RECOMENDAÇÃO N.º 1/B2008
[art.º 20.º, n.º1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia
Proc.º: R-4356/07
Área: A6
Data: 21-01-2008


Assunto: Taxa municipal de acesso de veículos através de passeio ou outro espaço público especialmente destinado a peões ou velocípedes.




1. O actual Regulamento de Taxas e Outras Receitas do Município de Vila Nova de Gaia prevê, no respectivo art.º 25.º e no art.º 53.º da Tabela pelo mesmo aprovada, o pagamento de uma taxa pelo acesso de veículos a garagens, pátios, armazéns, oficinas de reparação automóvel, parques de estacionamento, stand de automóveis, estações de serviço, instalações fabris e outros locais privados, através de passeio ou outro espaço público especialmente destinado a peões ou velocípedes.



O mencionado art.º 53.º da Tabela estabelece um conjunto de valores a pagar, anualmente e por acesso, a título da referida taxa, em função designadamente do tipo de afectação do edifício onde se insere(m) o(s) acesso(s) objecto de tributação.



A iniciativa de me dirigir a V.ª Ex.ª a propósito da mencionada taxa foi motivada por várias queixas que recebi de munícipes que contestam, não só aspectos que se relacionam com a aplicação às situações concretas das regras contidas no art.º 53.º da Tabela, a que adiante voltarei, como a própria razão de ser ou finalidade de um tributo com estas características.



2. Antes de mais, não desconheço naturalmente que deverá a autarquia adaptar, se for caso disso, até final de 2008, o seu Regulamento de Taxas ao regime geral das taxas das autarquias locais, aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro (cf. art.º 17.º), devendo a mencionada taxa passar, também ela, pelo crivo dessas novas regras.



Designadamente deverão os tributos em causa obedecer aos princípios da equivalência jurídica e da justa repartição dos encargos públicos, tal como resultam explicitados nos art.ºs 4.º e 5.º da mesma Lei, bem como deverá o regulamento que os cria conter “a fundamentação económico-financeira relativa ao valor das taxas, designadamente os custos directos e indirectos, os encargos financeiros, amortizações e futuros investimentos realizados ou a realizar pela autarquia local” (art.º 8.º, n.º 2, alínea c), do diploma em apreço).



Tal obrigatoriedade legal levaria sempre a autarquia a cumprir, até ao termo do prazo definido, o exercício, quanto à taxa em causa, imposto pelo referido art. 17.º, o que poderia, por si, levar a alterações na concepção e aplicação da mesma. Aliás, de acordo com uma Informação da Direcção de Assuntos Jurídicos dessa Câmara que oportunamente me foi enviada, e que aproveito para agradecer, os trabalhos tendentes à adaptação do Regulamento à Lei n.º 53-E/2006 estarão já em curso.



Apesar disso, não posso deixar de transmitir neste momento a V.ª Ex.ª as preocupações que a taxa em referência, tal como está configurada actualmente e como é aplicada concretamente, me sugere, seja do ponto de vista da sua conformidade à Constituição, seja até do ponto de vista do mérito da solução que a enquadra. É o que farei de seguida.



3. De acordo com a mesma Informação dessa Câmara Municipal a que acima fiz referência, “o princípio subjacente à aplicação da taxa prevista no Regulamento Municipal de Taxas e Outras Receitas do Município de Vila Nova de Gaia é o da possibilidade de utilização individualizada de um bem do domínio público, ou a disponibilidade dessa utilização, para um fim diverso e ou mais intensivo daquele a que tal bem está destinado, o que leva ao seu mais rápido desgaste. Isto é, trata-se de um uso comum extraordinário do referido bem dominial, resultando para o respectivo utilizador um uso mais vantajoso desse bem comparativamente com os restantes particulares”.



Como V.ª Ex.ª bem sabe, desde logo a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, ensaia uma distinção entre os vários tributos, adiantando que “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património”, “as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares”, mais explicitando que “as contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade são consideradas impostos”.



Não entrando, para já, em considerações doutrinárias e jurisprudencias sobre a referida distinção, que serão chamadas mais tarde à colação, a caracterização, aliás feita pela própria autarquia, do tributo que aqui nos ocupa, associada à aplicação concreta das regras regulamentares que o enquadram, levam-me a duvidar de que o mesmo possa, tal como se encontra neste momento conformado e é aplicado às situações concretas, ser qualificado como uma taxa e, consequentemente, a ter sérias reservas sobre a respectiva constitucionalidade face aos art.ºs 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa. De acordo com estes normativos constitucionais, a criação de impostos – ou, nos termos mais à frente explicitados, de outras figuras tributárias que devam, em termos jurídico-constitucionais, ser tratadas como impostos –, é matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo os mesmos ser criados por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo por aquela autorizado, não podendo ninguém ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos moldes referidos.



4. Assim, diga-se que a taxa que motiva esta minha iniciativa junto de V.ª Ex.ª será cobrada a munícipes que, embora moradores em edifícios com acessos a garagens ou outros locais privados que possam servir de garagem, não utilizarão pura e simplesmente esses acessos, por um conjunto variado de razões, desde logo pelo simples facto de não terem automóvel. Neste caso, o valor cobrado apenas pode ter fundamento numa utilização potencial do bem público, mas eventualmente nunca verificada.



A mesma taxa será, por outro lado, cobrada em situações em que o eventual acesso aos locais referidos não se processa através de uma rampa, por inexistência de passeio ou de outro espaço público especialmente destinado a peões ou velocípedes. Nestas situações, que tendencialmente ocorrerão em zonas menos populosas do concelho, a estrada prolongar-se-á até ao próprio acesso, não ocorrendo desgaste do passeio ou de outro espaço público especialmente destinado a peões ou velocípedes, desde logo por inexistência destes.



Nos dois tipos de situações mencionados não se vislumbra contraprestação efectiva pelo pagamento do tributo, no primeiro caso não se verificando pura e simplesmente a utilização – apenas potencial – do domínio público, no segundo havendo, quando muito, a utilização de um bem do domínio público diverso do passeio, concretamente a via pública, em termos que são inteiramente indistintos da normal circulação de veículos, esta não sujeita a qualquer taxa.



5. Em segundo lugar, também o princípio da proporcionalidade, que deve enquadrar um tributo que não seja considerado imposto, como a taxa, no sentido de dever o valor a pagar a título da mesma basear-se no critério do custo do serviço prestado ou do bem utilizado, me parece comprometido em algumas situações de aplicação concreta das regras regulamentares aqui em apreciação.



Apenas a título de exemplo, no caso das habitações multifamiliares será, para efeitos de aplicação do Regulamento, indiferente que um mesmo acesso seja utilizado por vinte ou duzentos carros, sendo certo que o desgaste do passeio e a necessária reparação do mesmo, por parte desse órgão autárquico, que motivará a referida tributação, não serão naturalmente os mesmos.



Também não será certamente igual, por exemplo, o desgaste de um acesso construído com cimento face a um outro feito de calçada, não distinguindo o Regulamento as taxas em função dos materiais com que os acessos são construídos, logo do custo de reparação dos mesmos ou mesmo da própria susceptibilidade ao uso.



Acresce que, em alguns casos, a conservação do acesso, muitas vezes construído pelo proprietário da habitação, será feita a expensas deste, não tendo a autarquia custos com a respectiva manutenção.



A inexistência de uma contraprestação específica do valor a pagar, por um lado, e a não verificação de proporcionalidade na tributação, por outro, nos termos acima referidos, comprometem a caracterização da figura de que nos ocupamos como taxa, fazendo-a aproximar mais de um imposto ou, como se disse, de uma outra figura tributária que como tal deva ser tratada em termos jurídico-constitucionais – v.g., as contribuições especiais a favor de entidades públicas de natureza contributiva, a que se refere o preceito da Lei Geral Tributária citado (1).



6. É já abundante, como V.ª Ex.ª bem sabe, a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a distinção entre as figuras da taxa e do imposto. Concretamente num recente Acórdão – n.º 68/2007, publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 5 de Março de 2007 –, o Tribunal Constitucional faz, com grande utilidade, uma resenha da doutrina e da jurisprudência daquele Tribunal sobre a matéria.



Aí pode ler-se, apelando-se à fundamentação de vários arestos anteriores àquele:




“Como se sabe, existe uma abundante jurisprudência constitucional sobre a distinção entre imposto e taxa (…). Para extremar a noção de ‘imposto’ constitucionalmente relevante da de ‘taxa’, o Tribunal tem-se socorrido essencialmente de um critério que pode qualificar-se como ‘estrutural’, porque assente na ‘unilateralidade’ dos impostos (…), admitindo ainda, porém, como factor adicional de ponderação, que se tome em consideração a ‘razão de ser ou objectivo das receitas em causa’, quer para recusar a certas receitas o carácter de imposto, quer como argumento ponderoso para afastar o carácter de taxa de uma dada prestação pecuniária coactiva (…).


(…)


Tanto na jurisprudência uniforme do Tribunal, como na orientação unânime da doutrina, um elemento ou pressuposto estrutural há-de, desde logo e necessariamente, verificar-se, para que determinado tributo se possa qualificar como uma ‘taxa’, qual seja o da sua ‘bilateralidade’: traduz-se esta no facto de ao seu pagamento corresponder uma certa ‘contraprestação’ específica, por parte do Estado (ou de outra entidade pública). Se tal não acontecer, teremos um ‘imposto’ (ou uma figura tributária que, do ponto de vista constitucional, deve, pelo menos, ser tratada como tal). (…) Se se não divisarem características de onde decorra a ‘bilateralidade’ da imposição pecuniária, nada mais será preciso indagar para firmar a conclusão de harmonia com a qual é de arredar a qualificação dessa imposição como ‘taxa’.


(…)


Não é suficiente para pôr em causa o carácter sinalagmático do tributo que não exista uma equivalência rigorosa de valor entre ambos, ou qualquer desproporção entre a quantia a pagar e o valor do serviço prestado – seja com o seu custo, seja com a sua utilidade para o particular. Mesmo a falta de equivalência ou essa desproporção não afecta a relação sinalagmática existente e a bilateralidade da taxa. (…) É, porém, necessário que a causa e justificação do tributo possa ainda encontrar-se, materialmente, no serviço recebido pelo utente, pelo que uma desproporção manifesta ou flagrante com o custo do serviço e com a sua utilidade para tal utente afecta claramente a tal relação sinalagmática que a taxa pressupõe. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 640/95 (…) o Tribunal Constitucional questionou-se se ‘num caso de uma taxa de valor manifestamente desproporcionado, completamente alheio ao custo do serviço prestado, não deverá entender-se que tal taxa há-de ser tratada, de um ponto de vista jurídico-constitucional, como um verdadeiro imposto, de tal forma que tenha de ser o órgão parlamentar a decidir sobre o seu quantum’.


(…)


Tal desproporção intolerável, ou montante manifestamente excessivo, da quantia pode resultar, designadamente, de os critérios de determinação desta serem inteiramente alheios ao montante desse custo do serviço – ou, como se admitiu no Acórdão n.º 115/2002, também em relação à sua utilidade – e relevará, pois, em primeira linha, em sede de inconstitucionalidade orgânica, quando o tributo não tenha sido criado (ou autorizado) por lei parlamentar (podendo deixar-se em aberto a questão de saber se, qualificado o tributo como taxa, existirá ainda espaço para intervenção autónoma do princípio da proporcionalidade, em termos de a sua violação determinar uma inconstitucionalidade material)”.


A propósito da fixação do valor das taxas escreve-se ainda no mesmo Acórdão:




“Pode dizer-se que, na fundamentação do citado Acórdão n.º 115/2002 quanto ao montante da taxa a pagar, se refere, como critério decisivo para a noção de taxa, a relação entre esse montante e a presumível utilidade, para o particular, do bem ou serviço, e não já apenas a relação entre aquele e o custo – mesmo que apenas em termos de aquele não ser ‘totalmente alheio’ a este. Afirma-se, assim, que a ‘lógica da fixação da taxa […] é ditada através da utilidade’ que do serviço se retira, não se estando perante uma ‘concepção parametrizada apenas pela equivalência ao valor de custo do serviço prestado, mesmo que flexivelmente entendida’.


Por outras palavras, o fundamento para a delimitação da noção de taxa, entendida como preço de um bem ou serviço público não é apenas um ‘princípio de cobertura de custos’ (…), para passar a ser um ‘princípio de equivalência’ (…) com a utilidade do bem ou serviço.


Ora, entende-se que a adopção deste critério de equivalência não é, em tese geral, constitucionalmente censurável, não existindo qualquer vinculação constitucional à observância de um estrito princípio de cobertura de custos. Não se exclui, pois, que na fixação do quantum de uma taxa possa ter-se em conta a utilidade que a pessoa obrigada ao seu pagamento retira (…).


Não pode, porém, aceitar-se que se submeta ao regime constitucional da taxa uma figura em que tal utilidade presumível é o único critério utilizado para a sua determinação, designadamente, quando se trata de serviços de utilização necessária (…)”.


7. Finalmente, e não cabendo em princípio ao Provedor de Justiça tecer considerações sobre o mérito das soluções normativas, não posso deixar de transmitir a V.ª Ex.ª a estranheza que de alguma forma me causa a ideia subjacente à concepção da referida taxa.



De facto, nos casos de edifícios destinados à habitação, os acessos, normalmente as garagens, são utilizados no dia-a-dia dos munícipes para a concretização da sua vida quotidiana, com isto querendo dizer que não são tais acessos utilizados para a realização de uma actividade especial, lucrativa ou não, no sentido de não comum a todas as pessoas (ao contrário do que acontece noutros casos de tributação, como os que têm por objecto acessos a stands de automóveis ou a instalações fabris).



Tais acessos às garagens de edifícios destinados à habitação são utilizados diariamente pelos cidadãos para se deslocarem nas suas actividades normais do dia-a-dia, comuns a qualquer pessoa, isto é, para irem trabalhar, estudar, às compras, ao médico, etc., sendo certo que os proprietários dos veículos não podem estacioná-los – com excepção dos locais especificamente autorizados para o efeito, e a maior parte das vezes pagando, aqui sim, uma verdadeira taxa – em espaços do domínio público, isto é, na rua.



Tendo presente a escassez do espaço para estacionamento e as vantagens na guarda de veículos no interior dos edifícios, será certamente do interesse do Município que existam garagens privadas que permitam o maior número possível de estacionamentos fora da via pública.



De alguma forma a ideia subjacente à tributação que envolve a taxa de acesso é quase semelhante à que poderia justificar uma hipotética tributação do desgaste dos passeios pelos peões ou, permitindo-me utilizar uma imagem mais extremada, uma hipotética tributação das pessoas pelo simples facto de saírem à rua e a utilizarem.



8. Assim sendo, permita-me que recomende a V.ª Ex.ª, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,







a) Que seja suspensa a cobrança da taxa de acesso a que aludem os art.ºs 25.º do Regulamento de Taxas e Outras Receitas do Município de Vila Nova de Gaia, e 53.º da respectiva Tabela, até que sejam feitos os estudos que me parecem necessários para uma eventual reformulação daquele tributo. Essa análise pode naturalmente ser realizada no âmbito dos trabalhos, ao que parece já em curso, de adaptação do Regulamento impostos pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro;


b) Que essa reformulação, entre outras questões merecedoras de reflexão, algumas das quais tive oportunidade de deixar já acima expostas, designadamente afaste da tributação as situações, relativas a edifícios destinados à habitação, em que o acesso não se processa através de qualquer passeio ou outro espaço público especialmente destinado a peões ou velocípedes, e também as situações em que a conservação do acesso é feita a expensas do proprietário da habitação, não se verificando gastos municipais na respectiva manutenção.








Estando seguro de que o que fica acima exposto merecerá a melhor atenção de V.ª Ex.ª, aguardando naturalmente por uma resposta a esta minha comunicação.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 


Notas de rodapé:


(1) De acordo com alguma doutrina – por exemplo, J. J. Gomes Canotilho, em parecer de que tive conhecimento – a ausência, até ao momento, de um regime geral das contribuições financeiras a favor das entidades públicas, que, nos termos da alínea i) do n.º 1 do art.º 165.º da Constituição integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, faz com que um tributo desta natureza que não possa ser reconduzido ao conceito de taxa – uma contribuição especial com natureza unilateral ou contributiva –, deva ser criado nos moldes constitucionais previstos para os impostos, isto é, com obediência ao princípio da legalidade fiscal. Adianta o autor naquele parecer: “Todavia, entendemos que poderá admitir-se a conformidade constitucional das normas que instituem estes tributos, mesmo na ausência da lei da Assembleia da República, nos casos em que, em concreto, os mesmos possam ser reconduzidos ao regime jurídico das taxas. Referimo-nos à possibilidade de recortar, na relação jurídico-tributária em causa, uma “bilateralidade concretizável”, isto é, demonstrar a natureza retributiva do tributo suportado pelo sujeito passivo, através da verificação em concreto de uma relação de equivalência entre o valor pago e a contraprestação recebida. Referimo-nos, claro está, a situações em que a liquidação do tributo assente em regras que permitam diferenciar o montante a pagar por cada regulado, quer com base num critério de benefício auferido, quer, subsidiariamente, num critério de maior despesa provocada”.