Exmo. Senhor
Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra
Rua da República, 3
2970-741 Sesimbra 

  Vossa Ref.ª                        Vossa Comunicação              Nossa Ref.ª       

Ofícios n.ºs 30340 e 8396    03.12.2008 e 17.04.2009    Proc.     R-4749/08 (A2)
                                                                                                     R-5472/08 (A2)    

 
Assunto:    Queixas apresentadas na Provedoria de Justiça pela Senhora A. e pelo Senhor B. Taxa de conservação e tratamento de esgotos.    

RECOMENDAÇÃO N.º   3 /A/ 2010
(Art.º 20.º, n.º 1, alínea a),  da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)

I

EXPOSIÇÃO DOS FACTOS

A presente intervenção foi desencadeada por duas queixas que me foram dirigidas  quanto à cobrança por parte da Câmara Municipal de Sesimbra de uma taxa de conservação e tratamento de esgotos, prevista no artigo 82.º do Regulamento Municipal dos Sistemas Público e Predial de Águas Residuais do Município de Sesimbra (doravante Regulamento Municipal).

1.    Queixa apresentada pela Senhora A.

    A Senhora A., residente em …, contesta a cobrança da taxa de conservação e tratamento de esgotos relativa aos anos de 2006 e 2007 (cfr. a factura n.º 8000092430, em nome do Senhor X., cujos períodos de facturação são de 01.01.2006 a 31.12.2006 e de 01.01.2007 a 31.12.2007), na medida em que a disponibilidade do sistema público de drenagem apenas ocorreu em Outubro de 2007.

2.    Queixa apresentada pelo Senhor B.

    O Senhor B., residente em …., contesta a cobrança da taxa de conservação e tratamento de esgotos por motivos idênticos, mas apenas no que respeita ao ano de 2007, uma vez que a disponibilidade do sistema público de drenagem apenas se verificou em Julho daquele ano.

II

ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA QUESTÃO

A questão central que se coloca é a de saber se a taxa de conservação e tratamento de esgotos prevista no artigo 82.º do Regulamento Municipal é devida pelos Reclamantes naqueles anos, e, em caso de resposta positiva, a partir de que momento, pelo que importa agora proceder ao enquadramento legal da questão, tal como configurado por este órgão do Estado.

2.    A taxa de conservação e tratamento de esgotos

O artigo 82.º do Regulamento Municipal, que tem por epígrafe “Taxa de conservação e tratamento de esgotos”, estatui no seu n.º 1 que “A taxa de conservação e tratamento de esgotos respeita aos encargos com a manutenção do sistema e incide sobre a valia da disponibilidade daquele sistema, devidamente conservado, relativamente aos prédios, ou fracções autónomas quando for caso disso, que a eles devam estar ligados.”.

Acresce que, de acordo com o n.º 4 daquela norma, “a taxa de conservação é devida pelo(s) proprietário(s) ou usufrutuário(s) dos prédios ou fracção autónoma, à data de 31 de Dezembro do ano que se reporta a referida taxa.”

3.    A exigência de contraprestação pública

A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, ensaia uma distinção entre os vários tributos, nomeadamente, entre impostos e taxas, adiantando que os primeiros “…assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património” e as segundas “…assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares”.

Adicionalmente, é vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a distinção entre as figuras da taxa e do imposto. Por exemplo, no Acórdão n.º 68/2007, publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 5 de Março de 2007, o Tribunal Constitucional faz, com grande utilidade, uma resenha da doutrina e da jurisprudência daquele Tribunal sobre a matéria.

Aí pode ler-se, apelando-se à fundamentação de vários arestos anteriores àquele, o seguinte:

“Como se sabe, existe uma abundante jurisprudência constitucional sobre a distinção entre imposto e taxa (…). Para extremar a noção de ‘imposto’ constitucionalmente relevante da de ‘taxa’, o Tribunal tem-se socorrido essencialmente de um critério que pode qualificar-se como ‘estrutural’, porque assente na ‘unilateralidade’ dos impostos (…), admitindo ainda, porém, como factor adicional de ponderação, que se tome em consideração a ‘razão de ser ou objectivo das receitas em causa’, quer para recusar a certas receitas o carácter de imposto, quer como argumento ponderoso para afastar o carácter de taxa de uma dada prestação pecuniária coactiva (…).
(…)
Tanto na jurisprudência uniforme do Tribunal, como na orientação unânime da doutrina, um elemento ou pressuposto estrutural há-de, desde logo e necessariamente, verificar-se, para que determinado tributo se possa qualificar como uma ‘taxa’, qual seja o da sua ‘bilateralidade’: traduz-se esta no facto de ao seu pagamento corresponder uma certa ‘contraprestação’ específica, por parte do Estado (ou de outra entidade pública). Se tal não acontecer, teremos um ‘imposto’ (ou uma figura tributária que, do ponto de vista constitucional, deve, pelo menos, ser tratada como tal). (…) Se se não divisarem características de onde decorra a ‘bilateralidade’ da imposição pecuniária, nada mais será preciso indagar para firmar a conclusão de harmonia com a qual é de arredar a qualificação dessa imposição como ‘taxa’ (…)”.

Ora, o requisito para a cobrança da taxa de conservação e tratamento de esgotos, ou seja, a disponibilidade do sistema público de drenagem, apenas se verificou, no caso da Reclamante, Senhora A.,a partir de Outubro de 2007, e,  na situação do Reclamante, Senhor B., a partir de Julho de 2007.

Assim, nos casos em apreço, não se vislumbra contraprestação efectiva pelo pagamento do tributo, até ao momento da disponibilidade do sistema público de drenagem, ou seja, até ao momento em que se tornou possível a utilização de tal sistema, pelo que falta ao tributo em questão, no que respeita à sua aplicação aos períodos de tempo anteriores à susceptibilidade de utilização daquele sistema, o fundamento sinalagmático que é sua característica distintiva.

Aliás, basta atentar no facto de os Reclamantes, enquanto não se verificou a disponibilidade do sistema público de drenagem, terem sempre recorrido aos serviços pagos de particulares, quer no que toca ao esvaziamento das fossas sépticas, quer para efeitos de desactivação das mesmas, procedendo-se à sua desinfecção e entulhamento.

Assim, a  cobrança do tributo que aqui nos ocupa relativamente ao período de tempo em que não houve disponibilidade do sistema público de drenagem, leva-me a duvidar de que o mesmo possa ser qualificado como uma taxa e, consequentemente, a ter sérias reservas sobre a respectiva constitucionalidade face aos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa. De acordo com estes normativos constitucionais, a criação de impostos – ou de outras figuras tributárias que devam, em termos jurídico-constitucionais, ser tratadas como impostos –, é matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo os mesmos ser criados por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo por aquela autorizado, não podendo ninguém ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos moldes referidos.

4.    Momento a partir do qual é devida a taxa de conservação e tratamento de esgotos

Decorre do exposto que a cobrança da taxa por inteiro num ano civil em que a disponibilidade do sistema público de drenagem não abarca o ano civil completo, por ter sido introduzido após 1 de Janeiro, pode degenerar do tipo tributário de taxa para imposto.

Pelo que a taxa só deve ser exigida a partir do momento em que há a possibilidade de ligação ao sistema público de drenagem, tal como decorre do n.º 1 do artigo 82.º do Regulamento Municipal. Exigir o pagamento da taxa em período, dentro do mesmo ano civil, anterior à possibilidade de utilização do sistema público, invocando o n.º 4 do artigo 82.º, é uma interpretação que põe as duas normas em conflito.

Por um lado, prevê-se que o facto gerador do tributo é a disponibilidade do sistema público de drenagem, mas, por outro, pretende-se exigir que o tal tributo abarque períodos em que não é manifestamente devido (no caso da Reclamante, Senhora A., o Município de Sesimbra pretende ainda a sua aplicação a um ano civil – 2006 –, em que não se verificou sequer a disponibilidade do sistema público de drenagem).

Assim, no caso da Reclamante, Senhora A, o Município de Sesimbra está a exigir o pagamento de 21 meses em que não houve disponibilidade do sistema público de drenagem, ou seja, qualquer contraprestação pública (todo o ano de 2006 e 9 meses de 2007), e,  na situação do Reclamante, Senhor B, de 6 meses (de 2007).

Assim sendo, parece-me que, nos casos em apreço, o Município de Sesimbra poderia ponderar adoptar os seguintes procedimentos:

·    No que respeita ao valor cobrado à Senhora A., por referência a 2006, proceder à sua integral restituição, pois naquele ano não se verificou qualquer disponibilidade do sistema público de águas residuais;
·    Já no que toca a 2007, promover o fraccionamento da taxa, de modo que os montantes pagos respeitem apenas aos meses em que houve contraprestação pública (recorde-se: relativamente à Reclamante, Senhora A., a partir de Outubro de 2007; no que concerne ao Reclamante, Senhor B., desde Julho daquele ano), ou, mantendo essa edilidade a posição de que a taxa é insusceptível de fraccionamento por períodos de tempo inferiores ao ano civil, não a considerar de todo devida no ano de 2007 (por exemplo, considerar que apenas é devida no ano imediato à disponibilidade do sistema público de drenagem).

Por outro lado, o Município de Sesimbra deverá adaptar, se for caso disso, até 30 de Abril de 2010, o Regulamento Municipal ao regime geral das taxas das autarquias locais, aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro (cf. artigo 17.º, na redacção dada pela Lei n.º 117/2009, de 29 de Dezembro), devendo a mencionada taxa passar, também ela, pelo crivo dessas novas regras. Deste modo, poderá essa autarquia aproveitar tal ocasião para clarificar a norma em apreço, por exemplo prevendo expressamente a susceptibilidade de fraccionamento da taxa de conservação e tratamento de esgotos.

III

CONCLUSÕES

Nos casos em apreço, a natureza sinalagmática da taxa de conservação e tratamento de esgotos está posta em questão, na medida em que, até à disponibilidade do sistema público de drenagem, foram pagos, pelos Reclamantes, valores que não tiveram como contrapartida qualquer serviço dessa Câmara Municipal.

Deste modo, o art.º 82 do Regulamento Municipal, interpretado e aplicado no sentido da cobrança da taxa de conservação e tratamento de esgotos nas situações em apreço, porque relativa a período anterior ao momento em que se tornou possível a utilização do sistema público de drenagem, enferma de inconstitucionalidade (dada a reserva de lei existente em matéria de criação de impostos).

Assim, pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a V. Exa. que pondere providenciar:

A.     Pela integral restituição do valor pago pela Senhora A., por referência ao ano de 2006, já que não se verificou qualquer disponibilidade do sistema público de drenagem nesse ano

B.    Pelo fraccionamento da taxa e restituição das quantias cobradas à Senhora A., de Janeiro a Setembro de 2007, e ao Senhor B., de Janeiro a Junho de 2007;

C.    Caso mantenha a posição que desde já não se aceita por falta de fundamento substantivo de insusceptibilidade de fraccionamento da taxa por períodos de tempo inferiores ao ano civil, considerar que esta não é devida no ano de 2007, procedendo ao reembolso integral das quantias pagas pelos Reclamantes com referência àquele ano;

D.     Pela adopção de medidas tendentes a que o artigo 82.º do Regulamento Municipal não inclua na sua previsão momentos do ano civil em que não se verifique a disponibilidade do sistema público de drenagem e que, caso outra solução não seja encontrada, contemple expressamente a possibilidade de fraccionamento da taxa.

Dignar-se-á V. Exa. a dar cumprimento ao disposto no artigo 38.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e comunicar-me, no prazo de 60 dias, a posição que é assumida relativamente à presente Recomendação.

Com os melhores cumprimentos.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA,

(Alfredo José de Sousa)

1 – Na redacção dada pelas Leis n.ºs 30/96, de 14 de Agosto, e 52-A/2005, de 10 de Outubro. 

2 – Por exemplo, o n.º 2 do artigo 77.º do Regulamento Geral das Canalizações de Esgoto da Cidade de Lisboa, prevê o princípio da anualidade da tarifa de conservação, mas estabelece que a mesma é devida a partir do ano imediato ao da ligação do prédio à rede geral de esgotos.