A Sua Excelência
A Ministra da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território
Praça do Comércio
149-010 LISBOA


 


Vª Ref.ª
Of.º Vª Comunicação


Nossa Ref.ª
Proc. R-3476/09 (A1)


  
Assunto: regime florestal total e parcial – Matas Nacionais e Parque Florestal de Monsanto


 


RECOMENDAÇÃO N.º 1/B/2011


(artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)



I


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES



1. Tenho a subida honra de me dirigir a Vossa Excelência, no cumprimento da missão constitucional que a Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, regula e desenvolve, ao prever a formulação de recomendações orientadas para suprir deficiências legislativas encontradas (artigo 20.º, n.º 1, alínea b)) e contribuir para o aperfeiçoamento da actividade administrativa (artigo 21.º, n.º 1, alínea c)).


2. Trata-se da floresta, na presente Recomendação, quer enquanto recurso para a economia quer enquanto inestimável bem ambiental, muito em particular, a floresta administrada pelo Estado que, como se demonstrará, não apenas se encontra sob uma protecção jurídica insuficiente, como também é objecto de práticas administrativas irregulares que vêm favorecendo a sua delapidação, já por demais concorrida pelos extensos e numerosos incêndios florestais e por enfermidades que atacam sobretudo o pinhal.


3. Enquanto Provedor de Justiça encontro-me numa posição de observador privilegiado da Administração Pública, em geral, mas também da administração florestal, em especial. Este órgão do Estado, porém, não deve limitar-se a observar. Investiga, analisa e recomenda aos poderes públicos alterações que, sem desvirtuar as orientações políticas sobre as quais é neutro, permitam melhorar a sua aplicação e melhor servir às tarefas fundamentais do Estado.


4. Apesar de o volume anual de queixas sobre questões florestais não ser muito expressivo e de, na sua maior parte, essas queixas respeitarem a questões patrimoniais ou de segurança contra incêndios, o certo é que as averiguações que justificam e a iniciativa oficiosa que incumbe ao Provedor de Justiça em ordem à defesa dos chamados interesses difusos ambientais (artigo 20.º, n.º 1, alínea e)) permitem-me identificar vulnerabilidades, deficiências e outros factores de constrangimento ao nível legislativo e administrativo.


5. Foi justamente a partir de um caso concreto, de uma queixa relativa à desafectação de uma parcela do Parque Florestal de Monsanto, que me obrigou a profunda investigação do direito aplicável e dos procedimentos administrativos usados que me dei conta das observações que passarei a expor a Vossa Excelência em ordem à necessária e urgente adopção de providências legislativas que passem pelo reforço das garantias do regime florestal disciplinadas pelos decretos de 24 de Dezembro de 1901 (Diário do Governo, n.º 296, de 31 de Dezembro de 1901) e de 24 de Dezembro de 1903 (Diário do Governo, n.º 294, de 30 de Dezembro de 1903), concretizadas em instruções aprovadas pelo decreto de 11 de Julho de 1905 (Diário do Governo, n.º 161, de 21 de Julho de 1905).


6. Embora recentemente aprovado o Código Florestal pelo Decreto-lei n.º 254/2009, de 24 de Setembro, não chegaria a entrar em vigor por acção da Lei n.º 116/2009, de 23 de Dezembro, que prorrogou por 360 dias a vacatio legis.


7. Seguir-se-ia uma suspensão por 365 dias através da Lei n.º 1/2011, de 14 de Janeiro.


8. Veremos adiante como se mostrou fatídica esta sucessão de vicissitudes.


 


II
DO REGIME FLORESTAL TOTAL


9. Os citados diplomas legislativos que remontam aos primeiros anos do século XX foram, no seu tempo, uma inovação de extremo alcance, não apenas com efeitos económicos, mas também – acabariam por sê-lo – com grandes valias ambientais e para o ordenamento do território.


10. Curiosamente, a rara longevidade de ambos contrasta com o escasso interesse que a doutrina jurídica nacional lhes reconheceu, ao longo de mais de um século. Na verdade, não nos foi possível encontrar registo de nenhuma obra científica que reflicta um estudo aturado do designado regime florestal.


11. Pretendeu o Governo de então aumentar significativamente a extensão das florestas nacionais, reconhecendo a sua importância estratégica para a economia e antecipando a salvaguarda das gerações vindouras:


– «O regime florestal compreende o conjunto de disposições destinadas a assegurar não só a criação, exploração e conservação da riqueza silvícola (…)» (artigo 25.º do Decreto de 24 de Dezembro de 1901);


– «O Ministério (…) procurará, dentro dos seus recursos orçamentais, alargar o domínio florestal do Estado» (artigo 42.º).


12. Nos primórdios do século passado, as florestas do Estado estimavam-se em 33 303 hectares, ou seja, perto de metade dos 66 000 hectares considerados na Estratégia Nacional para Florestas (Diário da República, 1ª Série, n.º 179, de 15 de Setembro de 2006).


13. E o incremento e conservação da floresta pública já se anteviam tão essenciais quanto se já criticava a procura desenfreada do benefício imediato pelos particulares, levando à destruição dos bosques, principalmente para obter madeira e lugares de pastagem. A função protectora da floresta sobre o litoral e as suas dunas não convergia com o apetite do lucro (JOSÉ GOROSTIZA/ESTRELLA AZNAR – Ideas económicas y géstion florestal en el âmbito iberico: 1848-1936, II).


14. Apesar de, ao tempo, serem quase despiciendas as pressões urbanísticas que hoje sofrem as manchas florestais, a verdade é que o legislador usou de grande firmeza na protecção dos solos afectos ao regime florestal – afectos através de decreto (artigo 32.º do Decreto de 24 de Dezembro de 1901), o acto mais solene do poder executivo, à luz dos actos normativos previstos na Carta Constitucional. Recorde-se que o decreto lei só viria a surgir com a Constituição do Estado Novo, em 1933.


15. O regime florestal conhece duas espécies, total e parcial:


a. Total nos terrenos do Estado administrados directamente e por sua conta. Nos termos do artigo 3.º do Decreto de 24 de Dezembro de 1901, «o regime florestal total tende a subordinar o modo de ser da floresta ao interesse geral, isto é, aos fins de utilidade nacional que constituem a causa primária da sua existência ou criação».


b. Parcial nos terrenos municipais, de associações ou de particulares (artigo 26.º) em que «são atendidos os interesses imediatos do seu possuidor» sem prejuízo da subordinação a determinados fins de utilidade pública (artigo 3.º).


16. Por sua vez, o regime parcial reparte-se entre o regime obrigatório e o regime de simples polícia, este último, facultativo, a requerimento dos proprietários particulares.


17. Há traços comuns. Por exemplo, só o competente membro do Governo pode autorizar alterações à demarcação, a qual incumbe a funcionário florestal designado para o efeito que lavra o pertinente auto e procede ao registo (artigo 42.º do decreto de 24 de Dezembro de 1903).


18. Contudo, o regime total apresenta-se, em consonância com os fins de interesse público a satisfazer directamente, mais reforçado. Assim:


a) Proíbe-se expressamente nos seus terrenos consentir ou autorizar novos usos ou servidões e determina-se restringir e, se possível, resgatar, mediante indemnização, os usos e servidões constituídos no passado (artigo 212.º do decreto de 24 de Dezembro de 1903);
b) Condiciona-se a uma autorização especial, a conceder por lei, a venda de matas ou outros terrenos florestais do Estado, não obstante permanecerem, em todo o caso, sob regime florestal (artigo 257.º);
c) E mais. O produto da alienação é cativado para a aquisição e/ou arborização de novos terrenos florestais (idem);
d) Por outro lado, a desafectação do regime total não se encontra prevista, sequer.


19.  Com efeito, a desafectação só é permitida no regime parcial facultativo. Ainda assim, a pedido de uma determinada quota de proprietários, mediante escritura pública, e aprovada por decreto.


20. No regime obrigatório, o mais que os proprietários podem requerer é a expropriação por utilidade pública dos seus terrenos que, assim, ingressam na posse do Estado sob o regime florestal total (artigo 250.º, §§ 2.º e 3.º do Decreto de 24 de Dezembro de 1903). O objectivo é, bem se vê, o de aumentar a área florestal sob domínio do Estado.


21. Se a desafectação não se encontra prevista para o regime florestal total nem para o regime parcial obrigatório, seria contrário às mais elementares regras hermenêuticas (artigo 11.º do Código Civil) aplicar analogicamente uma regra excepcional.


22. Por outras palavras, não teria sentido admitir que o regime de simples polícia (facultativo) pudesse aplicar-se a solos florestais que o legislador pretendeu inequivocamente sujeitar a um regime qualificado.


23. Apenas por acto legislativo se pode derrogar o regime florestal que resulta, ele próprio, de acto legislativo.


24. Foi o que sucedeu, designadamente, no caso do Decreto-lei n.º 210/82, de 29 de Maio (desafectação na Mata Nacional das Dunas de Leirosa), bem como no caso do Decreto-lei n.º 17/89, de 11 de Janeiro (Mata Nacional da Charneca de Alcácer do Sal).


25. O acto legislativo observa um procedimento que obriga a ponderar os diversos interesses públicos relevantes, quanto mais não seja por reclamar a competência do Conselho de Ministros para a sua aprovação (artigo 200.º, n.º 1, alínea d), da Constituição).


26. Há cerca de 20 anos, o Governo sentiu necessidade de dissipar dúvidas, ao disciplinar esse procedimento. Por despacho conjunto, de 15/2/91 (Diário da República, 2ª Série, 6 de Março de 1991), foi determinado que nos procedimentos de desafectação de terrenos sob o regime florestal total fosse obtido o parecer da comissão de coordenação e desenvolvimento regional territorialmente competente e do hoje designado INSTITUTO DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DA BIODIVERSIDADE, IP, antes de o Governo deliberar.


27. Mesmo no caso de desafectação operada pelo Decreto n.º 25/2001, de 19 de Julho (Mata Nacional das Dunas da Gafanha), apesar de não observada a forma legislativa, esta formalidade essencial foi cumprida.


28. E, por sua vez, o SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, numa das raras oportunidades que teve de se pronunciar sobre esta questão (acórdão da 2ª Subsecção, de 18/11/2009, proc.º 639/99) não hesitou em considerar absolutamente necessária a forma legislativa para desafectar terrenos do regime total:
«…tendo sido produzida a classificação e afectação por diploma legal, a desafectação haveria de ser, pelo princípio da igualdade das formas, produzida por acto do mesmo valor»


29. Neste aresto, concluiu-se, avisadamente, pela nulidade de uma deliberação municipal que cedera a terceiros o direito de superfície sobre uma parcela do Parque Florestal de Monsanto com vista à instalação de um parque aquático de diversões sem ter havido prévia desafectação por acto legislativo.


30. No entanto, a prática seguida reflecte um outro entendimento.



III
DO PRIMADO DA LEI SOBRE PRECEDENTES ACTOS ADMINISTRATIVOS INVÁLIDOS


31. Na queixa que conduziu à investigação relatada, estava em causa uma subestação de energia eléctrica instalada dentro do perímetro do Parque Florestal de Monsanto, em Lisboa, a explorar pela REN – REDES ELÉCTRICAS NACIONAIS, SGPS, S.A.


32. O Parque Florestal de Monsanto encontra-se sob regime florestal total desde a publicação do Decreto-lei n.º 24 625, de 1 de Novembro de 1934, e do Decreto-lei n.º 29 135, de 16 de Novembro de 1938, o que significa dever ser tratado «como se de propriedade do Estado se tratasse», para efeito do regime dos decretos de 1901 e de 1903, subordinando-se os seus terrenos «aos fins de utilidade nacional que constituem a causa primária da sua existência ou criação».


33. No termo de copiosas averiguações junto da CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA, da COMISSÃO DE COORDENAÇÃO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL DE LISBOA E VALE DO TEJO e da REN – REDES ELÉCTRICAS NACIONAIS, SGPS, S.A, verifico não ter sido desafectada do regime florestal a área de, aproximadamente, 5 305 m², usada para o equipamento.


34. O Governo, através do Ministro da Economia e Inovação, limitou-se a aprovar com o despacho n.º 18 433/2009, de 29 de Junho, a mutação dominial:


Ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto, e, por força deste, nos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 15.º, todos do Código das Expropriações, declaro a utilidade pública da transferência do domínio municipal para o Estado e consequente afectação à finalidade de utilidade pública da construção e exploração da subestação do Zambujal e acessos, atribuo carácter de urgência e autorizo a posse administrativa da referida parcela dominial (…) Os encargos decorrentes da transferência de domínio e da afectação da referida parcela dominial, incluindo as compensações devidas, são suportadas pela REN – Redes Eléctricas Nacionais, S.A, concessionária do serviço público de transporte de electricidade.


35. Este acto apenas subtraiu a parcela ao domínio público municipal de Lisboa e mudou-a para o domínio público do Estado (artigo 6.º do Código das Expropriações), mas nada dispôs sobre a subtracção ao regime florestal.


36. A qualidade dominial pública de um bem, afasta-o do comércio jurídico (artigo 202.º, n.º 2, do Código Civil), mas nada tem a ver com o regime florestal. Os solos sob regime florestal podem encontrar-se no domínio público ou no domínio privado.


37. Além do mais, o Parque Florestal de Monsanto obteve do legislador uma protecção adicional contra utilizações incompatíveis com a sua condição, por força do Decreto-lei n.º 380/74, de 22 de Agosto, diploma a que regressaremos para uma análise específica.


38. Quando da instalação da Universidade Técnica de Lisboa em 39 hectares do Parque Florestal de Monsanto, ocorrera a desafectação justamente por acto legislativo: o Decreto-lei n.º 379/88, de 24 de Outubro.


39. Um despacho do Ministro da Economia e da Inovação fica muito aquém, desde logo, do ponto de vista formal.


40. Por outro lado, organicamente. Mesmo os simples decretos são necessariamente assinados pelo Primeiro-Ministro (artigo 201.º, n.º 3, da Constituição) e pelo Presidente da República (artigo 134.º, alínea b)) sob pena de inexistirem juridicamente (artigo 137.º).


41. Se o ingresso do Parque de Monsanto no regime florestal teve lugar por decreto-lei, e se por decreto-lei foi reforçada a salvaguarda da sua utilização, só por acto formal e organicamente equivalente poderia admitir-se a desafectação.


42. Note-se que também a intervenção da CCDR-LVT foi preterida, o que é tão mais grave quanto este departamento se pronunciara desfavoravelmente numa fase preliminar do projecto, suscitando objecções, sobretudo, contra a abertura de acessos viários – já executados – à subestação eléctrica.


43. Em Conselho de Ministros, haveria a intervenção do Ministro da Agricultura, do desenvolvimento Rural e das Pescas que, nos termos da orgânica do XVIII Governo (Decreto-lei n.º 321/2009, de 11 de Dezembro), detinha as atribuições do Estado em matéria florestal (artigo 18.º).


44. Foi preterida a sua competência e da AUTORIDADE FLORESTAL NACIONAL, a quem cumpre a promoção da aplicação do regime florestal, a actualização perante do inventário florestal, a alteração da demarcação das parcelas integradas no regime florestal, a elaboração das estatísticas e a instrução dos processos de desafectação (Decreto-lei n.º 159/2008, de 8 de Agosto).


45. A AUTORIDADE FLORESTAL NACIONAL, equivocamente, defende o procedimento, considerando que «o acto expropriativo é bastante para, relativamente à parcela a que foi dado outro fim de utilidade pública, operar a exclusão do regime florestal nacional sem necessidade de determinação expressa de exclusão formalizada através da publicação de decreto de exclusão».


46. Ora, recorde-se que nem sequer houve expropriação, pois trata-se de um bem que não permite aquisição. Houve apenas mutação dominial, ou seja, uma vicissitude subjectiva na dominialidade pública.



47. Sem prejuízo da utilidade pública que a subestação eléctrica satisfaz, este uso foi invalidamente permitido.


48. E das duas, ambas: o despacho do Ministro da Economia e Inovação é nulo por ser estranho às suas atribuições (artigo 133.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo) e é nulo por carência absoluta de forma legal, ao facultar uma utilização não florestal sem ter ocorrido desafectação (artigo 133.º, n.º 2, alínea f)).


49. Apesar da insusceptibilidade de sanação, pode o Governo por decreto-lei vir a deliberar a desafectação da parcela ao regime florestal, para o futuro. Trata-se de um investimento avultado que facultou contrapartidas ao município de Lisboa. A declaração de nulidade, sem mais, pode mostrar-se mais gravosa para o interesse público.


50. É certo que uma tal medida não se circunscreveria ao plano da correcção formal. Antes contribuiria para inverter a actual tendência para vulnerabilizar o regime florestal, subordinando-o a necessidades colectivas circunstanciais, como se pode observar no citado despacho do Ministro da Economia e Inovação.


51. A prática de um acto válido de desafectação poderia, com grande proveito, ser acompanhada pela reflorestação, não deste preciso local, mas de outro que, no Parque Florestal de Monsanto, fora ilegalmente também desafectado ao regime florestal: refiro-me aos terrenos do antigo parque aquático de diversões, junto ao Restelo, e cuja desafectação o Supremo Tribunal Administrativo declarou nula, no citado acórdão de 18/11/2009.


52. Esta poderia ser uma compensação adequada a suportar pela concessionária, pelo Estado e pelo município de Lisboa em ordem à preferência pela reintegração natural que o direito ambiental propõe.


53. De todo o modo, parece-me conveniente, a título principal, que as autoridades florestais erradiquem os maus usos, compreendendo que a mutação dominial e a desafectação do regime florestal não se confundem, compreendendo que sem estar demonstrada a impraticabilidade de outras alternativas não se deve sistematicamente esgotar o filão das matas nacionais para construir estradas.


54. A declaração de utilidade pública não é tudo. Ela justifica a apropriação pública contra o pagamento de uma justa indemnização, mas em nada modifica o regime de uso dos solos, seja ele o da Reserva Agrícola Nacional, o da Reserva Ecológica Nacional, o da Rede Natura ou o regime florestal, como bem assinalou o TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO DO NORTE, em acórdão de 13/1/2010 (proc. 16/09.1BEBRG) ao concluir pela necessidade de a alteração do uso preceder a declaração de utilidade pública.


55. O mesmo vale, mutatis mutandis, para outros usos do solo definidos em instrumentos de gestão territorial e que vinculam o acto administrativo de declaração de utilidade pública (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18/5/2004, rec. 47 693).


56. De resto, a competência para declarar a utilidade pública e a competência para desafectar solos ao regime florestal pertencem a órgãos diferentes e obedecem a formas diversas, como já vimos.



57. Mas, o que não deixa de me preocupar mais é o facto da AUTORIDADE FLORESTAL NACIONAL invocar precedentes situações para justificar um novo facto consumado: «tem sido, de resto, o entendimento em situações semelhantes à presente, considerando-se bastante para a exclusão do regime florestal total a afectação de terrenos a outros fins de utilidade pública, como sejam a expropriação de parcelas de terrenos submetidos ao regime florestal total necessárias à construção de vias de comunicação».


58. Infelizmente, confirmam-se os precedentes, em nome de um superior interesse público rodoviário, nomeadamente na Portaria n.º 535/99, de 20 de Maio, no já citado Decreto n.º 25/2001, de 19 de Julho (alargamento de uma estrada municipal), e no Despacho n.º 5951/2010, de 5 de Abril.


59. Quando nem está em questão conceder tratamento não discriminatório a cidadãos (artigo 13.º da Constituição), parece-me totalmente descabido atender a uma pretensa igualdade de tratamento e considerar sequer as situações patológicas precedentes como possuindo um valor constitutivo ou mesmo modificativo da lei.


60. O princípio da legalidade, enquanto expressão do Estado de direito e da legitimidade democrática da lei, enquanto fundamento da confiança depositada na estabilidade da ordem jurídica e garantia contra o arbítrio, não pode ser deixado à mercê de rotinas administrativas. Sai lesado o interesse público e sai lesada a unidade da ordem jurídica, sempre que a actividade administrativa se arroga a postergar a função legislativa do Estado e o princípio da separação de poderes.


61. Se as considerações precedentes incidem na actividade administrativa, passarei, seguidamente, a dar conta das principais observações colhidas no plano legislativo e que justificam medidas de aperfeiçoamento. Começarei pelo estatuto específico do Parque Florestal de Monsanto para, logo após, me debruçar sobre a generalidade das matas nacionais e outros perímetros florestais sob o regime, ainda em vigor, dos decretos de 24 de Dezembro de 1901 e de 24 de Dezembro de 1903.


IV
DA ESPECÍFICA PROTECÇÃO DO PARQUE FLORESTAL DE MONSANTO


62. O Parque Florestal de Monsanto surgiu por iniciativa do Decreto-lei n.º 24 625, de 1 de Novembro de 1934, pelo qual se incumbiu a Câmara Municipal de Lisboa de criar um parque florestal com 600 hectares na serra de Monsanto, ficando os trabalhos de florestação a cargo do Estado.


63. Ali se permitia (artigo 9.º) que, excepcionalmente, a Câmara Municipal de Lisboa pudesse, sob autorização do Governo, conceder a exploração de recintos e instalações de recreio dentro do Parque.


64. Porém, ficaria submetido ao regime florestal total, apesar de nominalmente permanecer no domínio público municipal, por efeito do Decreto-lei n.º 29 135, de 16 de Novembro de 1938.


65. Décadas mais tarde, o Decreto-lei n.º 297/70, de 27 de Junho, viria limitar severamente o regime florestal total aplicável ao Parque de Monsanto, facultando à Câmara Municipal de Lisboa, contanto que autorizada pelo Ministro do Interior (artigo 1.º):


a) Promover a construção de recintos e instalações de recreio dentro da área do Parque;
b) Conceder, por concurso ou ajuste directo, a construção e/ou a exploração dos referidos recintos;
c) Permitir, mediante constituição de direito de superfície, a instalação de serviços de utilidade pública «que visem directamente objectivos culturais, formativos e de informação».


66. A esta medida opor-se-ia o poder revolucionário com o Decreto-lei n.º 380/74, de 22 de Agosto, que a revogou totalmente.


67. Vale a pena destacar trechos do seu preâmbulo, que começa por invocar os propósitos originários do Estado Novo (citando parcialmente o preâmbulo do Decreto-lei n.º 24 625), quando pretendeu obter do Parque Florestal de Monsanto um alcance de «primacial elemento de embelezamento e higiene» na periferia de Lisboa:


Há (…) que dar início à valorização do Parque, promovendo, através de um planeamento coerente, a sua integração na região de Lisboa como espaço biológico, complementar da ‘mancha’ edificada, que proporcione à população: contacto com a Natureza, sol, ar puro, repouso, recreio, desporto, ou seja, uma actividade cultural humanista e física que contrabalance o artificialismo do meio urbano.


68. E contra o Decreto-lei n.º 297/70, de 27 de Junho, prossegue, afirmando que:
Abriu a possibilidade de alienações de vastas áreas do Parque para instalações públicas e recintos vedados, explorados por concessionários, que se perdem, efectivamente, como logradouros públicos da população em geral e constituirão causa de diversas formas de poluição provocadas pelo trânsito e bulício inerentes (…). Deste modo, o Parque Florestal de Monsanto passou a constituir uma reserva de terrenos negociáveis da Câmara Municipal de Lisboa.


69. Por conseguinte, em 1974, optava-se por estabelecer em favor do Parque Florestal de Monsanto um regime claramente restritivo contra mutações dominiais e utilizações incompatíveis com o regime florestal.


70. Sem se perceber por que motivo, recentemente, o legislador declarou a caducidade deste decreto-lei.


71. Assim, o insólito Decreto-lei n.º 70/2011, de 16 de Junho, justificado por objectivos de simplificação administrativa, ocupou-se da declaração de caducidade de mais de duas centenas de actos legislativos do Governo publicados em 1974.


72. Na sua larga maioria, a caducidade é evidente ou por terem sido expressamente revogados por diplomas ulteriores ou por terem sido esgotados temporalmente os seus efeitos jurídicos (por exemplo, a autorização de um empréstimo interno, a prorrogação de um prazo relativo ao regime das sociedades gestoras de carteiras de títulos).


73. Mas, nesta leva surge, inesperadamente, o Decreto-lei n.º 380/74, de 22 de Agosto, sem que nada explique as razões da cessação da sua vigência.


74. Não creio que possa ter operado a repristinação do Decreto-lei n.º 297/70, de 27 de Junho mas ainda assim, pode deixar dúvidas acerca do estatuto do Parque Florestal de Monsanto.


75. Se é certo que a revogação da norma revogatória «não importa o renascimento da lei que esta revogara» (artigo 7.º, n.º 4, do Código Civil), não é menos certo que o caso não é claramente de revogação, já que o Decreto-lei n.º 70/2011 se propôs cuidar igualmente «não vigência de decretos-leis, em razão de caducidade» (artigo 1.º)


76. Ora, o Decreto-lei n.º 380/74, de 22 de Agosto, embora, como todas as leis, possa ter sido infringido, mantinha, pelo menos, uma importante função interpretativa, que se retirava principalmente das razões que o levavam a revogar o Decreto-lei n.º 297/70, de 27 de Junho.


77. É que a situação do Parque Florestal de Monsanto permanece atípica, pois, como se viu, embora sujeitos ao regime florestal total, os seus terrenos continuam sob domínio do município de Lisboa.


78. Tal particularidade, justifica, a meu ver, suprimir da lista de diplomas cuja vigência foi declarada pelo Decreto-lei n.º 70/2011, de 16 de Junho, o disposto no artigo 12.º, alínea a), em que se enuncia o Decreto-lei n.º 380/74, de 22 de Agosto.


 


V
DA PROTECÇÃO DAS MATAS NACIONAIS E OUTROS PERÍMETROS SOB REGIME FLORESTAL


79. A análise da situação descrita – relativa à subestação eléctrica do Zambujal, no Parque Florestal de Monsanto – levou-me a identificar uma extrema fragmentação do direito florestal, em especial, ao nível das fontes legislativas. Definir o direito aplicável ao caso concreto mostra-se uma operação morosa, complexa e demasiado controvertida. Pergunto-me se tem de ser assim?


80. O cúmulo da desprotecção, porém, descortina-se nas denominadas Matas do Estado, ou seja, aquelas que já antes do Decreto de 24 de Dezembro de 1901 pertenciam ao Estado.


81. É que a protecção jurídica destas florestas encontra-se diminuída de forma agravada, pois entende a AUTORIDADE FLORESTAL NACIONAL que estas matas podem ser desafectadas sem decreto, sequer.


82. Encontram-se nesta situação a Mata Nacional dos Medos e Mata Nacional das Dunas da Trafaria e da Costa de Caparica, ambas no concelho de Almada, e ambas resultado de projectos de florestação destinados a garantir a estabilidade das dunas contra os ventos marítimos e a preservar a fertilidade dos solos agrícolas contra o avanço do areal costeiro (NICOLE DEVY-VARETA, O regime florestal em Portugal através do século XX (1903-2003), Revista da Faculdade de Letras – Geografia, 1ª Série, vol. XIX, Porto, 2003, pp. 447-455).


83. É bem sabido, de resto, que a plantação de largas extensões de pinhal com esta finalidade ambiental e de ordenamento do território remonta avant la lettre ao século XIV e à iniciativa de D. Dinis ao determinar a plantação do Pinhal de Leiria. Uma medida que perdura na política florestal, a avaliar pela citada Estratégia Nacional para a Protecção das Florestas (2006) em que surge como objectivo aumentar a área florestal de protecção da zona costeira.


84. O Pinhal de Leiria, oficialmente, Mata Nacional de Leiria, sito na freguesia e concelho da Marinha Grande, com 11 029 hectares, teve o seu primeiro ordenamento em 1892, segundo projecto do Engenheiro Silvicultor Barros Gomes, depois de um plano preparatório (1882-1892). É um dos casos de submissão ao regime florestal total ope legis, por força dos decretos de 1901 e de 1903 (MARIA ADELAIDE GERMANO, Regime Florestal – um Século de Existência, DGRF, 2ª ed., 2004, p. 61).


85. O desiderato de aumentar a protecção costeira, contudo, tem encontrado retrocessos que, em boa parte, se devem à exígua protecção jurídica.


86. Assim, por exemplo, só no âmbito do Programa COSTA POLIS, foram excluídos cerca de 19 hectares do regime florestal total na Mata Nacional das Dunas da Trafaria e Costa de Caparica:


a)  123 269 m², a fim de viabilizar o Plano de Pormenor das Praias Urbanas,
b) 57 362 m² para o Plano de Pormenor do Jardim Urbano,
c) 15 628 m² para executar o Plano de Pormenor do Campo da Bola


87. Ora, a AUTORIDADE FLORESTAL NACIONAL considera que:
«…A submissão ao regime florestal total desta mata foi operada com a publicação do Decreto de 24 de Dezembro de 1901 (e não através de diploma específico), pelo que (…) a exclusão do regime florestal é concretizada através da cedência a título definitivo do terreno (e não por diploma de exclusão próprio)».


88. Nesta linha, basta um auto de cessão despachado favoravelmente pelo Secretário de Estado das Finanças.


89.  Trata-se de uma posição que urge rever, confrontando-a com os seus pressupostos erróneos.


90. É que estas matas nacionais ingressaram no regime florestal por efeito dos próprios decretos de 24 de Dezembro de 1901 e de 24 de Dezembro de 1903, decretos esses que tinham e têm força de lei.


91. No artigo 27.º do primeiro destes decretos, determina-se que ficam submetidos ao regime florestal total os terrenos, dunas e matas que pertençam ao Estado (alcance retrospectivo) ou que venham a pertencer-lhe (alcance prospectivo).


92. Não se justificava, em 1901-1903, publicar um diploma próprio para cada uma das matas nacionais já pertencentes ao Estado.


93. A oblíqua posição da AUTORIDADE FLORESTAL NACIONAL reduz o estatuto de preciosas parcelas de terreno a meros bens aptos para o comércio jurídico, ao dispor das necessidades conjunturais, nomeadamente de carácter patrimonial, furtando-as a toda e qualquer protecção especial, a começar pela dispensa de intervenção das autoridades florestais e ambientais.


94. E se num caso ou outro pode ter havido intervenção, o certo é que ela não surge nos fundamentos. Por exemplo nas considerações preambulares da Resolução do Conselho de Ministros n.º 151/2005, de 26 de Setembro, que aprovou o referido Plano de Pormenor das Praias Urbanas, embora se deixe expressa a desafectação da Reserva Ecológica Nacional, nada se enuncia quanto à desafectação do regime florestal.


95. Foi necessário levar a cabo uma leitura muito esmiuçada das actas das sessões da ASSEMBLEIA MUNICIPAL DE ALMADA e proceder a um levantamento exaustivo dos actos preparatórios no procedimento da AUTORIDADE FLORESTAL NACIONAL para se saber que ocorreram as desafectações, as quais, supõe-se, venham a ser publicadas oficialmente como actos de cedência definitiva do Ministério das Finanças.


96. Vale a pena percorrer o Anexo I que se faz juntar para verificar como as desafectações das matas nacionais anteriores a 1901-1903 vêm sendo reduzidas a simples actos administrativos de gestão patrimonial e financeira, desprovidos de uma ponderação – que se conheça, pelo menos – dos demais interesses públicos relevantes.


97. Permito-me assinalar o caso da Mata Nacional das Dunas de Leirosa. Se uma primeira desafectação de 1 500 000 m² fora objecto do Decreto-lei n.º 280/82, de 29 de Maio, já uma posterior teve lugar através da Portaria n.º 943/2002, de 25 de Junho.


98. A referida Mata Nacional de Leiria, pese embora o acrescido valor histórico e paisagístico, conhece a mesma erosão da desafectação por acto legislativo para acto administrativo. Assim, uma primeira através da Lei n.º 1489, de 8 de Novembro de 1923; uma segunda, com o Decreto-lei n.º 44 170, de 31 de Janeiro de 1962; a mais recente, pela Portaria n.º 1520/2003, de 16 de Dezembro.


99. Esta verdadeira deslegalização – contrária ao disposto no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição – acentuou-se na penúltima década do século passado, mas, desde então, é ponto assente para as autoridades florestais que se julgaria serem as primeiras a pugnar pelas suas próprias atribuições.


100. Creio ser absolutamente necessário que em todo e qualquer procedimento de desafectação do regime florestal, compreendendo as matas nacionais adquiridas antes de 1901-1903, deva ser condicionada pela intervenção das autoridades florestais e ambientais. Não basta a ponderação financeira do custo/benefício.


101. Cumulativamente, a fundamentação e publicidade do acto devem ser garantidas, como garantia de imparcialidade, de objectividade e da tutela judicial efectiva.


102. Para o efeito, creio justificar-se uma definição clara – e sem margem para opções erráticas – do procedimento a seguir nas desafectações, deixando bem claros os objectivos a prosseguir, à semelhança do que ocorre com a aplicação dos regimes jurídicos de protecção da Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional.


103. Deixar livre uma tão ampla margem de decisão vem permitindo que sejam ignoradas pela opinião pública desafectações que perturbam o equilíbrio dos ecossistemas e da própria unidade dos perímetros florestais, em nome da construção de estações de tratamento de águas residuais ou de parques industriais, de construção de habitações sociais, de aldeamentos turísticos ou, simplesmente, de campos de futebol.


104. Tudo isto sem a demonstração da falta de alternativas, mas com a grande vantagem de conseguir obter solos que, por estarem fora do mercado, surgem com preços exíguos (o que permite, ulteriormente, mais-valias assinaláveis).


105. O Código Florestal suspenso estipulava que a desafectação tivesse de ser obtida por portaria dos membros do Governo com atribuições nas áreas da floresta, do ambiente, do ordenamento do território e das infra-estruturas especiais.


106. E mais previa que, a tratar-se de terrenos do regime florestal total, a validade da desafectação dependesse da inexistência comprovada de alternativas viáveis e, bem assim, da compensação pelo ingresso no regime florestal total de uma outra área com o dobro da extensão.


107. Portugal é, hoje, provavelmente, o país da União Europeia com a mais baixa ratio de área florestal pública (cerca de 15% da área florestal total – cfr. NICOLE DEVY-VARETA, ob. cit.) e bem sabemos como se encontra a floresta privada e social, não raro sem conhecimento dos seus proprietários, em face dos encargos que comporta e dos magros rendimentos que alcançou.


108. Por outro lado, a floresta pública pode e deve satisfazer uma utilidade pública com crescente procura: o turismo e o lazer. As desafectações sem critério deixam comprometida, muitas vezes, esta faceta.


109. A tendência parece ser, de há muito, a redução. Desde 1967, com raríssimas e quase inexpressivas excepções, que não ocorre ingresso de terrenos no regime florestal (MARIA ADELAIDE GERMANO, Regime Florestal – um Século de Existência, DGRF, 2ª ed., 2004, p. 11).


110. Ao invés, contavam-se até 2004, pelo menos, 3 367 hectares desafectados (idem, p. 10), apenas em áreas do regime florestal não administradas pelas autoridades ambientais, designadamente pelo ICNB, IP:


 


111. Pondero que estas desafectações devessem, bem assim, ficar sujeitas a um ónus de reversão, acautelando situações de não uso segundo o fim previsto.


112. Por exemplo, a Portaria n.º 1282/99, de 3 de Dezembro, alterou anterior cedência de 1988 ao município da Figueira da Foz, pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de 100 hectares da Mata das Dunas de Quiaios para instalar um clube de campo, um campo de golfe, um centro hípico e anexos, de modo a permitir instalar empreendimentos hoteleiros vários.


113. Não obstante se prever a execução do projecto em dois anos, o certo é que nada foi utilizado, desde logo, por impedimentos decorrentes da Reserva Ecológica Nacional. A desafectação permanece e nunca ocorreu reafectação dos terrenos ao regime florestal.


VI
DO REGIME DE POLÍCIA FLORESTAL


114. Confrontada a Autoridade Florestal Nacional com a já relatada construção de instalações da rede eléctrica no Parque Florestal de Monsanto, fomos nós confrontados com o vazio deixado pela revogação do Regulamento de Polícia Florestal, aprovado pelo Decreto-lei n.º 39 931, de 24 de Novembro de 1954, de par com a suspensa entrada em vigor do Código Florestal.


115. Neste contexto, a Autoridade Florestal Nacional não dispõe de poderes de polícia administrativa para impedir ou fazer cessar infracções ao regime florestal.


116. Exceptuando a protecção da floresta contra incêndios, dir-se-ia que o direito florestal se encontra completamente votado ao esquecimento.


117. Com efeito, o citado Regulamento de Polícia Florestal fora revogado pela Lei n.º 30/2006, de 11 de Julho. Esta, porém, limitou-se a converter as transgressões e contravenções em contra-ordenações e não cuidou de regular mais nada.


118. Reconhece a Autoridade Florestal Nacional ter ficado deveras comprometida a sua acção para fazer respeitar o regime florestal (1901-1903), pois foram simplesmente revogadas as sanções de delitos cometidos nas áreas sob regime florestal, como também as disposições que lhe facultavam o embargo de obras e a mera fiscalização nas matas nacionais sob sua jurisdição contra o derrube ou corte ilícito de espécies florestais.


119. O Código Florestal, ainda que procedesse a uma segunda revogação do Regime de Polícia Florestal (o que justificaria a declaração de rectificação n.º 88/2009, de 23 de Novembro), pelo menos, vinha colmatar este vazio.


120. Já ficou registada (supra n.º 7 e n.º 8) a atribulada situação deste Código, de sorte que, há mais de cinco anos, encontra-se a descoberto a punibilidade das infracções ao regime florestal, salvo se as espécies possuírem outra norma que as proteja, como acontece com os montados de sobro e azinho.


121. Se o Código Florestal não entrar em vigor de imediato, mostra-se urgente repristinar o Regulamento de Polícia Florestal, aprovado pelo Decreto-lei n.º 39 931, de 24 de Novembro de 1954, ou determinar um regime transitório.


122. À vulnerabilidade a que se expõem as matas nacionais junta-se a perda de receitas que resultaria da aplicação de coimas.


123. Mas já que se pretende modificar o Código Florestal e não o manter suspenso sine die, permitia-me sugerir a recuperação de alguns aspectos que surgiram diminuídos por comparação com o Regulamento de Polícia Florestal. Trata-se das medidas de polícia contra o corte de árvores, contra a circulação viária nos terrenos do regime florestal, nomeadamente os poderes para fazer cessar actividades, embargar obras e intimar à reposição da situação anterior ao facto ilícito.


124. Especificamente quanto ao embargo, embora este poder confiado à Autoridade Florestal Nacional surja mais consolidado na versão publicada do Código, receio bem que o seu tratamento no artigo 51.º (Secção I, Capítulo II) possa fazer crer que apenas se aplique à defesa dos montados de sobro e azinho.



VII
CONCLUSÕES


Em face do que vem exposto, e nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, entendo por bem Recomendar ao Governo através de Vossa Excelência que pondere a adopção das providências legislativas adequadas:


I) À mais breve possível entrada em vigor, com as modificações necessárias, do Código Florestal, aprovado pelo Decreto-lei n.º 254/2009, de 23 de Setembro;


II) Ao aperfeiçoamento de algumas das suas disposições, com vista a:



a. reforçar as medidas de polícia administrativa contra actos lesivos do regime florestal, aclarando a extensão dos poderes de embargo além dos casos dos montados de sobro e azinho e evitando, o mais possível, os não raros conflitos negativos de competência para exercer poderes de autoridade;


b. constituir um dever de fundamentação das desafectações do regime florestal em ordem a dar por verificada a inexistência de alternativas viáveis;



c. à reversão dos terrenos desafectados do regime florestal a que não seja dado o uso justificativo, no termo de um prazo razoável;


d. a enunciar os fins de interesse público que possam justificar a desafectação do regime florestal;



e. definir claramente a irrenunciável competência das autoridades florestais e ambientais nos procedimentos de desafectação, seja qual for o momento e forma da sua submissão ao regime florestal;


III) À repristinação transitória do Regime de Polícia Florestal, aprovado pelo Decreto-lei n.º 39 931 de 24 de Novembro de 1954, pelo menos, na parte relativa à perseguição e punição de infracções perpetradas contra as matas e florestas nacionais, com simples convolação das transgressões e contravenções em ilícito de mera ordenação social;


IV) À repristinação do Decreto-lei n.º 380/74, de 22 de Agosto, erroneamente declarada a sua caducidade pelo Decreto-lei n.º 70/2011, de 16 de Junho;



V) À reintegração da legalidade relativamente à subestação do Zambujal, no Parque Florestal de Monsanto, o que poderia passar por compensações de florestação em outras áreas do mesmo perímetro;


Dignar-se-á Vossa Excelência comunicar-me, nos próximos 60 dias, para cumprimento do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.


Queira aceitar, Senhora Ministra, os meus melhores cumprimentos,



O PROVEDOR DE JUSTIÇA,


(Alfredo José de Sousa)