Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima
Número:56/A/97
Processo:R-3172/96
Data:14.07.1997
Área : A1

Assunto:EXPROPRIAÇÃO E REQUISIÇÃO DE BENS – PROPRIEDADE PRIVADA – OBRAS PÚBLICAS – OCUPAÇÃO – EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA – INDEMNIZAÇÃO – CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (DECRETO-LEI N.º 438/91, DE 9 DE NOVEMBRO).

Sequência:Não Acatada.

I-Exposição de Motivos

Dos Factos

1. A Sra…, proprietária da Quinta da Torre das Donas, apresentou ao Provedor de Justiça uma queixa na qual alegava que a Junta de Freguesia de Vitorino das Donas não respeitara, no alargamento de um caminho público à custa da sua propriedade, o acordo verbal anteriormente estabelecido.

2. Referia a Reclamante que, tendo apenas autorizado a ocupação de uma faixa de terreno com 1,5 m de largura ao longo da sua propriedade, fora ocupada uma faixa com 3 m de largura, tendo sido destruídos os muros divisórios, a vinha junto ao caminho e os esteios que a seguravam.

3. Inquirida a Junta de Freguesia de Vitorino das Donas, foi recebido em resposta o ofício com a referência 153/D.C., que referia que a obra em causa, embora solicitada pela Junta de Freguesia, fora adjudicada pela Câmara Municipal de Ponte de Lima, e que a Reclamante acompanhara, desde o início, a execução da obra, que valorizara a sua propriedade, pelo que não lhe assistiria razão.

4. A Reclamante, confrontada com os esclarecimentos prestados pela Junta de Freguesia, manteve integralmente a pretensão apresentada, exigindo ser indemnizada pela privação dos terrenos em quantidade superior à acordada, e pelos restantes danos provocados pelo alargamento do caminho.

5. Em face disso, procedeu-se então à audição da Câmara Municipal de Ponte de Lima, que sustentou, através do ofício n.º 1343, de 13.02.97, que a Reclamante dera o seu acordo ao alargamento do caminho, e que acompanhara pessoalmente a execução das obras de alargamento, apenas levantando a questão da largura da faixa de ocupação depois de os muros da sua propriedade já estarem reconstruídos. Mais foi referido que a Câmara Municipal de Ponte de Lima desconhecia qualquer referência, no acordo de cedência, a distâncias ou larguras.

Da Violação do Direito de Propriedade Privada

6. O art. 62º, n.º 1, da Constituição, consagra o direito de propriedade privada, o qual compreende, no seu conteúdo, segundo J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, quatro componentes principais: “(a) o direito de adquirir bens; (b) o direito de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) o direito de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 332).

7. O direito de não ser privado dos bens dos quais se seja proprietário não pode ser entendido, naturalmente, em termos absolutos, mas há-de compreender, segundo os autores acima citados, o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado em caso de desapropriação (cfr. Constituição cit., pp. 333-334). Com efeito, em todas as hipóteses de desapropriação previstas ou admitidas pela Constituição, avulta a necessidade de um procedimento previamente definido por lei, acompanhado do pagamento de uma indemnização.

8. Assumindo o direito de propriedade natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo menos naquela parte do seu conteúdo que reveste a natureza de liberdade ou direito de defesa perante o Estado (cfr., por todos, JORGE MIRANDA, Direito Constitucional, IV, 2ª ed., Coimbra, 1993, pp. 143 e 466), goza do respectivo regime constitucional específico, em toda a sua extensão, conforme se depreende do art. 17º da Constituição.

9. Como aspectos essenciais deste regime, há a salientar, no que ao caso vertente importa, a vinculação das entidades públicas (art. 18º, n.º 1, da Constituição) e a responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrém (art. 22º da Constituição).

10. Concretizando a disposição constitucional que salvaguarda a propriedade privada, no art. 1305º do Código Civil dispõe-se que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (desde que dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas).

11. No Código Civil dispõe-se ainda no art. 1308º, que ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade se não nos casos previstos na lei, estabelecendo não só a possibilidade de o proprietário exigir judicialmente de qualquer detentor ou possuidor da coisa o reconhecimento do seu direito e a consequente restituição do que lhe pertence, como ainda admite a sua defesa por acção directa (cfr. arts. 1311º e ss. do Código Civil).

12 .Assim, deve concluir-se que, se a Administração Pública pode apropriar-se de bens que são propriedade de particulares, quando deles necessite para a prossecução das atribuições que lhe estão cometidas, terá sempre que cumprir com as garantias previstas na Constituição: aquela apropriação terá que se realizar no âmbito de um procedimento pré?definido por lei, que garanta o respeito pelos direitos dos particulares envolvidos (“maxime”, o direito à indemnização).

13. A transmissão da propriedade de bens dos particulares para a Administração pode fazer-se com recurso a um de dois meios: ou a Administração se socorre dos meios de direito privado (compra e venda, doação) ou recorre à expropriação por utilidade pública.

14. Nos termos do art. 2º, n.º 1, do Código das Expropriações, a expropriação só pode ter lugar após esgotada a possibilidade de aquisição por via do direito privado, salvo nos casos em que seja reconhecido carácter de urgência à expropriação (caso em que o respectivo processo terá as vicissitudes que constam do art. 13º do Código), ou quando se verifiquem as situações previstas no art. 39º, n.º 2 do mesmo Código – calamidade pública, exigências de segurança interna e de defesa nacional. Para comprovação da exaustão das possibilidades de aquisição por via do direito privado, o Código das Expropriações exige mesmo que o requerimento para a declaração da utilidade pública dirigido ao ministro competente seja acompanhado de documento onde sejam indicadas as razões da falta de sucesso da tentativa de aquisição (art. 12º, n.º 2, al. G)).

15. No caso vertente, a Câmara Municipal de Ponte de Lima e a Junta de Freguesia de Vitorino das Donas alegam que a Reclamante terá cedido, através de acordo verbalmente celebrado, a faixa de terreno necessária ao alargamento do caminho.

16. No entanto, também no Código Civil se estabelece muito claramente que a transmissão negocial de bens imóveis, quer onerosa, quer gratuita, deve ser celebrada por escritura pública (arts. 875º e 947º, n.º 1, do Código Civil), sob pena de nulidade (art. 220º do mesmo Código).

17. Assim sendo, o acordo celebrado entre a Reclamante e a Autarquia para a transmissão do terreno necessário à obra de alargamento, sendo um acordo verbal, será nulo, não produzindo qualquer efeito e, consequentemente, não operando, a favor da Câmara Municipal de Ponte de Lima, a transmissão da propriedade da referida faixa de terreno.

18. Não pode, pois, deixar de considerar-se que a Câmara Municipal de Ponte de Lima se apossou, sem título, de uma parcela de terreno propriedade da Reclamante, situação contrária ao direito e que urge reparar, pois a prossecução do interesse público terá sempre de fazer-se no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (art. 266º, n.º 1, da Constituição).

19. De resto, sempre se dirá que não dispõe o Município de meio que lhe permita fazer prova da posição jurídica que invoca sobre a parcela de terreno em questão, quando o certo é competir-lhe “fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” (art. 342º, n.º 1 do Código Civil).

De acordo com o exposto,RECOMENDO:

1. Que a Câmara Municipal de Ponte de Lima adquira à Reclamante a parcela de terreno ocupada através do alargamento do caminho, nos seguintes termos:
a) uma faixa de 1,5 m a partir da extrema do terreno, através de celebração, por escritura pública, de contrato de doação, nos termos já aceites pela Reclamante;
b) o restante terreno ocupado, através de celebração, por escritura pública, de contrato de compra e venda, tendo em conta o valor do terreno e das culturas aí existentes aquando da execução da obra.
2. Caso não seja possível chegar a acordo com a Reclamante quanto à aquisição do terreno referido em b), que a Câmara Municipal de Ponte de Lima exproprie aquela parcela, nos termos definidos no Código das Expropriações.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel