A1
Assunto: URBANISMO E OBRAS – EDIFICAÇÕES URBANOS – DEFICIENTES CONDIÇÕES DE SALUBRIDADE E SEGURANÇA – NECESSIDADE DE OBRAS – RECUSA DO PROPRIETÁRIO – INTIMAÇÃO MUNICIPAL
Sequência: Acatada
I – Exposição de Motivos
1. Solicitou a Srª Dª… a intervenção deste Órgão do Estado quanto à situação de insalubridade e perigo de desabamento em que se encontram as instalações sanitárias da habitação que tomou de arrendamento, sita na Rua…, em Pinhal Novo.
2. A fim de habilitar a instrução do processo foi questionada a Câmara Municipal de Palmela quanto às medidas adoptadas para resolução do assunto, no âmbito dos poderes de polícia que às câmaras municipais são atribuídos em matéria de preservação do património residencial, tendo em vista a segurança de pessoas e bens e a manutenção de adequadas condições de habitabilidade (art. 51º, n.º 2, alínea d), da Lei das Autarquias Locais, arts. 9º, 10º e 12º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951).
3. Em resposta, informou essa Câmara Municipal que tendo sido deliberado executar coercivamente as obras de beneficiação a que fora intimado o proprietário do imóvel (art. 12º e 166º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas), e, tendo sido este regularmente notificado, nos termos impostos pelos arts. 152º, n.º 1, e 157º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, haviam sido os técnicos camarários impedidos de entrar no imóvel pela respectiva proprietária, no dia marcado para a execução.
4. Apresenta-se controversa ao nível jurisprudencial a questão dos requisitos para acesso ao domicílio dos cidadãos tendo em vista a execução coactiva de actos administrativos. Não é unívoco o sentido das decisões dos Tribunais sempre que as câmaras municipais se lhes dirigem para obtenção de um mandato que lhes permita obstar à falta de consentimento do titular do domicílio.
5. Parece, contudo, que, de quanto dispõe a Constituição sobre a matéria, é possível extrair, sem grande esforço interpretativo, o princípio de que a realização compulsória pela Administração dos actos administrativos não contende com a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio.
6. A protecção constitucional do domicílio impõe que, não sendo autorizada a entrada pelo proprietário, só pode ser esta ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e de acordo com as formalidades legalmente previstas (art. 34º, n.ºs 1 e 2, da Constituição).
7. Dispondo a Administração do poder de exigir de terceiros o cumprimento das obrigações e o respeito das limitações que decorrem dos actos administrativos, e não sendo necessária a intervenção do tribunal para tornar efectivas as medidas neles contidas (art. 149º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo), a actividade concreta desenvolvida como modo de realização da situação jurídica previamente definida está sujeita a um princípio de legalidade e de auto-tutela.
8. Reportam-se estes às formas admitidas de execução e ao respectivo procedimento – legalidade procedimental -. Tratando-se, na presente situação, de execução para a prestação de facto fungível, o procedimento de execução inicia-se com a notificação da decisão de se proceder à execução (art. 152º do CPA), na qual se fixará um prazo razoável para a prática do acto devido, com indicação dos termos em que a execução terá lugar, no caso de incumprimento (art. 157º, n.ºs 1 e 2, do CPA).
9. A execução por via coactiva dos actos administrativos é, assim, uma das restrições legais ao direito à inviolabilidade do domicílio. É um dos casos em que a exigência de consentimento do particular é afastada tendo em conta o interesse público que subjaz à garantia executiva dos actos administrativos.
10. Não obstante, e de acordo com o preceituado pelo art. 34º, n.º 2, da Constituição, encontra-se esta possibilidade sob reserva de decisão judicial, constituindo esta exigência um limite absoluto à discricionariedade do legislador na definição dos casos e das formas em que a entrada no domicílio contra a vontade dos cidadãos pode ter lugar.
11. Assim, e não obstante o cumprimento das citadas formalidades no âmbito do procedimento de execução, o destinatário pode opor-se à entrada no seu domicílio dos funcionários designados para proceder às operações materiais a tanto destinadas. A falta de consentimento só poderá ser suprida por decisão judicial que autorize a entrada no domicílio.
12. Como justificação para a disciplina constitucional, deve entender-se que a exigência do consentimento deriva de se estar perante uma garantia que é manifestação do direito à intimidade pessoal (esfera privada espacial), previsto no art. 26º da Constituição (cfr., entre outros, o Acordão n.º 221/89 do Tribunal Constitucional, de 22.2.1989, in DR, 1ª série, n.º 69, de 23.3.1989).
Neste sentido, considera GOMES CANOTILHO que se trata “ainda de um direito à liberdade da pessoa, e assim é que a Constituição considera a “vontade”, o “consentimento” da pessoa (n.º 2 e 3) como condição sine qua non da possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos fora dos casos de mandato judicial” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, p. 212).
13. Por seu turno, e atendendo ao princípio da aplicação imediata dos preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias, deve entender-se que a citada exigência não carece de ser regulada por lei. Não há necessidade de qualquer lei que proceda ao desenvolvimento da disciplina fixada na Constituição quanto a tal aspecto.
Por esta razão, não é o juiz do tribunal criminal aquele a quem se confere a protecção do direito constitucional à inviolabilidade do domicílio, nem este problema se coloca unicamente no âmbito dos processos de investigação criminal (cfr. ANTONIO, Angel Luis Alonso de, El derecho a la inviolabilidade domiciliaria en la Constituición espanola de 1978, Colex, 1993, p. 117).
14. Não obstante, e em paralelo com as garantias legais do processo penal, entende JORGE MIRANDA que as previsões legais que concedem às autoridades públicas a faculdade de entrar no domicílio, em certos casos (como sucede em matéria de polícia urbanística), não dispensam o cumprimento das garantias constitucionais, devendo considerar-se legislação padrão nesta matéria a lei processual penal, domínio no qual os imperativos do interesse público ganham especial premência.
15. “Ora, a legislação do processo criminal foi buscar a definição dos limites da inviolabilidade do domicílio às anteriores Constituições. Por conseguinte, e por não ser curial perante razões de interesse geral menos graves adoptarem-se critérios menos severos de restrição da inviolabilidade do domicílio, o legislador não pode, em caso algum, exceder os limites que resultam dessas Constituições e do Código de Processo Penal; tudo quanto envolve menores garantias para os cidadãos do que as aí prescritas deve qualificar-se de inconstitucional”.
16. E conclui JORGE MIRANDA, referindo que “as restrições ao princípio da inviolabilidade que requeira o interesse público não podem ter um regime mais atentatório das garantias individuais que o regime das buscas em processo criminal” (A inviolabilidade do domicílio, in Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XIX, Janeiro-Dezembro, n.ºs 1-2-3-4, Coimbra, 1974, pp. 411, 419 e 420).
17. No tocante ao âmbito da garantia constitucional em análise, deve entender-se que a reserva de decisão judicial se reporta exclusivamente à permissão de entrada no domicílio para execução das operações materiais previamente determinadas, seja a execução de obras em falta, seja a demolição de obras ilegais, a qual encontra sede legal na previsão do art. 166º do acima citado Regulamento Geral das Edificações Urbanas. A acção interposta não se destina a reconhecer o direito de realizar ou demolir as obras ou a apreciar a validade do acto que se executa, mas, tão somente, a remover um obstáculo ao exercício desse poder administrativo.
18. Nem, sequer, no âmbito do procedimento executivo, a intervenção judicial se destina a apreciar o conteúdo das medidas escolhidas pela Administração; só o autor do acto é competente para definir o conteúdo das medidas de execução e optar pelos meios de realização material do acto que considere mais adequados, no caso, à produção dos respectivos efeitos, não podendo o Tribunal pronunciar-se sobre o seu mérito ou legalidade.
19. Desta forma, terá que dar-se por menos feliz a orientação jurisprudencial que considera que carece de interesse em agir a entidade pública que recorre ao Tribunal comum no âmbito de um procedimento de execução, sempre que se verifique oposição do demandado à entrada no seu domicílio (cfr., por todos, o Acordão do Supremo Tribunal Administrativo de 10.10.1985, BMJ, 350, p. 297).
Com efeito, apenas se verificará a desnecessidade da tutela judicial, se o recurso ao Tribunal tiver por objectivo o reconhecimento do direito a executar determinado acto administrativo ou a validade do procedimento que o antecedeu, o que levaria à falta de um outro pressuposto processual, qual seja a competência do Tribunal comum.
20. Ao invés, deve entender-se que os tribunais comuns são competentes para conhecer do pedido de emissão de mandato judicial, formulado por uma entidade pública, para entrada numa residência particular com o fim de promover a execução de um acto administrativo (cfr. Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.4.1990, CJ, II, 1990, p. 153).
21. Ao Tribunal apenas se vai requerer que remova um obstáculo constitucional e legal ao exercício do privilégio de execução prévia. Não se está a subtrair à jurisdição administrativa o controlo da legalidade dos actos da Administração cuja execução exija a entrada num domicílio para atribui-lo aos Tribunais comuns, mas, tão só, a cometer a estes a função de garantir o direito de inviolabilidade do domicílio em face da execução coactiva de actos administrativos.
22. A reserva judicial de decisão destina-se a assegurar a legalidade de uma medida que é restritiva de um direito fundamental -a entrada no domicílio sem consentimento do particular-, pelo que a restrição só será autorizada se o juiz concluir pela exigibilidade, adequação e proporcionalidade da medida (art. 18º, n.º 2, da CRP).
23. Cumpre, assim, determinar qual o âmbito da intervenção do Tribunal. Não se tratando de apreciar a legalidade da actuação da Administração, nem por isso se pode reconduzir a intervenção judicial a um puro formalismo de carácter automático. Trata-se do meio que a Constituição reputa apto a assegurar que, para efeitos da execução de um acto emanado de uma autoridade administrativa, no exercício de poderes de autoridade, é justificada e necessária a restrição ao citado direito fundamental. Ao Tribunal encontra-se cometida a função de assegurar que a restrição permitida pela Constituição se contém nos precisos limites que esta lhe fixou.
24. A decisão judicial aparece como um mecanismo de carácter preventivo, tendente a assegurar um ponderação prévia dos interesses em conflito (neste sentido cfr., ANTONIO, Angel Luis Alonso de, ob. cit., p. 119). Ao reconhecer a perturbação que a entrada no domicílio por parte de funcionários e agentes da Administração pode causar, tem-se em vista garantir reforçadamente que tal medida só será usada quando se apresentar absolutamente indispensável a prossecução do interesse público e afastada de qualquer motivo arbitrário, irrazoável ou simplesmente despiciendo, o Tribunal serve, em tal caso, dada a sua posição de distanciamento em relação aos interesses públicos secundários, de garante das limitações referidas.
25. O consentimento do particular para entrada no respectivo domicílio só pode ser suprido por mandato judicial que garanta que a restrição ao direito fundamental em causa se confina ao estritamente necessário para a prossecução do interesse público na execução dos actos administrativos.
II – Conclusões
Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (artº 23º, n.º 1, da CRP),
RECOMENDO
Que V. Exa. providencie por obter um mandato judicial que permita a entrada no domicílio do proprietário faltoso com vista à execução coactiva das obras de beneficiação a que o mesmo foi intimado (art. 12º e 166º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, art. 157, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo).
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL