Ministro das Finanças
Número:12/B/97
Processo:P-101/82
Data:10.07.1997
Área:A2

Assunto:ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – DÍVIDA A PARTICULAR – DEMORA NO PAGAMENTO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Sequência:Acatada

I-Dos Factos

Foi-me dado a observar que a inércia burocrática dos serviços do Estado e outras entidades integradas na Administração Pública (e.g. institutos públicos e autarquias locais) acarreta como consequência a demora na liquidação das suas dívidas aos particulares, quer estas emirjam de obrigações contratualmente assumidas (no âmbito de actos de gestão pública ou privada), quer de responsabilidade civil extra-contratual (“ope legis” ou por factos ilícitos). Pretendem os prejudicados com tais atrasos ser compensados pela mora no cumprimento da obrigação, tal como acontece nas relações inter?particulares. No entanto, constata-se que o próprio Estado e demais pessoas colectivas de direito público vêm, não raro, invocar a inexistência de norma clara e inequívoca que imponha a obrigação de ressarcimento dos credores pelos danos emergentes da mora. A situação supra descrita acaba por redundar num sentimento generalizado, quer de desconhecimento, quer de incertezas, não só por parte dos cidadãos afectados pela morosidade na satisfação dos seus créditos, como também da Administração, que se escuda, frequentemente, na inexistência de uma norma clara e explícita que a obrigue a assumir a responsabilidade pela mora compensando os credores aquando da verificação da mesma para negar tal direito, procurando solução nas decisões judiciais, com os encargos que tal recurso necessariamente acarreta (atente-se ainda que os montantes de juros em causa poderão não compensar os custos e os riscos de uma decisão desfavorável inerentes ao recurso judicial por parte dos prejudicados).

II-Dos Fundamentos

A mora pressupõe a existência de um simples retardamento na prestação (cujo cumprimento se mantém, no entanto, possível), por culpa do devedor. Para que haja mora, é ainda necessário que a prestação seja certa – determinada -, líquida – por já estar perfeitamente apurado/fixado o seu montante -, e exigível (e.g. por já ter sido o devedor interpelado para o cumprimento). A responsabilidade do devedor pelos danos causados pela mora só fica excluída se este provar que a mesma não lhe é imputável – emergente de causa estranha à sua vontade (caso de força maior), culpa do terceiro ou do próprio credor -, assistindo-se, portanto, a uma presunção, ilidível, de culpa do devedor. O credor terá assim direito à prestação devida, acrescida da indemnização moratória que, regra geral, coincidirá com o montante de juros, à taxa legal, contados do momento da constituição em mora e até efectivo e integral pagamento. E diz-se regra geral porque há que não esquecer o disposto na parte final do n.º 2 e n.º 3 do art. 806º do Código Civil (este último só aplicável quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco). Entendo, assim, a mora, como a existência de um simples retardamento na prestação (cujo cumprimento se mantém, no entanto, possível), por culpa do devedor, não estando a sua verificação dependente da qualidade deste, mas tão só do facto de, repete-se, a prestação já ser certa, líquida, e exigível. Nesta conformidade, a responsabilidade da Administração Pública (Estado e demais pessoas colectivas de direito público) pelos danos causados pela mora, em meu entender, só deverá ser excluída caso prove que a mesma não lhe é imputável, nos termos gerais. O credor terá então direito à prestação devida, acrescida da indemnização moratória que, regra geral, deverá coincidir com o montante que resulta da aplicação da taxa acordada pelas partes ou, na ausência de acordo, com a taxa legal, desde o momento da constituição em mora e até efectivo e integral pagamento. E diz-se regra geral porque parece-me que, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, deverá ser facultada ao credor, caso prove que a mora lhe causou danos superiores ao montante de juros legais ou estipulados, a possibilidade de pedir indemnização suplementar que reponha a situação que existiria caso não se tivesse verificado a mora. Efectivamente, e quando a Administração Pública se obriga contratualmente, entendo estar salvaguardado o direito dos particulares à indemnização decorrente da verificação da mora, em resultado do disposto no art. 804º, art. 805, n.º 2, als. a) e c) e 1ª parte do n.º3, art. 806º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil. Note-se que, no campo de responsabilidade civil extra-contratual, e para além das disposições supra citadas, assumem especial relevância as normas contidas na al. b) do n.º 2 e no n.º 3 in fine do art. 805º, e no n.º 3 do art. 806º, ambos do Código Civil, pela análise das quais se conclui que:

– o momento da constituição em mora, nas obrigações emergentes de facto ilícito, é independente de interpelação;
– sendo o crédito ilíquido, e a obrigação proveniente de facto ilícito ou risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja mora decorrente do facto de a falta de liquidez lhe ser imputável;
– provando o credor, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, que a mora lhe causou dano superior à taxa de juro legal ou convencional poderá exigir indemnização suplementar correspondente.

No que concerne à demora, injustificada, no cumprimento de sentença de condenação em quantia certa, há que recordar que, a partir do momento em que existe sentença condenatória, já não passível de recurso, e que se notifica o devedor do montante fixado a título de indemnização ao credor, estarão preenchidos todos os requisitos constitutivos da mora – obrigação certa, exigível e líquida, sendo o retardamento da prestação imputável ao devedor. A este propósito, não poderei deixar de invocar Pires de Lima e Antunes Varela quando, em anotação ao art. 806º do Código Civil (3ª ed., Vol. II), defendem que: “Visto que a sentença de condenação envolve uma verdadeira ordem ou injunção de pagamento, (sem embargo da eficácia suspensiva eventualmente atribuída ao recurso contra ela interposto), o lesante tem de ser tratado como um devedor em mora da obrigação pecuniária fixada na sentença, desde a data em que esta é proferida”.

Estou ciente que a solução aqui preconizada acarreta elevados encargos financeiros para a Administração Pública. No entanto, não posso deixar de invocar o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados ao cidadão, consagrado no art. 22º da Constituição da República Portuguesa. Deve, assim, a Administração Pública assumir-se como “pessoa de bem”, honrando a tempo e horas os seus compromissos, ou responsabilizando-se pelos danos emergentes do incumprimento, o que me parece constituir um princípio basilar do Estado de Direito Democrático. Acresce que só por esta via poderá a Administração contar com “parceiros” colaboradores e interessados, com as vantagens sobejamente conhecidas (principalmente ao nível da qualidade da contraprestação) que tal postura necessariamente acarreta, afastando-se, de uma vez para sempre, como convém, da imagem tão incutida no espírito dos particulares como é a do “Estado mau pagador”. E não se diga que, por efeito do disposto no n.º 1 do art. 2º do Decreto-Lei n.º 49 168, de 5 de Agosto de 1969, estão o Estado, seus serviços, estabelecimentos e organismos sempre isentos do pagamento de juros de mora. Efectivamente, urge interpretar tal norma juntamente com a do n.º 1 do art. 1º do mesmo diploma legal, tendo em conta os propósitos que o legislador visou alcançar com a sua publicação. Feito tal exercício, necessário será concluir que o que se pretendeu com o diploma ora em apreço foi substituir o regime do art. 139º do Decreto-Lei n.º 16 731, de 13 de Abril de 1929, que se reportava apenas aos juros nas dívidas ao Estado e aos corpos administrativos. Nesta conformidade, e surgindo o preceito legal ora em apreço logo após aquele que respeita à incidência, e sem especificar a que dívidas se reporta tal isenção, impõe-se concluir que as isenções ali previstas têm como único destinatário os juros de mora relativos às dívidas previstas no artigo precedente e quando sejam credoras as entidades ali enunciadas (Estado, seus serviços ou organismos autónomos e autarquias locais) – neste sentido vide Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 27/84, de 10 de Maio de 1984, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 341, p. 74 e seg.. Aliás, a interpretar-se o preceito legal em apreço no sentido da total isenção, por parte do Estado e demais entidades públicas, do pagamento de juros de mora, estar-se-ía a contrariar a norma contida no art. 22º da Constituição da República Portuguesa, por tal redundar na sua desresponsabilização pela prática de ilícito extra?contratual. Caso se entenda que, ao contrário do aqui defendido, não está prevista de forma clara e inequívoca a obrigação por parte do Estado e demais pessoas colectivas de direito público de ressarcir os credores dos danos emergentes da mora, designadamente no caso de obrigações contratuais emergentes de acto de gestão pública e de obrigações extra-contratuais “ope legis” (provenientes de actos administrativos legais ou de actos materiais lícitos), justificar-se-ía, então que para dar efectivo cumprimento ao referido artigo da Constituição se legislasse no sentido de prever explicitamente essa obrigação.

III-Conclusões

De acordo com a motivação exposta, Senhor Ministro das Finanças, e atendendo a que é exigível ao Estado o uso de toda a diligência e de todos os recursos ao seu alcance por forma a apressar o pagamento das quantias de que é devedor,RECOMENDO que:

1. Assuma o Estado a responsabilidade, nos termos gerais de Direito, pelos danos decorrentes da mora no cumprimento das suas obrigações contratuais ou extra-contratuais.
2. No caso de entender que a actual lei a isso obsta, promova a elaboração de legislação que consagra clara a explicitamente essa obrigação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel