Número: 13/A/2008

Data: 16-12-2008

Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Mafra

Assunto: agravamento de taxa de legalização de obras

Processo: R-2544/08 (A1)

 

 

 

Recomendação n.º 13/A/2008

[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]

 

I

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

 

1. Foi solicitada a minha intervenção devido ao agravamento dos montantes das taxas liquidadas pela emissão de alvarás de licença de construção por essa Câmara Municipal, quando se trate da legalização de operações urbanísticas executadas de facto.

2. Pretende a reclamante, XX, a restituição da parte da taxa que terá sido liquidada a título de agravamento no âmbito do licenciamento de uma piscina na denominada Casa das Máquinas.

 

II

DO DIREITO

 

3. Aquele agravamento terá como suporte o Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças do Município de Mafra, onde se prevê, expressamente, o agravamento dos montantes no âmbito da legalização de construções ou de utilizações não consentidas pelo uso previsto na licença de utilização, relativamente às quantias que são cobradas nos procedimentos prévios de licenciamento.

4. Pondero que a legalidade deste tipo de disposições regulamentares é questionável, dado que não se vislumbra qual o benefício concreto e individualizado que é atribuído pelo município como contrapartida do agravamento exigido.

5. Idêntica situação foi já objecto de diversas Recomendações, todas elas acatadas por parte de municípios que procederam à alteração dos seus regulamentos municipais (v.d. por exemplo a Recomendação 12-A/2003, em http://www.provedor-jus.pt /restrito/rec_ficheiros/Rec12A03.pdf).

6. Estaremos, porventura, perante uma receita municipal com finalidades não estritamente financeiras, porque eminentemente sancionatórias, o que não parece admissível em face da Lei das Finanças Locais.

7. Esta prática apresenta-se reprovável também por poder sedimentar uma excessiva tolerância relativamente às obras ilegais, ao antever-se, na sua posterior legalização, uma fonte de receitas considerável e, por conseguinte, redundar numa mais-valia para os cofres municipais.

8. Aplicando-se o regime jurídico da urbanização e da edificação aos procedimentos de licenciamento ou de autorização ex post de operações urbanísticas, e não se distinguindo a actividade administrativa de carácter material desenvolvida pela câmara municipal em ambos os casos, as taxas a cobrar parecem dever ser necessariamente as mesmas.

9. Não se encontra fundamento legal que habilite, em sede de regulamentação municipal atinente ao lançamento e liquidação das taxas, a distinção entre os montantes a liquidar como taxa pela emissão prévia ou a posteriori de alvará de licença ou de autorização.

10. Importará, ainda, abordar a questão numa outra perspectiva, qual seja, a do sacrifício pecuniário imposto ao requerente do pedido de legalização.

11. Assim, inversamente, também se dirá que o sacrifício patrimonial que pode ser imposto ao particular que constrói e utiliza edificações sem licença é única e exclusivamente aquele que deriva das normas sancionatórias aplicáveis à sua conduta.

12. E estas encontram-se expressamente fixadas na lei, reconduzindo-se aos preceitos legais que definem os tipos contra-ordenacionais e prevêem as coimas e as sanções acessórias aplicáveis.

13. Mesmo admitindo que o conceito de taxa prescinde de uma rigorosa e exacta equivalência económica entre o valor da prestação pública e a imposição pecuniária, a finalidade orientadora que ainda se pode cometer às taxas no âmbito do princípio da proporcionalidade, não consentirá uma desproporção tal que os montantes a exigir aos particulares em nada já se relacionem com a natureza da prestação pública e com os benefícios prestados.

14. Tal desproporção só poderá ter por escopo uma finalidade sancionatória, o que não é critério legítimo que habilite a fixação da taxa.

15. Não se divisam, pois, no procedimento de legalização, encargos acrescidos susceptíveis de fundamentar um aumento do valor das taxas devidas pela emissão das licenças ou autorizações de construção e de utilização(1)  e não pode ao particular ser aplicada outra sanção que não resulte do preenchimento do tipo contra-ordenacional, já que o ordenamento jurídico não reconhece outro direito sancionador que não seja nos domínios penal, contra-ordenacional ou disciplinar.

16. Nem se diga que o novo regime jurídico das taxas, aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, constituiria uma base legal para aquele agravamento, por via do artigo 4.º.

17. Com efeito, esta norma prevê a possibilidade de se fixar o valor das taxas com base em critérios de desincentivo à prática de certos actos ou operações. Pondero que não se poderá utilizar este agravamento como forma de se sancionar comportamentos ilícitos.

18. Para esta finalidade existe, no ordenamento jurídico, a possibilidade de instauração de procedimento contra-ordenacional.

19. Assim, antevejo que o legislador terá pretendido apenas desincentivar a prática de actos ou operações lícitas que, por essa razão, não são objecto de sanção contra-ordenacional mas que são considerados indesejáveis ou cuja prática importa reduzir.

20. Veja-se a título de exemplo alguns casos já consagrados noutras áreas do direito e em vários tipos de tributos, como seja o agravamento, com fins moderadores:

a) da tarifa de estacionamento, em certas zonas da cidade, e em certos horários;

b) da taxa de publicidade, em certos locais;

c) da taxa de acesso a determinados equipamentos de utilização colectiva, dentro de certo horário;

d) da taxa pela emissão da licença de detenção de animais perigosos ou potencialmente perigosos.

21. De todo o modo, o agravamento das taxas municipais há-de sempre respeitar o princípio da proporcionalidade, ou seja, há-de ter uma certa correspondência com o custo da actividade pública local ou com o benefício auferido pelo particular.

22. O princípio do benefício ou da equivalência económica é o princípio nuclear no que concerne à fixação do montante das taxas, porque, justamente, estas são pagas em face de uma contrapartida prestada pela Administração Pública.

23. Mas, acima de tudo, devo fazer notar que a Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, não é aplicável ao caso concreto, porque o regulamento das taxas municipais reclamado foi elaborado com base no regime jurídico anterior.

24. Por último, cumprirá referir que a proibição do arbítrio vale também no domínio da quantificação dos montantes a liquidar como taxa pela prestação de um mesmo serviço público: a apreciação das pretensões de aproveitamento urbanístico do solos e de utilização dos edifícios para determinados fins, e sua fiscalização.

25. Não pode o mesmo município tratar desigualmente dois administrados que obtenham um mesmo benefício individual do mesmo serviço, sob pena de ilegalidade da deliberação que assim violaria a proibição do arbítrio.

26. Tratando-se de legalizar obras por aplicação do mesmo procedimento, os critérios de fixação das taxas terão de basear-se nos mesmos dados e circunstâncias de facto, aplicados por igual a todos os utilizadores do serviço público em que se traduz o controlo e a fiscalização da actividade edificatória dos particulares.

27. Dispõe-se no art. 117.º, n.º 4 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação que a exigência, pela câmara municipal ou por qualquer dos seus membros, de mais-valias não previstas na lei ou de quaisquer outras contrapartidas, compensações ou donativos confere ao titular da licença o direito a reaver as quantias indevidamente pagas.

28. Em suma, aqueles preceitos regulamentares municipais não encontram fundamento em qualquer norma legal que os habilite. Por esta razão, as normas regulamentares que fixam tais taxas são ilegais por desrespeito do princípio da hierarquia normativa.

29. Por outro lado, tais preceitos regulamentares violam o princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido estrito consagrado no art. 5º, n.º 2, do CPA, e art. 266º, n.º 2, da Constituição, por as regras de fixação dos quantitativos das taxas prescindirem de qualquer equivalência relativamente aos custos globais da prestação pública que é prestada ao particular, traduzidos nos montantes liquidados como taxas no âmbito dos procedimentos de licenciamento prévio.

30. Não se divisando nos procedimentos de legalização quaisquer encargos acrescidos que o particular deva suportar, não pode deixar de reconhecer-se que taxas de montante radicalmente diverso pela prestação de serviços materialmente idênticos, atentam contra o princípio da igualdade (art. 5º, n.º 1, do CPA, e art. 13º da Constituição).

31. Assim, tais receitas são verdadeiros impostos locais, ilegais por não haverem sido criados por lei da Assembleia da República nem por decreto-lei do Governo, precedido de autorização legislativa (arts 103º, n.º 2, e 165º, n.º 1, alínea i), da Constituição).

32. Como tal, ter-se-á de concluir pela anulabilidade dos actos administrativos que determinem o lançamento, liquidação e cobrança de taxas por emissão de licença ou autorização de construção e de autorização de utilização no âmbito dos procedimentos de licenciamento ex post de obras de construção e da utilização de edifícios, em montante diverso e agravado relativamente aos montantes a cobrar em sede de procedimentos prévios de licenciamento ou de autorização, por se tratarem de taxas não previstas na lei.

33. E, na parte em que excedem desproporcionadamente os montantes a cobrar nos procedimentos prévios de licenciamento ou de autorização, por se tratarem de verdadeiros impostos, e, nessa medida não observarem o princípio da legalidade tributária.

 

III

CONCLUSÕES

 

 

Assim, nos termos do disposto no artigo 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente expostas, RECOMENDO à Câmara Municipal, superiormente presidida por V.Ex.a, que delibere a devolução da quantia reclamada, bem como a revogação do disposto no art. 37.º, n.º 2, do Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças do Município de Mafra, comunicando a este órgão de Estado a decisão que vier a ser adoptada.

 

Dignar-se-á V. Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.

 

 

O Provedor de Justiça,

H. Nascimento Rodrigues

 (1)A contrario, o agravamento das taxas apenas se justificaria como contrapartida de um benefício específico atribuído ao requerente do pedido de legalização. Cfr., neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1108/96, cit., pp. 309 e 310.