RECOMENDAÇÃO N.º 9/B/2008
[artigo 20, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]
Entidade visada: Secretário de Estado Adjunto da Agricultura e das Pescas
Proc.º: P-8/07
Data: 12-09-2008
Área: A1
Assunto: Revisão do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro – Explorações de bovinos – casos especiais de licenciamento
I –
Exposição de motivos1. Tomo a iniciativa de me dirigir a V. Ex.a., considerando a preparação de novo diploma legislativo que regulamentará o licenciamento das explorações pecuárias, o qual, se supõe, vir a revogar, entre outros, o Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro (1).
2. Oportunamente, dei conhecimento a V. Exa. das queixas que me têm sido apresentadas por cidadãos, individual e colectivamente, que se opõem a explorações bovinas em zonas residenciais, por serem motivo de incomodidade e de insalubridade.
3. Por regra, os reclamantes mostram-se inconformados com a falta de providências adoptadas por parte das câmaras municipais, não obstante a infracção de planos directores municipais que estabelecem interdições relativas à localização de instalações pecuárias em solos urbanos ou, pelo menos, em certas categorias (2).
4. É que, na verdade, com fundamento no artigo 23.º n.º 1 do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro, as câmaras municipais procedem ao licenciamento ou legalização das obras de construção em causa.
5. Esta disposição admite um regime excepcional de licenciamento para as explorações já existentes à data da entrada em vigor do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro isentando-as do cumprimento do mais importante instrumento de gestão territorial, em cada município:
O licenciamento das explorações bovinas já existentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei não está dependente do cumprimento das normas relativas aos planos directores municipais, bem como da licença de utilização das instalações.
6. Dos esclarecimentos prestados pelo Gabinete de V.Ex.a. resulta que o enunciado do artigo 23.º do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro, terá sido a solução encontrada para promover o licenciamento das explorações pecuárias existentes, nomeadamente aquelas cuja zona de implantação era originariamente rural e tenha sido reclassificada como urbana, por plano director municipal posterior ou por revisão deste, sem que os direitos dos interessados tivessem sido acautelados e independentemente de se tratar ou não de explorações instaladas em edificações licenciadas, clandestinas ou anteriores à generalização do licenciamento das operações urbanísticas (Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951).
7. Procurando salvaguardar o novo regime de licenciamento das explorações pecuárias contra uma disposição análoga, considerei expor a .Ex.a. algumas observações e formular a presente Recomendação.
8. Em breves palavras, entendo que uma excepção com esta latitude não só produz graves inconvenientes de ordem sanitária, ambiental e de ordenamento do território, como também pode revelar-se indirectamente inconstitucional, dentro dos casos que a Constituição, de par com a fiscalização da constitucionalidade, qualifica como de desaplicação (artigo 280.º, n.º 2) ou de declaração da ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 281.º, n.º 1, alínea b), e artigo 282.º).
9. Se é compreendida a protecção da confiança de terceiros relativamente a explorações que se encontram em solos urbanos desde tempos em que esta localização era admissível, já este entendimento parece excessivo em relação a explorações cuja instalação já teve lugar contra o plano director municipal ou contra outras prescrições condicionantes da localização.
II –
§ 1.º
Planos municipais de ordenamento do território e vinculação
10. As bases do ordenamento do território e do urbanismo, consagradas na Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto, alterada pela Lei n.º 54/2007, de 31 de Agosto, integram a reserva de competência relativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, z), da Constituição).
11. Uma das regras previstas na lei de bases é, precisamente, a vinculação das entidades públicas e particulares pelos planos municipais de ordenamento do território (3) (artigo 11.º n.º 2).
12. Aprovada uma lei de bases do ordenamento do território e do urbanismo, toda a legislação governamental posterior tem que mostrar-se compatível, a menos que a Assembleia da República consinta, por autorização legislativa, uma solução diferenciada, cumprindo-lhe, ainda assim, «definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização» (artigo 165.º, n.º 2, da Constituição).
13. A desaplicação de uma categoria de instrumentos de gestão territorial directamente vinculativos dos particulares é, pois, da exclusiva competência parlamentar, salvo autorização, por se tratar das bases da política de ordenamento do território. Analisando o Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro, na sua forma, é manifesto que tal não sucedeu, tendo o Governo expressamente invocado apenas o artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, respeitante à sua competência legislativa própria.
14. Ainda assim, o artigo 23.º do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro, como já foi visto, vem isentar as explorações bovinas anteriores à sua entrada em vigor “do cumprimento das normas relativas aos planos directores municipais” (artigo 23.º, n.º 1).
15. E, ao fazê-lo, está a dispor contra o artigo 11.º da citada lei de bases, estabelecendo uma excepção não prevista na lei, o que me suscita dúvidas do ponto de vista da compatibilidade da norma em questão com a reserva parlamentar de competência legislativa e com o estatuto reforçado das leis de bases (artigo 112.º, n.º 3 da Constituição).
16. E nem se julgue que as leis de bases apenas reclamam a compatibilidade dos decretos-leis que visam desenvolvê-las, expressamente. De outro modo, o Governo, no exercício da sua competência legislativa própria poderia, a todo o tempo, dispor contra as bases aprovadas pelo Parlamento, bastando-lhe não qualificar os seus actos como decretos-leis de desenvolvimento.
17. Faço notar ainda que o regime desta norma revela alguma incongruência quando isenta o licenciamento das explorações já existentes do cumprimento do plano director municipal, mas já não dos outros planos municipais de ordenamento do território (planos de urbanização e planos de pormenor).
§2.º
Situações abrangidas pela excepção
18. No artigo 23.º do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro, consagra-se um regime especial de licenciamento para as instalações já existentes à data da sua entrada em vigor, indistintamente. Todavia, creio que o momento da instalação das explorações em causa deveria ser relevante para o efeito.
19. A garantia da existência, enquanto manifestação do princípio da confiança, significa que os planos devem produzir os seus efeitos apenas para o futuro. Não devem pôr em causa as edificações existentes à data da sua entrada em vigor, mas contanto que tenham sido executadas em conformidade com a lei vigente ao tempo da sua execução (4) que o princípio da confiança só concede protecção a expectativas legítimas, não podendo constituir um instrumento de corrosão do Estado de direito, da legalidade e da defesa do interesse público.
20. Neste sentido, dispõe-se no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (aprovado pelo Decreto-lei n.º 555/99, de 17 de Dezembro) que as operações executadas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares supervenientes (artigo 60.º n.º 1).
21. Esclareça-se, porém, que as edificações referidas nesta norma são aquelas que, no tempo da construção, cumpriam todos os requisitos materiais e formais exigíveis e se encontrem devidamente licenciadas, legalizadas ou justificadas pela aplicação da lei no tempo. Assim, ainda que uma edificação cumprisse, à data da sua construção, todas as normas em vigor, a apresentação do pedido de licença num momento em que se encontra em vigor um novo instrumento de planeamento que a impede, não pode ter como efeito a sua inclusão no regime de garantia instituído neste normativo (5).
22. Da garantia da existência já poderiam beneficiar as instalações de bovinos que tenham sido redimensionadas em momento posterior à entrada em vigor do plano ou sua revisão.
23. Por outras palavras, é de admitir que sejam licenciadas ou admitidas por outra forma de controlo urbanístico obras de reconstrução ou de alteração, apesar de não cumprirem as regras em vigor no momento da decisão, desde que tais obras se refiram a edificações legalmente existentes à entrada em vigor dessas normas e contanto que as alterações não originem nem agravem a desconformidade com as normas em vigor ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação (artigo 60.º n.º 2).
24. Neste âmbito de protecção do existente, admitem-se, por certo, algumas obras de ampliação, desde que necessariamente limitadas (6) e que não originem nem agravem a desconformidade com as normas em vigor. Torna-se necessário que a utilização seja adequada ao tempo e ajustada à função (7).
25. Entendeu o Supremo Tribunal Administrativo que o pedido de legalização de obras clandestinas e o licenciamento de outras a executar, de modo a modificar construções anteriormente licenciadas para uma utilização distinta, altera a natureza do anterior licenciamento, pelo que estes pedidos de legalização e de licença de construção têm de ser apreciados de acordo com o direito vigente à data do pedido e da decisão, incluindo as normas do plano director municipal, tendo o antigo licenciamento perdido eficácia (8).
26. O artigo 23.º do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro aplica-se também às explorações instaladas em data posterior à entrada em vigor do plano director municipal.
27. Mas, nestes casos, num momento em que já eram conhecidas as normas regulamentares aplicáveis, a isenção do cumprimento das mesmas já se afigura inadmissível, pelas razões expostas sobre a vinculação dos planos.
28. Por conseguinte, pondero que só seja de admitir a legalização das explorações posteriores à entrada em vigor dos planos directores municipais na medida em que respeitem a nova disciplina urbanística.
29. Em relação às incertezas para situar no tempo a instalação das explorações de bovinos, cumpre referir, a este respeito, que embora não se encontre anterior legislação específica para o licenciamento da generalidade das explorações de bovinos, com âmbito análogo ao Decreto-lei n.º 202/2005, nem por isso deixara a matéria de merecer tratamento normativo.
30. Antes de mais, as Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065, de 30.03.1929 (9) (tabela anexa, ponto 28), cuja vigência se prolongou até à entrada em vigor da Portaria n.º 33/2000, de 28 de Janeiro. Em segundo, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951 (artigos 115.º e seguintes).
31. A possibilidade de tais estabelecimentos se encontrarem localizados em áreas urbanas ou urbanizáveis encontrava-se condicionada à salubridade e conforto das habitações vizinhas, o que implicava que os alojamentos reunissem as condições de protecção e de higiene definidas nos artigos 56.º e 115.º e seguintes do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, bem como aquelas que constassem do alvará de licença sanitária em matéria de exploração (artigo 19.º, § único das citadas Instruções). Classificados os currais de bois ou vacas na 3ª classe, admitia-se a localização dentro do perímetro urbano, desde que reunissem as necessárias condições de protecção e higiene).
32. Além do mais, não se encontrando licenciados os alojamentos, competia às câmaras municipais proceder ao seu encerramento (artigo 30.º das Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065 de 30 de Março de 1929).
33. Isto, sem esquecer o regime geral do licenciamento das obras particulares. Já desde 1970, o legislador só dispensava de licenciamento as obras respeitantes a explorações pecuárias, situadas fora das localidades e respectivas zonas de protecção, que consistissem em construções ligeiras de um só piso, quando implantadas a mais de 20 metros das vias públicas (artigo 2.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril).
34. Por outro lado, também a actividade de produção e comércio de leite há largas décadas que subordina a licenciamento específico os alojamentos, sujeitando-os a regras sanitárias e os animais a inspecção (v.g. Decreto-lei n.º 36.973, de 17 de Julho de 1948, capítulos I a IV do Decreto-Lei n.º 47.710, de 18 de Maio de 1967, Decreto Regulamentar n.º7/81, de 31 de Janeiro, Decreto-Lei n.º 138/79, de 18 de Maio, Decreto-Lei n.º 441/86, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 39/2003, de 8 de Março).
35. Quer isto dizer que as explorações ou simples alojamento de bovinos de há muito que não constituem uma actividade inteiramente livre, como se poderia crer.
36. No mais, a actividade destas explorações haveria de encontrar-se devidamente colectada, para efeitos fiscais, para já não falar do seu conhecimento por parte dos serviços de saúde animal. Recordo, nomeadamente, as medidas aplicadas a respeito da prevenção contra a encefalopatia espongiforme, precisamente no caso dos bovinos. Puderam essas medidas ser aplicadas sem se conhecer, ao certo, a população de bovinos e a sua localização?
37. E, em todo o caso, cumpre ao interessado, àquele a quem aproveitar a protecção da existência fazer prova dos seus pressupostos (10). Não é mais do que aplicar a regra geral sobre o ónus da prova no procedimento administrativo (artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo)
III – Considerações finais
38. Em meu entender, o regime de isenção consagrado no artigo 23.º do Decreto-lei n.º 202/2005, de 24 de Novembro, ao afastar a vinculação dos planos directores municipais, atenta contra o disposto no artigo 11.º da Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo (Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto), matéria da reserva relativa da competência da Assembleia da República.
39. A Assembleia da República não criou nenhum regime especial para as explorações de bovinos, nem sequer autorizou o Governo a fazê-lo.
40. O artigo 23.º do diploma em análise, para promover o licenciamento das explorações bovinas irregulares, em certos casos, ultrapassa as opções tomadas pelo plano para determinadas zonas, após ponderação dos interesses conflituantes existentes.
41. Os planos municipais de ordenamento do território estabelecem os parâmetros de ocupação e de utilização dos solos adequados à concretização do modelo do desenvolvimento urbano adoptado, definidos através da classificação e qualificação dos solos (artigos 18.º, n.º 2, alínea b), 70.º, alínea i) e 71.º do Decreto-lei n.º 380/99, de 22 de Setembro).
42. Ao definirem o uso dos solos, estes planos criam na generalidade das pessoas uma expectativa, juridicamente protegida, quanto ao uso de cada parcela do território.
43. A alteração da classificação do solo rural para solo urbano depende da comprovação da respectiva indispensabilidade económica, social e demográfica (artigos 9.º, n.º 3 e 72.º, n.º s 3 e 4 do Decreto-lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, alterado pelo Decreto-lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro).
44. Assim, o pedido de licenciamento das explorações pecuárias tem que ser apreciado à luz do direito vigente, incluindo as normas dos planos directores municipais.
45. As explorações anteriores aos planos devem poder beneficiar do direito anterior, mas apenas se estiverem justificadas de acordo com as normas ao tempo aplicáveis, ou seja, com o mesmo direito anterior que os seus proprietários invocaram. Quando esse for o caso, faz sentido que desse regime beneficiem as obras de reconstrução, remodelação e, nalguns casos, ampliação que sejam necessárias para a utilização autorizada.
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No exercício dos poderes que me são conferidos pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), Recomendo a V. Exa. se digne ponderar as considerações expostas no regime de revisão em curso.
Pela pertinência das questões tratadas para o ordenamento do território, dei conhecimento do teor da presente Recomendação a S. Ex.a. o Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades.
V. Exa., em cumprimento do dever consagrado no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, dignar-se-á informar-me da sequência que o assunto venha a merecer.
O Provedor de Justiça,
(1) Estabelece o regime jurídico do licenciamento das explorações de bovinos
(2) Cite-se, a título de exemplo, o artigo 26.º, alínea b), do Regulamento do Plano Director Municipal de Sátão, publicado no Diário da República, I Série – B, n.º 262, de 9 de Novembro de 1993 que, relativamente ao espaço urbano n.º 1, interdita instalações pecuárias, entre outras, e acrescenta que, quando existentes, deverão ser eliminadas desta área.
(3) A ordem jurídica sanciona com a nulidade os actos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável (artigo 103.º do Decreto-lei n.º 380/99, de 22 de Setembro que desenvolve as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo, alterado pelo Decreto-lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro). Além do mais, as instalações onde se encontram alojados os animais não estão excluídas do regime jurídico do licenciamento municipal de urbanização, o qual também sanciona com nulidade as licenças que violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território (artigo 68.º, alínea a), do Decreto-lei n. º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado pela Lei n.º 60/2007 de 7 de Setembro).
(4) Fernando Alves Correia, Direito do Urbanismo, I, 2001, p. 431.
(5) V Maria José Castanheira Neves/Fernanda Paula Oliveira/Dulce Lopes, Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação Comentado, 2006, pg. 327.
(6) Neste sentido, v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Março de 2005, proc. n.º 291/04, da 2ª Subsecção.
(7) Fernando Alves Correia, ob. cit., p. 432.
(8) No caso concreto, a construção era utilizada para vacaria e destilaria agrícola, pretendendo-se que passasse a ser utilizada, após ampliação, para unidade de destilaria industrial. V Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de Novembro de 2001, processo n.º 47806, da 2ª Subsecção.
(9) Revogadas as suas disposições pelo Decreto-lei n.º 370/99, de 18 de Setembro, este só viria a adquirir exequibilidade com a publicação da Portaria n.º 33/2000.
(10) Fernando Alves Correia, ob. Cit., p. 431.