Secretário Regional da Habitação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações (Açores)
Número: 20/A/97
Processo: 1640/94
Data: 25.03.1997
Área: A1

Assunto: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL – OBRAS PÚBLICAS – FALTA DE SINALIZAÇÃO – DEVER DE CUIDADO

Sequência: Sem resposta

I – Exposição de Motivos

Na sequência da resposta à Recomendação (54/A/96) que dirigi ao antecessor de Vossa Excelência, em 30 de Maio, e após reapreciação de todo o processo à luz dos argumentos aduzidos no parecer enviado a coberto do ofício n.º … , de … p.p., entendo não se encontrarem esgotadas as vias de solução do assunto em apreço, o qual julgo ser merecedor de um tratamento mais consentâneo com os direitos e as legítimas expectativas do impetrante. Por este motivo, não posso deixar de tecer algumas observações sobre o assunto, o que farei acompanhando de perto o teor do supra citado ofício.

II

Respondeu-se que, não obstante a abertura do buraco no pavimento ter sido realizada “à revelia de todos os procedimentos cautelares e protocolares, designadamente sem a colocação prévia de sinalização adequada no local”, inexiste acto culposo do empreiteiro.

Tal, justificar-se-ia porque “à data do acidente, ocorrido a 92. … ,já não constituía obrigação do empreiteiro a execução dos trabalhos necessários a garantir a segurança do público em geral, e para satisfazer os regulamentos de segurança e de polícia das vias públicas” dado que nessa data a obra em causa já tinha sido inaugurada (o que aconteceu em … de 1992), “pelo que já havia cessado o vínculo contratual existente entre adjudicante (…) e adjudicatário”.

A análise das disposições contidas nos arts. 194º a 205º do Decreto-Lei n.º 235/86, 18 de Agosto, que aprovou o regime de empreitadas de obras públicas, leva-me a concluir que o acto de inauguração da obra não é causa de cessação da relação obrigacional constituída por força do contrato de empreitada celebrado.

Efectivamente, verifica-se que a obrigação do empreiteiro face ao dono da obra, e a responsabilidade daquele pela existência de vícios ou defeitos na obra realizada, mantém-se até à sua recepção definitiva.

III

Concluiu-se, ainda, pela inaplicabilidade ao caso em apreço da norma contida no art. 500º do Código Civil, porque, sendo o contrato de empreitada de obras públicas um “contrato de gestão pública”, tal aplicação “consubstanciaria em aplicação analógica”, o que “atentaria gravemente contra a autonomia do Direito Administrativo”. Discordo deste entendimento.

No art. 232º do Decreto-Lei n.º 235/86, de 18 de Agosto, prevê-se, que em tudo o que não se encontre especialmente previsto no diploma, se recorra às leis e regulamentos administrativos que prevejam casos análogos, aos princípios gerais de direito administrativo e, na sua falta ou insuficiência, às disposições da lei civil.

Ou seja, não está liminar e absolutamente excluída a possibilidade de recurso à lei civil como forma de integração de lacunas em direito administrativo.

Defende AFONSO R. QUEIRÓ que “se houver casos análogos regulados em leis administrativas, é a esta regulamentação que haverá naturalmente que recorrer (…). Se, porém, esta analogia faltar, nada se opõe que se recorra à analogia eventualmente encontrada no próprio campo das hipóteses reguladas por preceitos do direito privado” e isto porque, acrescenta o autor, “é tão legítimo dizer-se que o direito administrativo é direito especial em relação ao direito privado como, vice-versa, que o direito privado é direito especial em relação ao direito administrativo” (Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976, edição do autor, pags. 187 e 188).

Não obstante, não poderei deixar de concordar com MÁRIO ESTEVES de OLIVEIRA, quando alerta para o facto de a aplicação analógica não poder efectuar-se de forma indiscriminada ou automática, devendo ter por presente o facto de o princípio subjacente ao direito administrativo ser o da satisfação do interesse público, ao passo que aquele que enforma o direito privado é o da satisfação dos interesses próprios de cada um (Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, 1979, FDL, pags. 102 e seg.).

Concluo, assim, que o recurso à analogia com normas do direito privado para a disciplina das relações de direito administrativo será possível, sempre que tal acto não comprometa os princípios gerais enformadores da actuação da Administração, com especial destaque para o da prossecução do interesse público.

E tal risco não se verificou, já que a aplicação da disciplina contida no art. 500º do Código Civil não redundou num desequilíbrio das partes, do mérito relativo dos interesses em jogo ou da harmonia do contrato, nem frustrou qualquer outro princípio subjacente ao regime jurídico das empreitadas de obras públicas.

Atente-se, ainda, que J.J. GOMES CANOTILHO reconduz a responsabilidade pelos danos resultantes de trabalhos públicos à responsabilidade da Administração por actos lícitos (O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, pags. 242 e segs.) e defende que “a reparação dos prejuízos derivados de obras públicas, sejam eles danos permanentes, sejam danos acidentais, incidentes sobre pessoas ou coisas, vem a evoluir para uma compensação de sacrifícios (…) de modo a abranger os danos provocados por concessionários” (ob. cit., pag. 245).

Nesta esteira, é aplicável ao caso também a norma contida no art. 9º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro, que define o regime da responsabilidade extra-contratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública.

Não se poderá esquecer, outrossim, que a norma do n.º 2 do art. 266º da Lei Fundamental manda aos órgãos e agentes administrativos que actuem, no exercício das suas funções, com respeito pelo princípio da justiça, cabendo-lhes envidar todos os esforços no sentido da “obtenção de uma solução justa” relativamente aos problemas concretos que lhe cabe decidir” (J.J. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra editora, 1993, pag. 925).

E parece da mais elementar justiça que seja a Administração responsabilizada, nos termos previstos no art. 500º do Código Civil, pelos danos causados culposamente pelo comissário no exercício da função que lhe foi confiada, pois entendo que quem frui as vantagens de uma actividade, se bem que exercida em benefício da colectividade, deve correr os riscos que ela acarreta.

E não se vislumbra princípio ou norma de direito administrativo que impeça a aplicação deste preceito.

Por último, entendo dever esclarecer que se a responsabilidade entre comitente e comissário é contratual, a que confronta comitente com terceiro lesado é extra-contratual, pelo que a natureza desta última não obsta à aplicação da disciplina contida no invocado art. 500º do Código Civil.

Pelo exposto,

Reitero o teor da minha Recomendação n.º 54/A/96, de 30 de Maio de 1996, por considerar que a motivação exposta por Vossa Excelência na sequência da formulação da mesma, não veio alterar o fundo da questão ou justificar uma situação que continuo a entender merecedora de reparo.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL