Director-Geral dos Registos e do Notariado
Número:68/A/97
Processo:R-110/97
Data:8.10.1997
Área: A1

Assunto:MENORES – NACIONALIDADE – APÁTRIDA – ABANDONO DE MENORES – LIGAÇÃO EFECTIVA – COSTUME INTERNACIONAL – REGISTO CIVIL.

Sequência:Acatada

I-Exposição de Motivos

Dos Factos

1. Foi-me exposta a impressiva situação de um menor conhecido por E…, acolhido pela instituição da Casa do Gaiato de Lisboa desde 24 de Dezembro de 1991, momento em que foi encontrado junto do parque de estacionamento de um espaço comercial em Alfragide, concelho da Amadora.

2. O E.., nome com que se apresentou ao Senhor Director da instituição referida, permanece, seis anos passados sobre a data do seu acolhimento, sem qualquer identificação, com grave prejuízo da sua vida escolar e, numa previsão quase certa, da sua futura inserção social e profissional.

3. Igualmente gravoso é o facto de não lhe ser reconhecida qualquer nacionalidade, o que se fica também a dever ao desconhecimento dos seus progenitores e do local onde terá ocorrido o seu nascimento.

4. Da história deste menor pouco se sabe e, do que se sabe, muito parece serem suposições:

a) O E.,.. alegadamente teria sido trazido de um país africano por sua mãe, A. V., com cerca de quatro anos de idade, notando-se, porém, que o menor não guarda qualquer recordação da mãe, de outros familiares, ou de qualquer outro país ou região;

b) Com a idade referida, foi confiado a um casal residente no Bairro do Zambujal (Buraca-Amadora), que tratava por tio e tia (embora sem qualquer vínculo familiar), após sua mãe se ter ausentado para parte incerta (Brasil? Angola?), sem qualquer notícia, até ao momento presente;

c) A tia veio a falecer e do tio, desaparecido durante meses, veio a ter-se notícia da sua morte, pelo que a Senhora Dª…, residente no mesmo Bairro, notando a situação de abandono, tomou conta do E… ;

d) Alegando maus tratos, o E… fugiu da casa daquela senhora, o que foi participado à 64ª Esquadra da Divisão da Amadora da Polícia de Segurança Pública, em 3-12-1991. Nessa ocasião, a Senhora D.ª… reconheceu não dispor de condições para acolher o menor. É dessa participação, registada com o n.º 1689/91, que constam os factos referidos nas alíneas anteriores;

e) O E… foi encontrado em Alfragide, na noite de 24 de Dezembro de 1991, por um cidadão identificado no processo que o levou para a Casa do Gaiato de Lisboa, em Santo António do Tojal, na sequência de pedido da criança de ser levada para casa daquele, pedido esse que não podia ser atendido pela pessoa que o encontrou;

f) No dia imediatamente seguinte ao dia de Natal, o Exmo. Director da instituição comunicou o facto à esquadra policial identificada, solicitando o envio dos elementos relativos à criança ao Tribunal de Menores de Lisboa. O Revº Director viria ainda a solicitar ao Tribunal que regularizasse a situação civil do menor e pertinente documentação.

5. O Tribunal de Menores de Lisboa, em cujo 2º Juízo foi instaurado processo com base na participação policial, arquivou o mesmo em 6-3-1992, remetendo certidão de todos os elementos instrutórios e decisórios à Digma. Procuradora junto do Tribunal de Família de Lisboa para instauração de acção de tutela do menor.

6. A Exma. Curadora de Menores, por seu turno, veio interpor recurso daquela decisão de arquivamento (sem sucesso), por não ter sido decretada medida tutelar de confiança judicial provisória da criança à instituição de acolhimento, e por não ter sido ordenada busca à casa de residência dos membros do casal, entretanto falecidos, com vista à obtenção de eventuais documentos de identificação do menor (boletim de vacinas, cédula pessoal). A situação de abandono do menor foi invocada para justificar a adopção daquelas medidas pelo Tribunal de Menores, considerando-se o dever fundamental do Estado de protecção das crianças abandonadas (art. 69º, n.º 2, CRP) e o disposto nos artigos 15º, alínea a) e 19º, n.º 1, do Regime da Organização Tutelar de Menores (Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro).

Contudo, entendeu o Tribunal inexistir perigo para a saúde, segurança, educação ou moralidade do E…., por não carecer o mesmo de protecção contra o exercício abusivo de autoridade na família ou na instituição a que foi entregue, razões pelas quais não adoptou as medidas acima enunciadas.

7. O Tribunal de Família de Lisboa solicitou à Conservatória dos Registos Centrais o envio da certidão de nascimento do E…, ao que foi respondido, por ofício de 5-6-1992, não constar naquela Conservatória o assento de nascimento solicitado, pelo que se pedia que fosse averiguada a existência de registo em algum consulado português.

8. As diligências encetadas nesse sentido junto das Embaixadas da República Democrática de S. Tomé e Príncipe e da República de Cabo Verde em Portugal revelaram-se infrutíferas, pois foi informado não haver registo do E… ou da sua mãe, o que se refere no despacho da Exma. Curadora de Menores do Tribunal de Família de Lisboa, de 25-11-1994. Nesse despacho foi determinada a remessa de certidão dos autos ao representante do Ministério Público junto dos Juízos Cíveis de Lisboa, para “despoletar processo de justificação judicial para suprimento de omissão de registo – arts. 105º e 299º do CRC”. Em despacho anterior, datado de 4-11-1994, a Exma. Curadora havia ponderado a possibilidade de sanar a omissão do registo em Portugal, colocando a hipótese de recurso ao procedimento previsto no art. 131º do Código do Registo Civil ou ao procedimento do art. 105º do mesmo diploma legal.

9. A Exma. Delegada do Procurador da República junto dos Tribunais Cíveis de Lisboa considerou que a provável nacionalidade estrangeira (santomense ou cabo-verdiana) do menor colocava obstáculos à competência dos Tribunais portugueses para o eventual suprimento da respectiva omissão de registo à luz do art. 105º do Código do Registo Civil.

10. Mais considerou que a situação descrita era uma “situação de abandono, enquadrável na previsão dos artigos 131º e segs. do Código do Registo Civil, que teria justificado, logo na ocasião em que o menor foi encontrado, que se tivesse lançado mão do procedimento aí previsto, designadamente apresentando-se o menor na Conservatória competente para o registo, nos termos previstos no artigo 133º, n.º 2, daquele Código”.

11. Contudo, admitiu a Exma. Procuradora a dificuldade de concretização de tal registo, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a falta de observância daquela formalidade e o tempo entretanto decorrido criavam obstáculos à feitura actual do registo. Em segundo lugar, haveria ainda que esgotar as diligências destinadas a verificar se o menor estaria ou não registado em outro país, pelo que deveria ainda procurar obter-se a certidão de nascimento junto do Consulado Geral de Portugal em São Tomé e Príncipe.

12. Não obstante, em 12-05-1995 foi oficiada a Conservatória do Registo Civil da Amadora “a fim de, se assim for entendido possível, ser, desde já, despolotado o procedimento oficioso previsto nos artigos 131º e segs. do Código do Registo Civil ou, a propósito, informado o que for tido por conveniente”.

13. A Exma. Conservadora do Registo Civil da Amadora, em resposta de 25-05-1995, veio sugerir que, ao invés, fosse obtido certificado de notoriedade de nascimento, para efeitos de emissão de bilhete de identidade, conforme previsto no art. 23º da Lei de Identificação Civil (Decreto-Lei n.º 64/76, de 24 de Janeiro), na medida em que não estariam esgotadas as possibilidades de registo no país de origem do menor, pois “tudo leva a crer que o menor nasceu no estrangeiro e nenhum dos progenitores é de nacionalidade portuguesa” (cfr. ofício n.º …).

14. Na sequência desta resposta, a Exma. Delegada do Procurador da República veio concordar com a alternativa proposta, considerando “ser inviável a solução inicialmente configurada, ou seja, a instauração de acção judicial para suprimento da omissão de registo, já que, para tanto, não é competente a ordem jurídica portuguesa – artigos 1º, n.º 2, e 10º do CRC, em vigor, cuja disciplina se impõe ao regime previsto nos artigos 105º e segs. (registo de abandonados)” (cfr. despacho de 9-11-1995). Assim, foi arquivado o processo pelo Ministério Público.

15. Por ter sido considerada indispensável a identificação do menor para a adopção das medidas tutelares exigíveis no caso vertente (para mais, não tendo sido decretada, até à data, qualquer medida de tutela da criança), encontra-se em curso o procedimento de emissão do certificado de notoriedade de nascimento, para obtenção de bilhete de identidade, nos termos da Lei de Identificação Civil. Na falta de qualquer menção, será emitido bilhete de identidade de cidadão com nacionalidade desconhecida.

16. Na instrução do processo aberto na Provedoria de Justiça, foi ouvida a Direcção-Geral do Registo e Notariado, com vista a conhecer-se fundamentalmente:
a) do resultado do procedimento de registo de abandonados na Conservatória do Registo Civil da Amadora, bem como das razões que eventualmente hajam obstado ao registo da criança; e
b) da emissão do certificado de notoriedade de nascimento para efeitos de identificação civil da criança.

17. Essa Direcção-Geral providenciou por resposta ao pedido de informações da Provedoria de Justiça junto da Conservatória do Registo Civil da Amadora e da Conservatória dos Registos Centrais (cfr. ofício n.º…).

18. A Conservatória dos Registos Centrais veio informar que lhe havia sido remetida pelo Delegado do Procurador da República do Tribunal Judicial de Loures cópia do despacho em que se concluía pela necessidade de emissão do certificado de notoriedade de nascimento previsto no Decreto-Lei n.º 64/76, de 24 de Janeiro. Para o efeito, fora solicitado à Casa do Gaiato de Santo Antão do Tojal que obtivesse, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, autorização de residência para o E…, porquanto a emissão de bilhete de identidade, sempre que requerido por cidadãos estrangeiros, apátridas ou de nacionalidade desconhecida depende de residirem há seis meses em território nacional, tendo presente que “a residência de estrangeiros é atestada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras” (cfr. ofício n.º …).

19. O Revº Director da Casa do Gaiato informou esta Provedoria em 6 de Maio p.p., ter, entretanto, sido emitida a citada autorização de residência, sem que a questão da nacionalidade fosse, em definitivo, resolvida.

20. Por sua vez, a Exma. Conservadora do Registo Civil da Amadora veio esclarecer que não excluíra a hipótese de proceder ao registo de abandonado com base no auto de notícia da 64º Esquadra da Polícia de Segurança Pública de 26 de Dezembro de 1991, “não obstante a autoridade administrativa, ao lavrá-lo, não ter tido em vista promover o registo de nascimento, pois, se assim fosse, teria remetido cópia à Conservatória” (cfr. ofício n.º …).

21. Contudo, a emissão do certificado de notoriedade de nascimento seria, no seu entender, o meio mais rápido para a emissão de documentos de identificação do menor, “enquanto não se apurasse se estava ou não registado no país de origem” (cfr. idem), por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, foi levantada a possibilidade de existir cédula pessoal do menor (tendo o Ministério Público representado junto do Tribunal de Menores requerido a passagem de mandatos de busca para o efeito, o que foi indeferido pela Mma. Juíza) e, em segundo lugar, foi entendido pelo Ministério Público representado junto dos Tribunais Cíveis de Lisboa que não se mostravam esgotadas todas as diligências para apurar se o menor estaria registado em país de origem diversa, tanto que considerou dever proceder-se a uma última diligência junto do Consulado Geral de Portugal em S. Tomé e Príncipe para ser obtida a certidão de nascimento do menor junto das autoridades locais, caso esteja registado.

22. Esta última diligência foi, entretanto, promovida pela Provedoria de Justiça, tendo sido requerida directamente à Conservatória do Registo Civil de São Tomé e Príncipe a passagem de certidão do registo de nascimento do E… ou, caso inexistisse registo, uma certidão negativa. Em resposta, e tendo consultado todos os livros de nascimentos referentes aos anos de 1979 a 1988, o Departamento do Registo Civil de São Tomé enviou uma certidão negativa do assento de nascimento da criança inclusa no processo.

23. Actualmente, o processo administrativo para eventual propositura de acção de tutela do menor encontra-se sob a responsabilidade dos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Loures (considerado territorialmente competente para o efeito), após remessa em 24-05-1996 dos autos pelo Tribunal de Família de Lisboa.

Do Direito
Do Registo Civil de Abandonados

24. De quanto fica exposto, verifica-se que a situação do menor E… não sofreu alteração no plano jurídico desde que foi encontrado, em situação de abandono, num parque de estacionamento em Alfragide, na noite de Natal do ano de 1991.

25. Considero, não obstante o período de tempo decorrido (ou, sobretudo, pelo período de tempo decorrido), dever ser encontrada solução que acautele os direitos desta criança. Recusam elementares imperativos de justiça e de segurança proporcionados pela ordem jurídica que o direito deixe de providenciar uma solução.

26. Os catorze anos que lhe são hoje atribuídos pela Ciência Médica não invalidam a consideração do seu estatuto de criança, constitucionalmente consagrado. Em anotação ao disposto no art. 69º da Constituição da República Portuguesa, onde se consagra o direito das crianças à protecção da sociedade e do Estado, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA entendem que “a Constituição não oferece qualquer apoio normativo para precisar o sentido de criança. Todavia, a Convenção para os direitos da criança (art. 1º) considera criança todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo” (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 355). Não é entre nós o caso de atingir a maioridade mais cedo (cfr. art. 122º do Código Civil), pelo que, para o efeito, deve ser reconhecido como criança e tido por merecedor da pertinente protecção constitucional.

27. Em meu entender, a solução passa pelo recurso ao instituto do registo de abandonados, não encontrando, nas dúvidas que foram, a esse propósito, suscitadas, obstáculo intransponível.

28. Na verdade, a falta de imediaticidade do registo de abandonado ficou a dever-se, não ao momento da comunicação do seu aparecimento às autoridades policiais (note-se que é perfeitamente compreensível que a deslocação do Exmo. Director da Casa do Gaiato à esquadra não tenha ocorrido no dia 25 de Dezembro, mas no dia imediatamente seguinte, de manhã), tão pouco à remessa dos elementos para o Tribunal de Menores, mas sim ao lapso de tempo entretanto decorrido, sem decisão sobre a escolha da solução legalmente aplicável.

29. Mostra-se contemplado, de resto, quer no Código de Registo Civil em vigor (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 131/95, de 6 de Junho), quer no Código vigente à data dos factos descritos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 51/78, de 30 de Março), um procedimento próprio destinado ao suprimento da omissão de qualquer registo que não tenha sido oportunamente lavrado (cfr. artigos 83º e 105º, respectivamente).

30. A questão, no entanto, colocou-se do seguinte modo: o suprimento da omissão de registo destinar-se-ia a reparar a falta de registo de nascimento do E… Na medida em que, desde sempre, se supôs que o menor era estrangeiro, nascido no estrangeiro e filho de estrangeiros, o registo do seu nascimento não era obrigatório (vd. art. 1º, n.º 2 do Código do Registo Civil, anterior art. 2º, n.º 1, que consideram que os factos – vg. nascimento – referentes a estrangeiros apenas estão obrigatoriamente sujeitos a registo quando ocorridos em território português), pelo que não cumpria suprir essa falta.

31. Admitir que o menor possuísse efectiva ligação a um Estado estrangeiro (africano, ao que parece ter vindo sempre a supor-se) é não partir de indícios consistentes. As premissas acima enunciadas revelam-se infundadas ou simplesmente por provar. Basta recordar que se baseiam num único testemunho (da Senhora…, sem qualquer laço familiar com o menor, que referiu ter sido trazido de Angola por sua mãe), bem como em sugestões cujas premissas se desconhece onde ancoram (ambos os progenitores seriam estrangeiros, provavelmente santomenses ou cabo-verdianos). Certo é que nunca foi identificada a mãe, menos ainda o pai (o apelido A. é a única referência indiciada do progenitor), não tendo sido determinado o local de nascimento da criança. Estão, assim, abertas todas as possibilidades, as quais não podem excluir nem a nacionalidade portuguesa dos progenitores nem o nascimento do menor em solo português – podendo consubstanciar-se, porventura, um caso típico de omissão do registo de nascimento do menor em território português (tardio agora, há muito decorrido o prazo de trinta dias – entretanto encurtado para vinte – para a respectiva declaração).

32. Abertas todas as possibilidades, considero ser tempo de enveredar pelas certezas. E se os factos não nos trazem certezas, que estas nos sejam dadas pelo direito. Deverá atentar-se no facto de a criança ter sido encontrada em situação de abandono e desamparo, desconhecendo-se o paradeiro dos seus progenitores, aparentando nesse momento oito anos de idade.

33. Em casos como o descrito, previa-se no Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 51/78, de 30 de Março, como prevê o Código do Registo Civil em vigor, nos seus artigos 131º e ss. e 105º e ss., respectivamente, que se procedesse ao registo de nascimento dessas crianças, tidas como abandonadas (registo de abandonados).

34. Esse registo deve ser efectuado com base no auto da autoridade policial a quem seja comunicado o aparecimento do menor nas circunstâncias já enunciadas, hipótese, aliás, não descurada pela Exma. Conservadora do Registo Civil da Amadora.

35. E é de notar, com especial destaque, o facto de a lei, no que se refere ao registo de abandonados, e atentas as particularidades da situação destas crianças, não ter por relevante o lugar efectivo do seu nascimento.

36. Para efeitos do registo de abandonados, o dia, mês, hora e lugar em que o registando foi encontrado são considerados como correspondentes ao dia, mês, hora e lugar do nascimento (ou naturalidade, atenta a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 36/97, de 31 de Janeiro), devendo o ano ser determinado em função da idade aparente (cfr. art. 107º, n.º 2, do Código de Registo Civil, sem se afastar, quanto a este aspecto, do disposto no Código anterior).

37. A solução legal agora descrita afasta a objecção já enunciada quanto ao suprimento da omissão de registo de nascimento e que foi também invocada quanto ao registo de abandonados (vd. supra, ponto 14): a não obrigatoriedade de registo, na medida em que a criança (provavelmente estrangeira) não nascera (não deve ter nascido) em Portugal, conforme se sugeriu.

38. Vejamos porque esta objecção não deve proceder. Em primeiro lugar, o local efectivo do nascimento de uma criança abandonada não é relevante, como se viu, até pelo seu desconhecimento. Em segundo lugar, e decorrente da primeira razão apontada, para efeitos de registo de um abandonado, o local em que foi encontrado é feito corresponder ao local de nascimento, logo, considera-se nascido em território português. A provar-se facto contraditório, será este registo cancelado ou rectificado (artigos 91º e 92º do Código do Registo Civil).

39. De qualquer forma, não se deve perder de vista que a invocação do art. 1º, n.º 2, do Código do Registo Civil (anterior art. 2º, n.º 1) se baseia numa mera sugestão: a de o menor ser estrangeiro.

40. Todas as diligências feitas para conhecer do seu registo de nascimento anterior em Estado estrangeiro revelaram-se infrutíferas. Considero, todavia, que às citadas diligências deve ser reconhecido um mérito que compensa os prejuízos causados pela dilação da decisão que acarretaram.

41. Refiro-me, mais uma vez, ao regime do registo de abandonados. Dita a lei que a autoridade administrativa ou policial deve promover, se for caso disso, o assento de nascimento (art. 106º, n.º 1, do Código do Registo Civil, anterior art. 133º, n.º 2).

42. A este propósito, pode considerar-se que “a referência feita (…) à promoção oficiosa do registo se for caso disso pressupõe a prévia indagação sobre a omissão do mesmo” (cfr. MARIA DA CONCEIÇÃO LOBATO GUIMARÃES et al., Código do Registo Civil Anotado, Lisboa, 1995, p. 118).

43. Parece-me satisfeito esse pressuposto, verificado não haver qualquer assento de nascimento do E… .

44. Pode observar-se na Lei da Identificação Civil sentido e alcance idênticos a conferir ao local em que o abandonado foi encontrado: “será considerado para efeitos de inscrição da respectiva naturalidade” (art. 15º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 64/76, de 24 de Janeiro, com a redacção dos Decretos-Lei n.ºs 29/79, de 22 de Fevereiro, e 102/87, de 6 de Março).

45. Não se encontra motivo que obste ao registo da criança, considerando-se nascida em 24 de Dezembro, pelas 23 horas, em Alfragide, concelho da Amadora, no ano de 1983, pese embora o auto policial redigido em 26 de Dezembro de 1991 (em aditamento ao auto de notícia do desaparecimento do menor) se mostrar algo incompleto, como deu conta a Exma. Conservadora do Registo Civil da Amadora.

46. De qualquer forma, o assento de nascimento deverá ser lavrado por transcrição, na conservatória da área do lugar em que foi encontrado, com base no auto de ocorrências elaborado pela autoridade policial, não sendo hoje necessária a apresentação do registando ao conservador (artigos 106º, 107º e 53º, n.º 1, alínea a), do Código do Registo Civil).

47. Decorridos vários anos sobre a data do aparecimento do menor, e entendendo-se dever ser suprida a omissão de registo, é de atentar no procedimento regulado nas alíneas b) e c), do n.º 1, do art. 83º, do Código do Registo Civil (aliás, de teor semelhante ao do previsto no Código anterior), que não exige, por regra, – ao contrário do suprimento de omissão de registo que devesse ser lavrado por inscrição – o recurso ao processo de justificação judicial regulado nos artigos 233º e ss. do mesmo Código.

48. Não posso, por último, deixar de notar que o Código do Registo Civil vigente à data do aparecimento do menor (o aprovado pelo Decreto-Lei n.º 51/78, de 30 de Março) previa ainda que o procedimento do registo de abandonado fosse aplicável, com as necessárias adaptações, ao assento de nascimento de todo aquele de que não fosse possível obter elementos precisos acerca da sua identidade (vd. art. 136º).

49. O Código de 1978 admitia a possibilidade de, a todo o tempo, registar o nascimento destas pessoas, em disposição cuja justificação remonta, porventura, ao Código do Registo Civil de 1958, onde se previa este meio, limitando-o, contudo, aos filhos de ciganos. Acresce que a transcrição do registo destes nascimentos era, inclusivamente, de âmbito suficiente para o caso vertente, pois não se estabelecia qualquer limite de idade aparente dos registandos.

50. Em conclusão, devo insistir na imperiosa necessidade do registo de nascimento do E…, adaptando-se eventualmente, o nome à onomástica portuguesa ou escolhendo-se outro, nos termos de criteriosa decisão do conservador competente para o efeito (artigos 108º e 103º, n.º 2, do Código do Registo Civil).

51. Reforçando a protecção constitucional já enunciada, é de recordar que a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 26 de Janeiro de 1990, ratificada por Portugal e já em vigor, consagra no seu art. 7º, n.º 1, o direito de as crianças serem registadas e o de adquirirem um nome (cfr. Resolução n.º 20/90, da Assembleia da República, DR, I Série A, n.º 211, de 12-9-1990).

Da Nacionalidade: Crianças Encontradas sem Indícios
de Ligação Efectiva a Outro Estado

52. Registada e identificada esta criança, entendo não se lhe poder negar a cidadania portuguesa.

53. Das várias razões que baseiam este entendimento, será de atentar numa primeira e que me parece mais evidente: o menor E…, sem o reconhecimento da cidadania portuguesa, não possui qualquer nacionalidade.

54. Com efeito, se é certo que a definição dos seus cidadãos compete a cada Estado, os critérios tradicionalmente utilizados nessa definição (e tratando-se de aquisição originária da cidadania) são “o da filiação” ou “ius sanguinis”- (…); e o do local de nascimento ou “ius soli” (cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo III, 3ª ed., Coimbra, 1996, p. 94)

55. Não se mostrando estabelecida a filiação do menor, dificilmente poderá ser invocado o critério da consaguinidade para o efeito de atribuição da nacionalidade, enquanto vínculo ao Estado português ou a qualquer outro Estado. O Direito Comparado ensina-nos que outras soluções podem ser encontradas. A título de exemplo, é estabelecido no Código Francês da Nacionalidade (art. 21º) que uma criança nascida em França de pais desconhecidos é francesa (cfr. GUY RAYMOND, Droit de L´Enfance – de la conception à la majorité, 2ª ed., Paris, 1983, p. 70).

56. Por seu turno, o “ius soli” apenas opera relativamente ao Estado português, pois a criança considera-se nascida no lugar em que foi encontrada (Alfragide-Amadora), conforme se pode já concluir.

57. O direito a uma nacionalidade, constitucional e internacionalmente reconhecido, por certo que não é, necessariamente, o direito à nacionalidade portuguesa, por parte de todos os que a reclamem.

58. Como escreve MOURA RAMOS, “o legislador português não pode garantir, por razões evidentes, que toda a pessoa tenha uma nacionalidade. O que pode é evitar que aqueles que tenham uma ligação efectiva à comunidade portuguesa – ou por serem filhos de portugueses ou por terem nascido em Portugal – se encontrem na situação de não possuírem qualquer nacionalidade”. E referindo-se ao disposto no art. 1º, n.º 1, alínea d), da Lei da Nacionalidade, acrescenta: “Ora é aos incluídos na categoria indicada em último lugar que se dirige o comando em questão (já que o caso dos que caibam na primeira é resolvido na alínea b) do n.º 1 do artigo 1º). Nele, pois, a utilização do critério “ius soli” não tem vedadeira autonomia, aparecendo como uma forma de combate à apatridia” (cfr. Do Direito Português da Nacionalidade, Coimbra, 1984, pp. 133-134).

59. O preceito legal invocado vem determinar que são portugueses de origem os indivíduos nascidos em território português quando não possuam outra nacionalidade. Nos termos do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322/82, de 12 de Agosto), presumem-se portugueses os indivíduos nascidos em território português de cujo assento de nascimento conste a menção especial de que não possuem outra nacionalidade.

60. Esta menção especial, a ser averbada ao assento de nascimento, colide, no entanto, com o ónus da prova de apatridia que resulta do disposto no art. 4º, n.ºs 1 e 2, e art. 52º, do citado Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, impondo aos apátridas que demonstrem não possuir nacionalidade alguma.

61. No entanto, o cumprimento deste ónus pressupõe a verificação de conexões relevantes entre a situação do interessado e outros Estados da Comunidade Internacional. Com efeito, a prova da apatridia é feita com o recurso aos meios estabelecidos em convenção internacional ou, na sua falta, por meio de documentos emanados pelas autoridades dos países com os quais o interessado tenha conexões relevantes (designadamente, os países de origem, o da última nacionalidade ou o país da nacionalidade dos progenitores), nos termos do referido art. 52º do Regulamento da Nacionalidade.

62. Ora, no caso presente, a prova de tal facto negativo torna-se impossível, dado que após cinco anos de diligências e investigações não se encontra nenhuma conexão relevante com Estado estrangeiro; e isto, porque, de facto faltam indícios sérios dessa conexão que se vem presumindo com os países africanos de expressão portuguesa.

63. Se não, vejamos:
i) – Não se sabe de onde veio a criança, nem se chegou a vir de algum território estrangeiro, apenas se confabulando a hipótese – nunca materialmente fundamentada – de ter como origem ou proveniência um dos países africanos de expressão portuguesa; e,
ii) – desconhece-se a identidade dos pais, como se desconhecem quaisquer laços de parentesco ou de representação legal.

64. A partir daqui três conclusões, em alternativa, seriam possíveis:
a) Considerar que a prova da apatridia, em tais casos, depende de uma confirmação negativa por parte dos cerca de cento e noventa Estados que integram a Comunidade Internacional; ou
b) Considerar que quem não apresente conexão relevante com outro Estado se encontra impedido de provar a apatridia; ou ainda,
c) Considerar que quem se encontra nessa situação reclama um tratamento constitucionalmente adequado à protecção fundamental das pessoas.

65. A primeira conclusão é absolutamente irrazoável, aproximando-se da segunda conclusão pela extrema onerosidade da prova de facto negativo exigida. Esta segunda conclusão, por seu turno, afigura?se absurda, pois quem não tem ligação com qualquer Estado estrangeiro fica impedido de invocar a qualidade de apátrida. A terceira conclusão merece aprofundamento, porquanto o fundamental direito à cidadania, nos termos do disposto no citado art. 1º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 37/81, é reconhecido na medida em que se procura evitar a apatridia, ficando, assim, condicionado à verificação da situação que se combate.

66. Não se deverá aqui perder de vista o que consta da Resolução adoptada na Conferência promovida pelas Nações Unidas de 30 de Agosto de 1961 (na sequência da assinatura da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia): “as pessoas que sejam apátridas de facto deverão tanto quanto possível ser tratadas como apátridas de jure para lhes permitir a aquisição de uma nacionalidade efectiva” (trad. do inglês, publicado in ICLQ, (1962), p. 1096 – cfr. sobre o assunto, IAN BROWNLIE, Principles of Public International Law, 4ª ed., Oxford, 1990, p. 420).

67. É que não se pode perder de vista tratar-se de uma criança, para mais abandonada, merecedora, por isso, de especial protecção por parte do Estado, como se reconhece em Portugal (art. 69º, n.º 2, da Constituição).

68. Ainda que nem todos os apátridas que se encontrem em Portugal tenham de ver reconhecida a nacionalidade portuguesa, não se vê como possa recusar-se esta atribuição a uma criança apátrida, cuja filiação se desconhece e sem ligação efectiva a qualquer outro Estado.

69. Se é certo que Portugal não ratificou, até ao presente momento, a Convenção Sobre a Redução dos Casos de Apatridia de 30 de Agosto de 1961, não menos certo parece o seu interesse, na parte em que respeita estritamente às crianças encontradas, sem mais.

70. A particularíssima situação das crianças abandonadas mereceu especial referência nesta Convenção Sobre a Redução dos Casos de Apatridia, que, no art. 2º, veio estabelecer que “a criança encontrada no território dum Estado contratante, até prova em contrário, reputa-se nascida nesse território de pais possuindo a nacionalidade desse Estado” (cfr. versão portuguesa do texto in B.M.J., n.º 249, Outubro de 1975, pp. 209 e ss.).

71. Deste preceito resultam duas consequências quanto às crianças encontradas no território dos Estados contratantes:

i) – Presume-se que nasceram nesse território; e,
ii) – Presume-se que os pais são nacionais desse Estado.
Tais presunções podem ser ilididas, porém, a qualquer tempo.
72. Não se diga que, deste modo, se estará a conferir ao interessado o benefício de uma presunção que o art. 1º, n.º 2, da Lei da Nacionalidade Portuguesa confina aos recém-nascidos expostos em território português.

73. A Lei da Nacionalidade Portuguesa concedeu o benefício da ficção de nascimento em Portugal aos recém-nascidos expostos por, em tais casos, se mostrar muito provável (ou quase certo) que o nascimento ocorreu em território nacional, como muito provável é também que não se encontrem conexões relevantes com outros Estados (a proximidade temporal com o nascimento conduz ao solo nacional; o abandono, por seu turno, conduz, em muitos casos, à falta ou desconhecimento de vínculo familiar com pessoas de outra nacionalidade). Ora, quando outras crianças, ainda que não sejam recém-nascidas, venham a mostrar uma situação de falta de conexão relevante com outros Estados, devem, por identidade de razão, beneficiar do estatuto conferido aos recém-nascidos. Isto, como adiante se verá, constitui corolário do princípio da ligação efectiva, ao qual o Estado português se encontra vinculado internacionalmente. O menor E…, na verdade, não aparenta indícios suficientes de outra ligação efectiva que não seja com o Estado Português.

74. Tanto assim parece ser que o registo civil do nascimento de abandonados opera quer sobre os recém-nascidos expostos em Portugal, como sobre os menores de idade aparente inferior a catorze anos (cfr. art. 105º do Código de Registo Civil em vigor).

75. Nestas situações, e não possuindo outra nacionalidade, à criança deve ser atribuída a nacionalidade portuguesa, por força do disposto no art. 1º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro.

76. Importante é ainda, para este caso, que se faça prova da nacionalidade adquirida “ex vi legis”.

77. Como ensina MOURA RAMOS, “o nosso sistema de registo pode considerar-se um sistema fechado na medida em que, por ele, todos os actos relevantes em sede de nacionalidade portuguesa podem ser levados a figurar nos assentos de nascimento, pelo que fica assegurado que o estado civil possa facultar os elementos necessários à constatação da nacionalidade portuguesa de quem quer que seja, assim se permitindo que o Estado Português possa saber claramente quem são os seus nacionais”, assinalando-se uma outra função ao sistema de registo: “ele permite ainda a obtenção de uma outra finalidade, que interessa prima facie aos indivíduos: a prova, em termos tão simples quanto possível, da nacionalidade portuguesa” (cfr. Do Direito Português da Nacionalidade, Coimbra, 1984, p.p. 205-206).

78. E se o art. 21º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade Portuguesa vem dispor que a nacionalidade portuguesa originária de indivíduos nascidos em território português ou sob administração portuguesa prova-se pelo assento de nascimento, sendo havidos como filhos de nacional português os indivíduos de cujo assento de nascimento não conste menção da nacionalidade estrangeira dos progenitores ou do seu desconhecimento, “dever-se-ia concluir do mesmo modo (que) se existisse menção da nacionalidade portuguesa de um dos progenitores, se existisse a menção especial de que o interessado não possuía outra nacionalidade (…) e se não figurasse no assento qualquer outra circunstância que contrariasse a presunção de que o interessado era português (art. 1º, alíneas a) e c) do Regulamento)”, nas palavras de MOURA RAMOS (ob. cit, p. 208, n. 335).

79. Neste sentido, foi já decidido no Supremo Tribunal de Justiça que “há a concluir (…) que a prova do nascimento, e da respectiva nacionalidade consequentemente, só pode ser feita pelo assento de nascimento no registo civil ou paroquial (este desde que permitido)” (cfr. Acórdão de 15-05-1986, in BMJ, n.º 357, 1986, p. 370).

80. Daí que se insista, por mais uma vez, na necessidade de registo de nascimento da criança encontrada no Natal de 1991 (com a menção especial que não possui outra nacionalidade).

81. A situação do menor merece, em suma, uma especial protecção por parte do Estado Português.

Dos Direitos Fundamentais das Crianças: Nome e Nacionalidade

82. Parece chegada a altura da efectivação dos fundamentais direitos que lhe assistem, sejam o direito a um nome, o direito ao registo e o direito a adquirir uma nacionalidade.

83. Esses direitos, se outra fonte não for encontrada, decorrem do disposto na já citada Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, e devidamente ratificada pelo Estado Português (cfr. Resolução da Assembleia da República n.º 20/90 e Decreto n.º 49/90, de 12 de Setembro), de resto, em estreita ligação com a Declaração dos Direitos da Criança de 20 de Novembro de 1959, à qual, deve ser reconhecida a natureza de Direito Internacional Geral ou Comum, ingressando, por isso, na ordem jurídica interna por meio de recepção plena (art. 8º, n.º 1, da Constituição).

84. Nos termos do art. 7º da citada Convenção, a criança é registada imediatamente após o nascimento e tem, desde o nascimento, o direito a um nome e o direito a adquirir uma nacionalidade.

85. Aliás, estes direitos vêem já reconhecidos no art. 24º, n.ºs 2 e 3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 16 de Dezembro de 1966 (aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho), referindo-se igualmente a disposição citada às crianças de todo o mundo, sem quaisquer discriminações.

86. Parece-me significativo o reconhecimento destes direitos a todas as crianças. Significativa ainda a sua inclusão, quer em textos internacionais que às crianças se referem (a citada Convenção sobre os Direitos da Criança), quer em textos da mesma natureza dirigidos a todas as pessoas (o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).

87. No que tange, em especial, o direito a adquirir uma nacionalidade, sempre se poderá realçar que “mais do que mero elemento do estatuto pessoal, a nacionalidade é agora configurada como um verdadeiro direito fundamental. A ideia não é nova. Vêmo-la claramente enunciada logo na Declaração Universal dos Direitos do Homem em cujo art. 15º se afirma de forma nítida que todo o indivíduo tem direito a uma nacionalidade” (cfr. MOURA RAMOS, Do Direito Português da Nacionalidade, ob. cit., p. 120).

88. E, a propósito, considera este Autor que a dificuldade de concretização deste princípio explica o facto de ele não aparecer “retomado nos instrumentos internacionais posteriores de protecção e garantia dos direitos humanos, com excepção do Pacto Internacional relativo aos direitos civis e políticos, (…) em cujo artigo 24,3 se afirma que toda a criança tem direito a adquirir uma nacionalidade” (cfr. ob. cit., p. 120, nota 105).

89. Permito-me retirar uma conclusão diversa do facto acima enunciado. Não me parece que o facto de o direito à nacionalidade ter sido consagrado como um direito de todas as crianças no Direito Internacional Convencional posterior à Declaração Universal dos Direitos do Homem corresponda a uma postura timorata do Direito Internacional face a um direito que os Estados não podem assegurar. Parece-me, antes, que se procurou assegurar esse direito fundamental relativamente àqueles que o não podem obter por sua iniciativa e vontade.

90. Não será despiciendo notar que ao E…, como a qualquer outra criança, está vedado o direito de obter a cidadania portuguesa por naturalização, uma vez que não se encontra atingida a sua maioridade.

91. No entanto, todas as crianças têm direito, desde o nascimento, a um nome e a uma nacionalidade (cfr. Princípio 3º da Declaração dos Direitos da Criança, de 20 de Novembro de 1959, texto em português publicado in B.M.J., n.º 249., Outubro de 1975, pp. 338 e ss.).

92. E o fundamental direito à cidadania, que, entre nós, merece referência constitucional (art. 26º, n.º 1, CRP), não pode deixar de ser concretizado através dos meios de combate à apatridia. Assim, acompanha-se, de novo, MOURA RAMOS, quando escreve que “o legislador português, por sua parte, procurou dar a concretização possível a este direito. Entendeu assim que o possuir uma nacionalidade, o facto de ser cidadão de um país, de poder chamar sua a uma Pátria e de estar habilitado por consequência a exercer os direitos que são apanágio da cidadania constitui um bem jurídico de primeira grandeza, um corolário necessário da dignidade humana que, por isso, não poderá ser denegado a qualquer indivíduo. Impossibilitado de realizar à escala universal esta ideia, o nosso legislador não deixa porém de dentro das suas limitações a concretizar na medida do possível. É assim que deve ser considerada a sua posição face à questão da apatridia” (cfr., ob. cit., pp. 120-121).

Das Normas e Princípios de Direito Internacional Geral ou Comum em Matéria de Nacionalidade das Crianças

93. A esta luz deve especialmente ser considerado o que se dispõe no art. 7º, n.º 2, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, o qual, referindo-se aos direitos ao nome, ao registo e à nacionalidade, dita que “os Estados Partes garantem a realização destes direitos de harmonia com a legislação nacional e as obrigações decorrentes dos instrumentos jurídicos internacionais relevantes neste domínio, nomeadamente nos casos em que, de outro modo, a criança ficasse apátrida”.

94. E que não restem dúvidas que, por força do que se dispõe no art. 8º, n.º 2, da Constituição, estas normas vigoram na ordem jurídica interna. De resto, nos termos do art. 4º da Lei Fundamental são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional.

95. A cidadania, pese embora a incindível ligação ao ordenamento jurídico de cada Estado, não pode deixar de ser equacionada à luz do Direito Internacional, em especial no que se refere aos seus princípios gerais (cfr. neste sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo III, ob. cit., pp. 95-96). Poderá dizer-se então que “a matéria depende outrossim (e, antes de mais) do Direito internacional, porque nenhum Estado poderia gozar de uma liberdade ilimitada no estabelecimento daqueles critérios (de cidadania); bem ao invés, cada Estado tem de os definir reconhecendo a existência dos restantes Estados e, por conseguinte, está adstrito a certas balizas” (cfr. ob. cit., loc. cit.), daí que “o Direito das Gentes devolve para o Direito Interno de cada Estado a definição das regras de aquisição e perda da cidadania respectiva. (…) Mas, ao mesmo tempo, prescreve limites e grandes directrizes a que ficam sujeitos os diversos ordenamentos e que traduzem aquisições comuns” (idem, p. 97).

