RECOMENDAÇÃO N.º 2/A/2008
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]



Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão
Proc.º: R-1057/06
Área: A1
Data: 27-02-2008


AssuntoObra de construção – utilização indevida – renúncia ao exercício de competência.


I
Exposição



1. Houve oportunidade de proceder à audição de V. Ex.a. sobre os factos descritos em reclamação que me foi apresentada, por oposição às obras de construção de um edifício, para as quais terão sido emitidos alvarás de licença de construção, em 27.10.2003 e em 31.10.2003, para a primeira e segunda fase, respectivamente.



2. Com três pisos, afirma-se que excede a cércea máxima, e por se encontrar em laboração, no seu interior, uma carpintaria e uma oficina de bordados, opõe-se que é infringido o fim de armazenagem para que foi edificado.



3. Das averiguações empreendidas pela Provedoria de Justiça resulta que a Câmara Municipal presidida por V. Ex.a adoptou já algumas providências. Assim:




a) instaurou procedimento contra-ordenacional e fez aplicar coimas –



a. por início da execução dos trabalhos sem estar deferida a licença municipal,
b. posteriormente, por desconformidade das obras executadas com o projecto de arquitectura
c. e ainda por uso de fracções sem a licença de utilização;


b) determinou o embargo dos trabalhos de construção.


4. Em 12.10.2004, foi requerida autorização para alteração ao uso de armazenagem na cave, para indústria de carpintaria.



5. Este pedido veio a ser indeferido em 24.02.2005, com base em parecer desfavorável da CCDR quanto à autorização de localização. Foi intentada acção judicial, em 24.05.2005, por aquela empresa, com vista à anulação do despacho de indeferimento.



6. Em 13.07.2005, foi notificada aquela empresa com vista a cessar actividade, no prazo de 15 dias, sob pena de ser ordenado o despejo administrativo, acto este que não veio a ser impugnado.



7. Por despacho de 21.03.2005, que não veio a ser impugnado, foi ordenada a cessação de actividade da oficina de bordados, no prazo de 15 dias, por se encontrar em laboração no rés-do-chão e 1.º andar do mesmo edifício sem alvará de licença de utilização, sob pena de ser ordenado o despejo administrativo.



8. Concomitantemente, mas independentemente da ilegalidade de funcionamento das empresas supra-mencionadas, no termo de uma inspecção ordinária ao município de Vila Nova de Famalicão, pela ex-Inspecção-Geral de Administração do Território (IGAT), já se concluíra pela nulidade dos despachos de licenciamento das obras e suas alterações sucessivas, uma vez que infringiam disposições do Plano Director Municipal: cércea excessiva e incompatibilidade do uso de armazém licenciado.



9. Subsequentemente, e depois da participação ao Ministério Público pela ex-IGAT, a fim de ser instaurada acção especial de declaração de nulidade do despacho de licenciamento (e consequentes alterações), em cumulação com o pedido de condenação na reconstituição da situação anterior, a Câmara Municipal aguardava decisão judicial.



10. Após ter sido advertida por este órgão do Estado para a possibilidade de a nulidade ser declarada por qualquer órgão administrativo, nos termos do artigo 134.º do Código de Procedimento Administrativo, a Câmara Municipal declarou, em 07.02.2007, parcialmente nulos os despachos de licenciamento, ordenando a demolição do piso excedentário, convidando a interessada a apresentar requerimento e projecto de legalização, o que terá motivado o arquivamento, pelo Ministério Público, do processo administrativo organizado com base em participação efectuada pela IGAT.



11. A situação parece acautelada do ponto de vista da reposição da legalidade, salvo no que respeita à continuada utilização das fracções autónomas para fins industriais, abstendo-se a Câmara Municipal de, incumprida a ordem de cessação da utilização, proceder ao despejo administrativo, de acordo com os poderes que lhe reserva o disposto no artigo 109.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.



12. A Câmara Municipal, justifica-se com a pendência de acção administrativa em que é pedida a anulação do indeferimento de um pedido de licenciamento de alteração ao uso da fracção usada como carpintaria, embora destinada a armazém.



13. Muito embora reconheça que a propositura da acção não tem efeito suspensivo e que só um dos infractores contestou judicialmente o despacho de indeferimento do pedido de licenciamento optou por esta solução para, alegadamente, evitar o risco de pagar indemnizações que normalmente atingem valores elevados por se tratar de actividades industriais.



14. Opõe que, no passado teve de indemnizar uma empresa cujo estabelecimento fora despejado administrativamente, depois de anulado o acto por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, mas com cujo teor se diz continuar inconformada.



15. Transmite-nos que, por regra, deixou de executar coercivamente as deliberações que tenham sido judicialmente impugnadas, mesmo quando a propositura das acções não tenha efeito suspensivo, até ao trânsito em julgado de decisão que confirme a legalidade do acto. Isto, para obstar ao pagamento de indemnizações que podem atingir valores elevados, tanto mais quando se esteja em face da interrupção de actividades industriais.



16. E, apesar de apenas uma das empresas ter recorrido aos tribunais, entende que a outra, por razões de igualdade, deverá ser objecto do mesmo tratamento.



II
Apreciação



1. Não obstante me parecer injustificada, do ponto de vista jurídico, a equiparação que a Câmara Municipal estabelece entre a situação reclamada e a que fora objecto de decisão pelo Supremo Tribunal Administrativo, não deixarei de a analisar sumariamente.



2. Da análise dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.11.1989 e de 02.02.1993, que suscitam a posição da Câmara Municipal, verifico que, a título de causa de pedir, se argumentava não estar a fracção a ser usada em desconformidade com a licença de utilização.



3. Devido ao particular enquadramento jurídico da situação, nomeadamente, da existência de um regime jurídico excepcional então em vigor – Decreto-Lei n.º 329/81, de 4 de Dezembro – o Supremo Tribunal Administrativo, em sede de recurso, entendeu que a ocupação seria admissível, razão por que não poderia ter sido determinado o despejo administrativo.



4. Para além da situação reclamada perante este órgão de Estado não se enquadrar no âmbito daquele regime jurídico excepcional, entretanto revogado, deve ter-se presente que a acção proposta – por uma, apenas, das sociedades interessadas – tem como pedido, não a ordem de cessação, mas antes o indeferimento do pedido de licenciamento de alteração de uso, praticado em 24.02.2005.



5. Com efeito, é precisamente por reconhecer que se encontra em situação ilegal que a indústria de carpintaria tentou, sem sucesso, legalizar o uso.



6. Do exposto verifica-se que:



a) A indústria de carpintaria impugnou judicialmente o despacho que indeferiu o pedido de alteração de uso;


b) Não foram impugnados judicialmente os despachos que ordenaram a cessação de actividade. Note-se que estes despachos são posteriores à data em que foi intentada a acção judicial pela indústria de carpintaria o que indicia que as infractoras reconhecem esta ordem como legitima, razão pela qual não a atacaram judicialmente;


c) Trata-se de dois actos distintos, com distinta fundamentação e com distintos efeitos ou seja:


I. O despacho impugnado é um acto administrativo de indeferimento de licenciamento que tem por fundamento a falta de preenchimento de requisitos legais e que impede o licenciamento do uso;
II. A ordem de cessação de actividade é uma medida de tutela da legalidade urbanística que tem por fundamento a falta de licença de utilização e que impede o uso.


7. O fundamento da ordem de cessação de actividade – utilização das fracções sem licença de utilização – permanecerá válido mesmo que a infractora obtenha provimento na acção judicial intentada:



a) Em primeiro lugar, o provimento da acção judicial intentada pela indústria de carpintaria não poderá implicar o reconhecimento da legalidade da ocupação ou mesmo, naturalmente, a sua legalização;


b) Em segundo lugar, o provimento da acção judicial intentada por aquela empresa não poderá implicar o deferimento do pedido de licenciamento de alteração de uso na medida em que o indeferimento se sustentou, entre outros motivos, em parecer negativo emitido pela CCDR devido a, entre outros motivos, ruído excessivo, maus cheiros e depósitos de materiais a céu aberto. E para que a Câmara Municipal venha a licenciar a alteração de uso é necessário que a CCDR venha, previamente, a alterar a sua posição, que a Câmara Municipal não encontre qualquer outro fundamento legal para o indeferimento e que o Ministério da Economia autorize a laboração da indústria. Pelo que a situação de ilegalidade perdurará até que o licenciamento venha a ser finalmente deferido, situação que pode nem ocorrer.


c) Em terceiro lugar, a ilegalidade da utilização, sempre existiu, na medida em que esta apenas poderia ter início depois de deferida nova licença de utilização: nunca antes de concluído o procedimento de legalização. A legislação não permite o funcionamento do estabelecimento antes do licenciamento pelo que a laboração da empresa era ilegal à data em que foi ordenada a cessação da actividade, é ilegal neste momento e continuará ilegal mesmo que o tribunal venha a dar razão aos reclamantes.



8. Deste modo, a acção judicial intentada não parece precludir o interesse na execução das ordens de cessação de actividade emitidas pela Câmara Municipal, as quais se encontram consolidadas na ordem jurídica por não terem sido judicialmente impugnadas.



9. De resto, apenas uma das infractoras tentou legitimar a ocupação ilegal mediante a apresentação de pedido de alteração de uso. A outra infractora nem sequer tentou legalizar a situação e muito menos impugnou judicialmente o despacho que ordenou a cessação da actividade.



10. Optando por permanecer em situação de total ilegalidade, acobertou-se, no fundo, na inércia da Câmara Municipal em promover o despejo administrativo. Isto com grave prejuízo para o interesse público tutelado pelo licenciamento de actividades industriais e dos terceiros lesados que continuam a sofrer os incómodos causados pela perpetuação destas situações, nomeadamente ao nível do ruído.



11. De facto, mesmo que a acção judicial venha a obter provimento a sentença judicial proferida neste processo não será aplicável à outra empresa que, na falta de execução do despejo administrativo, permanecerá impunemente a laborar. E, note-se, nem mesmo a aplicação de coima de 500 € incitou a infractora a tentar regularizar a situação.



12. Por estas razões, nenhuma das infractoras terá fundamento para apresentar pedido de indemnização pela ordem de cessação porquanto se encontram em laboração ilegal.



13. E como já acima se fez notar, a legalização da situação não está dependente apenas da Câmara mas também de entidades terceiras.



14. Acresce que o próprio uso de armazenagem que se encontra licenciado para o edifício ocupado ilegalmente, é considerado pela ex-IGAT como motivo de nulidade do licenciamento devido a incompatibilidade do uso de armazenagem com o disposto no Plano Director Municipal.



15. Trata-se, em concreto, da inexistência de percurso adequado de ligação à rede rodoviária nacional ou municipal por não dispor dos perfis mínimos adequados.



16. Esta situação não terá sido conhecida pelo Ministério Público. O arquivamento do processo que teve origem na queixa da IGAT terá sido motivado apenas pela declaração oficiosa da Câmara Municipal da nulidade parcial do pedido de licenciamento devido ao número excessivo de pisos, como já foi acima referenciado. O arquivamento do processo não preclude a possibilidade do uso indevidamente licenciado ser objecto de nova apreciação por parte do Ministério Público ou mesmo oficiosamente pelo tribunal onde se encontra em apreciação a acção judicial instaurada pela indústria de carpintaria na medida em que se trata de um caso de nulidade e, portanto, de conhecimento oficioso.



17. A ordem de cessação da utilização é de 13.07.2005, sem que tenha sido impugnada Por isso, encontra-se absolutamente consolidada na ordem jurídica, o que não vejo como possa suscitar os receios que a Câmara Municipal me transmitiu.



18. O acto administrativo que defere a licença de utilização, destina-se a conferir o cumprimento das regras sanitárias, de segurança contra os riscos de incêndio e de salvaguarda do ambiente (artigo 62.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação).



19. Como já foi observado, anteriormente, o facto de se tolerar a laboração destes estabelecimentos, apesar de indeferido o licenciamento, fragiliza o interesse público, diminui a autoridade legítima dos poderes municipais e cria na comunidade uma convicção de impunidade que, a todos os títulos, é indesejável.



20. Por outro lado, ordenada a cessação da utilização, sem que tenha sido cumprida, tal facto deveria também ter sido participado ao Ministério Público, para efeitos do art. 100.º, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.



21. De resto, o próprio licenciamento das obras de construção do edifício mostra-se nulo, por violação do Plano Director Municipal (artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação), o que, em todo o caso, impede a alteração do uso a coberto de um acto válido.



22. Em face do exposto, não parece que deva a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão consentir em maiores dilações quanto à pronta cessação da utilização.



23. É que, para mais, a posição da Câmara Municipal, abstendo-se de lançar mão do despejo administrativo colide, não apenas com os princípios da prossecução do interesse público e da legalidade – consagrados nos artigos 3.º e 4.º do Código de Procedimento Administrativo – como também representa uma forma indevida de renúncia ao exercício de uma competência que o legislador lhe confere, em ordem à reposição da legalidade, e com evidente prejuízo para a salubridade e segurança das edificações.



24. É por isso que a competência atribuída a um órgão não compreende a faculdade de esse mesmo órgão renunciar ao seu exercício. Os poderes públicos são também deveres.



25. A irrenunciabilidade, expressa ou tácita, à titularidade e ao exercício da competência é corolário do princípio da legalidade da competência. Neste sentido, afirma-se que a competência é imodificável, não podendo a Administração Pública alterar o conteúdo ou a repartição da competência estabelecidas por lei.



26. A renúncia compromete a susceptibilidade de execução coerciva da ordem de despejo, garantida pelo princípio da execução prévia dos actos administrativos que se encontra consubstanciado no art. 149.º, do Código de Procedimento Administrativo.



27. Nos termos desta disposição, os actos administrativos são executórios logo que eficazes, o que significa que não sendo os actos cumpridos voluntariamente pelos seus destinatários, podem ser impostos coercivamente por via administrativa, antes mesmo que qualquer tribunal se pronuncie sobre a sua legalidade.



28. Os particulares atingidos nos seus direitos e interesses têm como garantia a acção ex post factum.



29. De outro modo, deixaríamos de ter uma Administração de tipo executivo para passarmos a ter uma administração de tipo judiciária, ou seja, abandonar-se-iam as prerrogativas de autotutela executiva em favor de um sistema em que se teria de aguardar por uma decisão judicial para que as decisões administrativas pudessem ser executadas coactivamente.



30. Sem prejuízo de se reconhecer a margem de apreciação dos órgãos municipais quanto ao momento oportuno para executarem coercivamente um despejo administrativo, o que não pode ser deliberado, pura e simplesmente, é a recusa ao exercício de uma competência, como decorre da posição que me foi transmitida.



III
Conclusões



Assim, nos termos do disposto no artigo 20º, n.º1, alínea a), da Lei n.º9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), e considerando as razões precedentemente expostas, recomendo à Câmara Municipal presidida por V.Ex.a que promova o despejo administrativo das fracções autónomas usadas indevidamente no edifício identificado, como condição para alcançar a reposição da legalidade urbanística.



Dignar-se-á V.Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a posição que vier a ser adoptada.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues