Exm.º Senhor Presidente do Conselho de Administração
da Radiotelevisão Portuguesa, S.A.
Número:17/A/96
Processo:R-2495/92
Data:25.01.1996
Área: A1

Assunto:DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS – DIREITO DE RESPOSTA – DIREITO AO BOM NOME – DIREITO DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO – OFENSA A MEMÓRIA DE PESSOA FALECIDA – GENERAL HUMBERTO DELGADO.

Sequência:Acatada

I-Exposição de Motivos

A-Factos Geradores do Direito de Resposta

1. No decurso do ano de 1992 foi-me dirigida queixa acerca do exercício de direito de resposta ao abrigo do disposto na Lei n.º 58/90, de 7 de Setembro, por herdeiros do General Humberto Delgado, na sequência de emissão inaugural do programa “Repórteres”, pela Radiotelevisão Portuguesa, S.A., em 22.09.1992 e de reportagem efectuada por Artur Albarran e emitida pela Radiotelevisão Portuguesa, S.A., no âmbito do programa designado, em 6.10.1992, os quais versaram sobre as circunstâncias que terão rodeado a morte do General Humberto Delgado.

2. A fim de apreciar cabalmente a reclamação apresentada e concluir acerca do seu fundamento, entendi dever proceder ao visionamento dos dois documentários indicados, o que realizei na presença de dois credenciados jornalistas por mim contactados, e após me terem sido cedidas pela Radiotelevisão Portuguesa, S.A., as respectivas cópias depositadas em cassetes video.

3. Ponderados os elementos coligidos no âmbito da instrução do processo referenciado e compulsado o teor das deliberações que sobre o assunto foram tomadas pela Alta Autoridade para a Comunicação Social em 9.11.1992 e em 25.11.1992, e do parecer que segue junto, proferido pelo Dr. Pedro Cid, na qualidade de jornalista, concluí que as duas reportagens contêm informações que contradizem factos dados como provados por sentença transitada em julgado.

4. Observo não ter sido promovida a realização de debate nem disponibilizados elementos que habilitassem o público a aferir da credibilidade das declarações efectuadas.

5. Antes, estou em crer que, na realização daqueles programas, foram utilizados métodos susceptíveis de criar a convicção de veracidade dos factos relatados.

6. Tais circunstâncias assumem particular gravidade, porquanto as mencionadas reportagens, divulgadas pelo órgão de comunicação social de maior impacto público, consubstanciam ofensa à honra de pessoa já falecida e com honras de panteão nacional, e a exaltação de cidadão condenado por sentença transitada em julgado, por crime de homicídio, com adulteração da verdade histórica.

7. É minha convicção que, ao realizar e transmitir aqueles programas, a Radiotelevisão Portuguesa não observou exigências que decorrem da natureza pública do serviço prestado e atentou contra os fins que devem nortear a actividade televisiva, designadamente o respeito pela verdade, o rigor e a objectividade da informação e da programação, e bem assim, a formação e a promoção cultural do público.

8. Competia ao jornalista que apresentou aqueles programas relatar os factos de forma objectiva, com rigor e exactidão, e interpretá-los devidamente, ouvir as partes com interesses atendíveis no caso e conduzir o programa de modo a que o público pudesse distinguir com clareza o que constitui notícia e o que tem natureza de opinião.

9. Constitui igualmente dever deontológico do jornalista a utilização de meios leais para obter informações e imagens, assim como lhe cabe promover a pronta rectificação de eventuais informações inexactas ou falsas por ele difundidas (cfr. art.º 11.º, n.º 2 do Estatuto do Jornalista, aprovado pela Lei n.º 62/79, de 20 de Setembro e disposições constantes dos pontos 1,4 e 5 do Código Deontológico do Jornalista). O jornalista em questão violou, em minha opinião, aqueles deveres deontológicos.

Encobriu dados relevantes, abusando da boa fé dos espectadores. Divulgou informações de duvidosa credibilidade e conduziu o programa de forma unilateral, sem atender aos factos provados em Tribunal e sem proceder à audição da parte ausente, previa ou posteriormente.
No decurso do programa, transmitido em 6 de Outubro de 1992, abordou o mesmo tema recorrendo a entrevista de arquivo e sem mencionar a origem da mesma.

10. As declarações do entrevistado – o magistrado judicial Crespo Marques -, concordantes com as do filho de Casimiro Monteiro, foram efectuadas num contexto circunstancial e temporal específico, não sendo plausível a sua produção, à data da respectiva transmissão pela Radiotelevisão Portuguesa, ou seja, dois anos mais tarde, e uma vez analisado e decidido o caso por instância judicial. Aliás, o próprio declarante, ao tomar conhecimento da difusão da entrevista, mostrou-se indignado e anuiu em que a Alta Autoridade para a Comunicação Social ficasse ciente do seu protesto, através de queixa que Iva Delgado veio a formular junto daquele órgão.

B-Condições do Exercício do Direito de Resposta

11. Acresce que, a Radiotelevisão Portuguesa, S.A., criou nos espectadores a convicção de que Iva Delgado estaria presente na reportagem emitida em 6 de Outubro de 1992, através de difusão de “spots” publicitários. Esta circunstância, conjugada com a não comparência de Iva Delgado, contribuiu para a convicção, por parte do público, em declaração prestada no decurso do programa, pelo jornalista, segundo a qual, Iva Delgado recusara exercer o direito de resposta, o que posteriormente foi infirmado por decisão proferida pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, em 5 de Novembro de 1992, de que junto cópia em anexo.

12. Pese embora o sentido das deliberações tomadas pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, no exercício das competências que lhe assistem e na sequência das queixas que sobre o assunto foram submetidas à sua apreciação por Iva Delgado, em cujos termos impende sobre a Radiotelevisão Portuguesa, S.A., o dever de assegurar o exercício de direito de resposta por parte da queixosa, em conformidade com o disposto nos art.ºs. 39.º, n.ºs. 3 e 4 e 35.º, ambos da Lei n.º 58/90, de 7 de Outubro, não se dignou essa empresa dar cumprimento a quanto foi deliberado, reparando cabalmente as ilegalidades cometidas.

Com efeito, apesar de ter procedido à leitura das conclusões das duas deliberações da Alta Autoridade para a Comunicação Social e de duas missivas de Iva Delgado, não o fez em observância das disposições legais aplicáveis relativamente às condições de exercício do direito de resposta.

Em especial observo que as leituras que se seguiram às deliberações da Alta Autoridade para a Comunicação Social ocorreram em hora de emissão de menor audiência que a hora de emissão em que a lesão foi consumada e não foram precedidas de aviso. A primeira deliberação da Alta Autoridade para a Comunicação Social foi tomada em 5.11.1992. A leitura das respectivas conclusões foi efectuada e transmitida em 12.11.1992, pelas 2,20 horas da madrugada e a leitura das missivas em 18.11.1995, pelas 1,30 hora da madrugada.

A este respeito, permito-me reproduzir parte do teor da deliberação aprovada pela Alta Autoridade para a Comunicação Social em 25 de Novembro de 1992, que passo a citar:
” Em relação à efectivação do direito de resposta, o art.º 35.º da Lei n.º 58/90, de 7 de Setembro, estipula que qualquer pessoa singular ou colectiva que se considere prejudicada por emissão de televisão que constitua ofensa directa ou referência a facto inverídico ou erróneo que possa afectar o seu bom nome e reputação tem o direito de resposta, a incluir gratuitamente no mesmo programa ou, caso não seja possível, em hora de emissão equivalente, de uma só vez e sem interpolações ou interrupções.

Além disso, o princípio da proporcionalidade e equivalência entre o programa onde o queixoso é visado e aquele onde responde é sublinhado pelo parágrafo 3 do artigo 39.º da mesma lei, quando estipula que a resposta ou rectificação é lida por um locutor da entidade emissora e pode incluir componentes audiovisuais sempre que a alegada ofensa tenha utilizado técnica semelhante.

Ora, no caso em apreço, verifica-se ter havido evidente desproporção entre a audiência que é atingida pelo programa Repórteres que ocorria em horário nocturno normal, reforçado também pela publicidade que o anunciava, e o público necessariamente reduzido da uma e meia da madrugada. Tal efectivação do exercício do direito de resposta, ainda que contemplando todos os outros requisitos legais, diminuiu substancialmente o efeito útil referido e contraria frontalmente a lei, quando estabelece que as respostas devem ser emitidas nos mesmos canais, programas e horários, ou se tal não for possível, em hora de emissão equivalente ao do programa que deu origem à queixa.”

Em 2 de Dezembro de 1992 foi efectuada, no termo do programa “Repórteres”, pelas 0,20 horas, a leitura das conclusões da citada deliberação da Alta Autoridade para a Comunicação Social e das comunicações produzidas por Iva Delgado.
Subsequentemente, o apresentador do programa teceu comentários pessoais e superabundantes sobre o conteúdo das missivas, em manifesta colisão com o disposto no art.º 39.º, n.º 4 da Lei n.º 58/90.

II-Conclusões

1. Foi inobservado, pela Radiotelevisão Portuguesa, S.A., o disposto nos artigos 35.º, n.º 1 da Lei n.º 58/90 de 7 de Setembro em virtude de a resposta não se ter produzido em condições idênticas às que rodearam a divulgação das ofensas.
A transmissão da resposta foi efectuada ao arrepio do preceituado no art.º 39.º, n.º 4 da Lei n.º 58/90. Entendo ter sido verificado cumprimento defeituoso do dever jurídico em causa.

2. É minha convicção que em razão dos factos e circunstâncias que enunciei, se mostram lesados diversos direitos fundamentais, quais sejam:
– o direito ao bom nome e à reputação que consiste no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social, mediante imputação feita por outrem, bem como a defender-se dessa ofensa e obter reparação adequada;
– o direito a ser informado ou direito a ser mantido adequada e verdadeiramente informado;
– o direito de resposta.

3. Entende a doutrina que existe uma relação conflitual entre o direito de informar e o direito de cada um ver preservados alguns dos seus bens ou valores mais essenciais. O exercício do direito de liberdade de expressão e de informação pode gerar um ilícito penalmente relevante quando configure um abuso de direito.
A ofensa à memória de pessoa falecida constitui um tipo legal de crime. A circunstância de a ofensa poder ser praticada através dos meios de comunicação social traduz uma maior gravidade objectiva e funciona como agravante. O mesmo sucederá quando o agente conheça a falsidade da imputação, por acrescida intensidade da culpa do agente (art.ºs. 185.º e 183.º, n.º 2 do Código Penal).
O legislador atribui, do mesmo modo, particular desvalor ao louvor de outrem que praticou facto criminoso, quando prosseguido através de meio de comunicação social, como resulta da previsão e punição da “apologia pública de um crime” (art.º 298.º, n.º 1, do Código Penal).
Ainda que sem qualquer pretensão de imputar eventual responsabilidade ou de averiguar da sua existência, observo que, em face da previsão e punição pelo legislador penal daqueles dois tipos legais de crime, os factos relatados assumem particular censurabilidade.

4. O direito de resposta constitui uma garantia do rigor e objectividade da informação e, segundo a melhor doutrina, é constitucionalmente concebido como elemento do direito de expressão e de informação. O exercício do direito de resposta constitui forma adequada de reparar as lesões cometidas, designadamente quanto à memória de Humberto Delgado e à reputação de Iva Delgado.

5. As circunstâncias que rodearam a divulgação da resposta pela Radiotelevisão Portuguesa, S.A., subsequentemente às deliberações proferidas pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, extrapolaram os condicionalismos legais, razão pela qual, a meu ver, cabe à reclamante direito de resposta por cumprimento defeituoso da obrigação de difundir resposta.

6. Um dos princípios fundamentais da disciplina do exercício do direito de resposta é o da contemporaneidade da resposta com a difusão da notícia ou outro trabalho jornalístico que se considere inverídico ou ofensivo.
Não obstante o decurso do prazo previsto para o seu exercício, fixado na disposição contida no art.º 37.º, n.º 1, da Lei n.º 58/90, de 7 de Setembro, deve a Radiotelevisão Portuguesa, S.A., difundir o conteúdo da resposta pretendida pela reclamante. Caducado o direito quanto ao seu exercício, permanece na sua titularidade, já que, como admite VITAL MOREIRA (O Direito de Resposta na Comunicação Social, Coimbra, 1994, p-109) “a resposta fora de prazo deixa de obrigar à publicação, mas não dispensa a expressa recusa e a sua comunicação ao interessado”. E adianta o mesmo autor que, em tal circunstância, “o órgão de comunicação pode porém publicar a resposta, se o entender conveniente” (ob. cit., idem).

7. À semelhança do que tem lugar no direito civil com as obrigações naturais, também na presente situação, é de considerar que a prestação de resposta por parte da Radiotelevisão Portuguesa, S.A., não é judicialmente exigível, mas, no entanto, a respectiva obrigação funda-se num dever moral ou social e o seu cumprimento, fundamentalmente, corresponde a um dever de justiça (ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, Coimbra, 1984, p.122). Dever de justiça esse, ao qual, se encontra preferencialmente adstrito o serviço público de radiodifusão, quanto mais não seja, em homenagem ao princípio consagrado constitucionalmente (art.º 266.º, n.º 1 da Constituição) e no Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro (art.º 6.º, “ex vi” do art.º 2.º, n.º 4 do diploma citado).

8. Nos termos da lei assiste legitimidade, no que ao exercício do direito de resposta se reporta, aos herdeiros do ofendido (art.ºs. 37.º, n.º 1 e 35.º da Lei n.º 58/90, de 7 de Setembro).
9. Não obstante o tempo decorrido – porque se trata de factos históricos ocorridos em 1965 o que lhes confere alguma intemporalidade – é praticável o exercício do direito de resposta pelos familiares de Humberto Delgado, por conta do cumprimento defeituoso da obrigação que impendia sobre a Radiotelevisão Portuguesa, S.A., em 2.12.1992.

De acordo com o exposto,RECOMENDO:

a V.ª Ex.ª que a Radiotelevisão Portuguesa, S.A., faculte aos herdeiros do General Humberto Delgado o exercício do direito de resposta, nos termos do disposto no artigo 35.º da Lei n.º 58/90, de 7 de Setembro, com vista à reposição da verdade e à reparação dos danos causados pelas injustiças cometidas por essa sociedade.

O PROVEDOR DE JSUTIÇA

José Menéres Pimentel