96. Deverá, assim, atentar-se em especial nas regras contidas na Convenção da Haia sobre Certas Questões relativas aos Conflitos de Leis de Nacionalidade, de 12 de Abril de 1930.

97. Nos termos do art. 14º da citada Convenção da Haia de 1930, “a criança filha de pais desconhecidos tem a nacionalidade do país onde nasceu. Se a filiação da criança vier a ser estabelecida, a sua nacionalidade será determinada de acordo com as regras aplicáveis aos casos em que a filiação é conhecida. A criança encontrada presume-se , até prova em contrário, nascida no território do Estado onde foi encontrada” (trad. do francês e do inglês, cfr. Nouveau Recueil Général de Traités et Autres Actes Relatifs aux Rapports de Droit International, Publication de L´Institut de Droit Public Comparé et de Droit des Gens, Leipzig, 1938, pp. 399 e ss.).

98. A aplicabilidade destas regras ao caso vertente merece-me a seguinte análise:

99. Sempre se dirá que o Estado Português não está vinculado ao seu cumprimento, na medida em que assinou, mas não ratificou a Convenção em causa.

100. Não se trata, no entanto, e a meu ver, de verificar a aplicabilidade das normas invocadas na ordem jurídica interna à luz do disposto no art. 8º, n.º 2, da Constituição. A tanto obstam as regras gerais sobre a aplicação das leis no tempo (durante o período da Ditadura, de 1926 a 1933, vigorou ainda a Constituição de 1911). Acrescem os efeitos da assinatura das convenções internacionais (cfr. art. 18º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969), não sendo despicienda a intervenção de Portugal nos trabalhos preparatórios da Conferência Internacional e na adopção do texto definitivo.

101. Não tendo Portugal manifestado intenção de não deixar de vir a ratificar esta convenção, encontra-se obrigado à abstenção de praticar actos contrários ao seu fim e objecto. Nem se diga que o tempo decorrido desde a assinatura criou a convicção generalizada na Comunidade internacional de os signatários que ainda não ratificaram esta convenção terem perdido interesse no assunto, pois, observe-se que muito recentemente o Canadá, também signatário, veio ratificá-la (em 15 de Maio de 1996) e já depositou junto do Secretário Geral das Nações Unidas o instrumento de ratificação.

102. A aplicação de normas convencionais relativas à cidadania das crianças abandonadas resulta de costume internacional, pelo que, mais uma vez se insiste no ponto de a falta de ratificação não obstar esse efeito.

103. Três ordens de razões militam nesse sentido.

104. Em primeiro lugar, e seguindo de perto IAN BROWNLIE, sempre seria de atentar no facto de a legislação de vários Estados incluir a seguinte solução: uma criança filha de pais desconhecidos presume-se, até prova em contrário, nacional do Estado em cujo território foi encontrada. Esta regra tem sido igualmente adoptada por vários países quanto a crianças filhas de pais de nacionalidade desconhecida ou apátridas. A principal regra relativa a crianças abandonadas (ou, melhor, encontradas) está contida no já citado art. 14º da Convenção da Haia de 1930 (cfr. Principles of Public International Law, ob. cit. pp. 392?393).

105. A regra incluída no art. 1º, n.º 2 da Lei da Nacionalidade Portuguesa, mais não é que um afloramento desta ordem de ideias, sem que, como se viu, fique vedada a integração por analogia da lacuna (aparente) das crianças encontradas sem sinais de ligação efectiva a qualquer outro Estado.

106. Não se pense que desta forma se aceita, sem mais, que o costume internacional seja criado através da concordância das legislações nacionais ou, por outras palavras, que as regras de Direito Internacional sejam estabelecidas por métodos próprios do direito comparado ou, ainda, que as regras de Direito Interno de diferentes Estados que mostrem um certo grau de uniformidade são regras de Direito Internacional. Prevenindo estas objecções, esclarece IAN BROWNLIE “que não se deve subestimar o significado das legislações nacionais enquanto evidenciam a opinião dos Estados. A prática dos Estados deve ser considerada na formação das regras internacionais”. E acrescenta o Autor: “pode ser dito, particularmente no campo da cidadania, que falta a necessária opinio “iuris et necessitatis”, mas insistir nesta clara evidência pode bem levar a resultados caprichosos. (…). A falta de uniformidade como acontece com as leis de nacionalidade é explicável não pela falta de “opinio iuris”, mas por referência ao facto de inevitavelmente o Direito Interno fazer a atribuição em primeiro lugar, bem como à ocorrência de (…) pontos de conflito nas legislações sobre matérias tão móveis e complexas. Não é evidente que aí falta a “opinio iuris”, pelo contrário, nas esferas onde o conflito no plano internacional é facilmente previsível, as regras estão lá para encontrar o caso” (cfr. do Autor, ob. cit., pp. 393-394).

107. Em segundo lugar, parece-me que a natureza costumeira das regras invocadas decorre também do facto de a Convenção da Haia de 1930 representar, não tanto a criação de regras internacionais, mas antes a sua codificação. Veja-se, desde logo, o seu preâmbulo onde se pode ler que “sendo desejável começar esta grande conquista por um primeiro passo na codificação progressiva, fixando regras naquelas questões relativas aos conflitos de leis sobre nacionalidade em que o entendimento internacional é actualmente possível” decidiram os Estados devidamente representados concluir uma convenção.

108. Recorde-se que as normas consuetudinárias codificadas valem pela sua natureza: “a passagem das normas a escrito não afecta o seu carácter consuetudinário (…) por um lado, os novos Estados ficam vinculados às normas já em vigor; e, por outro lado, Estados que não sejam partes em convenções de codificação continuam vinculados às normas preexistentes doravante nelas inscritas” (JORGE MIRANDA, Direito Internacional Público, Lisboa, 1991, p. 102).

109. Em terceiro lugar, e acompanhando de perto este sentido, observe-se como de modo que não chega a ser subtil, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990, no citado art. 7º, n.º 2, se refere, não às obrigações assumidas em convenções internacionais outorgadas pelos Estados, mas emprega a expressão “obrigações decorrentes dos instrumentos jurídicos internacionais relevantes neste domínio, nomeadamente, nos casos em que, de outro modo, a criança ficasse apátrida”.

110. Estas considerações vêm sustentar a posição de se tratar, afinal, de direito costumeiro internacional, cujas regras vigoram na ordem jurídica portuguesa, completando e desenvolvendo o disposto nos arts. 26º, n.º 1 e 69º da Constituição.

111. E não se deve recear que, desta forma, e por arrastamento, o Estado português acabasse por ter de conferir a nacionalidade portuguesa a todos os apátridas ou estrangeiros que entrem no seu território, desrespeitando os outros Estados. Com efeito, e como se pode ler no célebre Acórdão do Tribunal Internacional de Justiça de 1955, conhecido por CASO NOTTEBOHM (Liechtenstein v. Guatemala), “o Estado não pode exigir que as regras que adoptou sejam aceites por outro Estado, salvo se actuou de acordo com este fim geral de fazer com que o laço jurídico da nacionalidade dependa da ligação genuína do indivíduo com o Estado que assume a defesa dos seus cidadãos através da protecção face a outros Estados” (cfr. PAULA ESCARAMEIA, Colectânea de Jurisprudência de Direito Internacional, Coimbra, 1992, p. 151).

112. A ligação efectiva aparece como o primeiro grande princípio de Direito Internacional que se constitui como limite e como directriz da atribuição da cidadania (portuguesa), devendo considerar-se, não uma regra costumeira, mas um verdadeiro princípio de Direito Internacional (cfr. neste sentido, IAN BROWNLIE, ob. cit., p. 411).

113. Daí que o mesmo princípio não pode ser ignorado quando se procura combater a apatridia. Não é assim por acaso que, nos trabalhos preliminares do texto da Convenção para a Eliminação e Redução dos Casos de Apatridia, veio considerar-se poderem as legislações nacionais fazer depender a aquisição ou preservação da cidadania conferida pelo Estado em cujo território o indivíduo nasceu de condições como a da residência (até à idade dos dezoito anos) ou outras igualmente relevantes. Trata-se, em suma, de reconhecer a importância da ligação genuína ou efectiva ao Estado.

114. É importante reter ainda que, não obstante o princípio da ligação efectiva ser geralmente invocado nos casos de dupla nacionalidade, “o contexto particular da sua origem não obscurece o seu papel como princípio geral com variadas aplicações possíveis” (cfr. IAN BROWNLIE, ob. cit., p. 407).

115. Deste modo, o princípio geral invocado deve ajudar-nos a resolver, não apenas os conflitos positivos de nacionalidade (dupla nacionalidade), mas também os conflitos negativos (apatridia).

116. Melhor se compreende a extensão e alcance deste princípio na seguinte passagem do Acórdão citado: “De acordo com a prática dos Estados, com decisões arbitrais e com opiniões de autores, a nacionalidade é um laço jurídico que tem como fundamento um facto social de ligação, uma conexão de existência genuína, interesses e sentimentos, bem como a existência de direitos e deveres recíprocos. Pode dizer-se que constitui a expressão jurídica do facto de que o indivíduo a quem é conferida, directamente pelo Direito ou como resultado de acto das autoridades, está de facto mais ligado à população do Estado que confere a nacionalidade do que a qualquer outra” (cfr. PAULA ESCARAMEIA, ob. cit., p. 151).

117. Pense-se no caso do menor E… Ter nascido ou ter sido encontrado em território português não pode ser visto como facto fortuito, insuficiente para a atribuição da nacionalidade portuguesa. Não se trata de acolher o critério do “ius soli” sem mais. Trata-se, da atribuição da nacionalidade do único Estado com o qual a criança evidencia efectiva ligação.

118. O E… tem apenas por referência o território português, foi acolhido e educado em Portugal e por portugueses, é essa a nacionalidade dos seus amigos, fala a nossa língua: vive e estuda em Portugal, está de facto mais ligado à população do Estado português do que a qualquer outra.

119. Não se deve perder de vista que de uma criança se trata. Deverá invocar-se, reconhecer-se e promover-se o exercício dos direitos que lhe assistem, seja o direito a um nome, seja a uma nacionalidade, direitos contidos na Convenção dos Direitos da Criança. É de notar, por fim, que “a infância não é um fim em si mesmo, mas parte do processo de formação dos adultos da próxima geração. A Convenção é para todas as pessoas” (cfr. JOHN EEKELAAR, “The Importance of Thinking that Children Have Rights”, in PHILIP ALSTON et al., Children, Rights and the Law, Oxford, 1992, p. 234).

120. Nesta linha, e concluindo, permito-me invocar o fundamental princípio da dignidade das pessoas (art. 1º da Constituição da República Portuguesa), valor autónomo de todos os homens e, por isso, o primeiro e o principal.

II-Conclusões

Por motivo de a criança se encontrar em condições de ver registado o seu nascimento, tomando-se como suporte, nos termos da lei, a data e local em que foi encontrado. Por não demonstrar indícios credíveis de qualquer ligação efectiva com outro país ou território autónomo. Parecendo irrazoável exigir a uma criança sem aparente ligação efectiva com outro Estado que prove esse mesmo facto negativo, o que, em rigor só seria possível no limite da exaustão de todos os países que integram a comunidade internacional. Considerando que se encontra privado de um nome, de assento de nascimento, de identificação civil, e que se encontra à margem de qualquer medida tutelar de menores, apesar do esforço notável e meritório da Casa do Gaiato de Lisboa. Reconhecendo os evidentes prejuízos para o desenvolvimento da sua personalidade. Observando a protecção constitucional que às crianças, em especial às órfãs e abandonadas, é devida pelo Estado. Tendo presentes as normas e princípios de Direito Internacional Geral em matéria de cidadania das crianças e do combate à sua apatridia. Tomando em linha de conta o inexorável valor do costume internacional como fonte de direito e a sua plena recepção na ordem jurídica nacional, quando, como neste caso, constitua Direito Internacional Geral ou Comum. Recordando as obrigações assumidas por Portugal ao ratificar o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990. Conclui-se dever à criança, conhecida por E…, ser garantido o direito a um nome português, o direito ao registo civil do seu nascimento pelas autoridades portuguesas e o direito à cidadania portuguesa.

Em nome da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças,RECOMENDO:

1 – Que se proceda, desde já, ao registo de nascimento do menor, nos termos do disposto no art. 107º do Código do Registo Civil, lavrando-se o assento de nascimento na Conservatória do Registo Civil da Amadora, com base nos elementos extraídos dos autos de ocorrência elaborados na 64ª Esquadra da Polícia de Segurança Pública, em 26-12-1991;
2 -Que lhe seja atribuído um nome completo, de acordo com as regras estabelecidas no art. 108º do Código do Registo Civil;
3 -Que do assento de nascimento conste a menção especial de a criança não possuir outra nacionalidade, para os efeitos do disposto no art. 1º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 322/82, de 12 de Agosto; e,
4 -Que lhe seja reconhecida a nacionalidade portuguesa originária, nos termos do art. 1º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade Portuguesa) e nos termos do Direito Internacional vigente, em especial da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990, e da Convenção da Haia sobre Algumas Questões Relativas ao Conflito de Leis de Nacionalidade, de 1930.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel