RECOMENDAÇÃO N.º 10/A/2002
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)
Entidade visada: Director de Serviços de Reembolsos do IVA – Divisão II
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-2069/02 (Aç)
Data: 2002/11/04
Assunto: Reembolso do IVA. Indeferimento.
I – INTRODUÇÃO
1. A XXXX da Sé Catedral de Angra do Heroísmo pediu o reembolso de IVA pago em virtude da aquisição de um “sistema de amplificação sonora expressamente construído para aplicação no culto religioso”, o qual veio a ser indeferido, conforme notificação realizada a coberto do ofício n.º 01001468186, de 11 de Dezembro de 2001, fundamentada, a contrario, na disposição legal vertida na alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, de 13 de Janeiro, uma vez que se trataria de “objectos não destinados única e exclusivamente ao culto religioso – al. a) art. 1º“.
2. Tendo sido pedida a concretização da fundamentação, o ofício n.º 147558, de 28/08/2002, da Direcção de Serviços de Reembolsos do IVA, veio acrescentar que, não obstante o destino do bem em apreço (sistema de amplificação sonora da XXXX da Sé Catedral de Angra do Heroísmo) nunca ter sido posto em causa, não bastava colocar um objecto dentro de uma Igreja para que ele pudesse ser considerado “objecto que se destina única e exclusivamente ao culto religioso” e que somente teriam aquele destino (culto religioso), por exemplo, os cálices, paramentos, imagens, altares e custódias. Deste modo, era explicado que, como sempre tinha vindo a ser feito, somente eram atendidas as especificações próprias dos objectos em si, e nunca o destino efectivo que aos mesmos era dado.
II – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
3. Identificada a norma legal cuja aplicação é suscitada – o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, de 13 de Janeiro, que dispõe que “o Serviço de Administração do IVA procederá à restituição do imposto sobre o valor acrescentado correspondente às aquisições e importações efectuadas por instituições da Igreja Católica – (…) fábricas da Igreja (…) – relativas a: [alínea a)] objectos que se destinem única e exclusivamente ao culto religioso (…)” – e na medida em que foi aquela disposição que fundamentou, de direito, o indeferimento reclamado, impor-se-á a ponderação dos requisitos ali previstos na averiguação da legalidade da decisão posta em crise.
4. Não obstante, começar-se-á por referir que a matéria da factualidade apurada não merecerá especial desenvolvimento, desde logo pela circunstância – que não pode deixar de ser destacada e que se revelará determinante nas conclusões finais – de os Serviços de Reembolso do IVA a aceitarem tranquilamente (cf. ofício supra citado). Assim sendo, é pacífico que a instalação em causa, para além de destinar-se, segundo as especificações constantes da documentação do fabricante, somente a Igrejas, está efectivamente instalada – de forma fixa e permanente – na Catedral de Angra do Heroísmo e é usada – unicamente – para amplificar o som durante cerimónias religiosas.
5. Não sendo o destino efectivo do bem o motivo da controvérsia, a questão em debate parece situar-se, apenas, no sentido que deve ser dado à expressão “objecto (…) se destina única e exclusivamente ao culto religioso“. Neste domínio interpretativo, os Serviços de Reembolso do IVA cuidaram até de apresentar exemplos de objectos que entendem ser destinados única e exclusivamente ao culto religioso, nos seguintes termos: “os cálices, paramentos, imagens, altares e custódias“. Computados estes esclarecimentos prestados a este órgão do Estado, não é abusivo concluir ser defendida a existência de objectos que, pela sua natureza intrínseca, se destinam única e exclusivamente ao culto religioso; e que, diferentemente, outros objectos não se destinam única e exclusivamente ao culto religioso e, pese embora poderem ser usados no culto, não deverão dar lugar à restituição do IVA. Em conformidade, foi mantido o indeferimento porque, alegadamente, não se verificou que o “objecto (…) se [destinava] única e exclusivamente ao culto religioso“.
6. Temos então que, se é aceite – e expressamente reconhecido pelos Serviços de Reembolsos do IVA – que a instalação em causa não pode ser usada senão para o culto religioso, o indeferimento reclamado apenas pode encontrar fundamento numa pretensa intenção de Legislador, certamente não vertida correctamente no texto legal, de afastar da restituição determinadas categorias de bens que, pela sua natureza, não se destinam (única e exclusivamente) ao culto religioso. Contudo, neste aspecto particular, o entendimento seguido pelos Serviços de Reembolsos do IVA acaba, até, por contrariar o elemento literal da norma, na medida em que a expressão “objectos que se destinem ao culto religioso” é interpretada como significando “objectos que só podem destinar-se ao culto religioso”. Ora, uma vez que estas duas expressões não são equivalentes, a posição adoptada pelos Serviços do IVA está próxima de uma interpretação que, mais do que restritiva, é efectivamente correctiva. Sendo consabido que o ordenamento jurídico português não permite, em absoluto, que o intérprete conclua que “a razão da lei será contrária a interesses que se pretendem superiores” (OLIVEIRA ASCENÇÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, F.C.Gulbenkian, Lisboa, 1983, p.330) e que, como tal, a “interpretação correctiva é inadmissível” (ibidem, p.331), permitir-me-á V.Ex.ª que eu procure buscar a correcta aplicação da lei, nos exactos termos suscitados pela alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, de 13 de Janeiro.
7. Para além da minha já manifestada discordância interpretativa relativamente ao entendimento subjacente à decisão reclamada, não posso deixar de apontar, também, uma contradição insanável que julgo estar encerrada na fundamentação do indeferimento aqui tratado em concreto e que resulta, em especial, da exemplificação que os Serviços de Reembolso do IVA quiseram fazer dos objectos que apenas se destinariam ao culto religioso (os cálices, paramentos, imagens, altares e custódias). Com efeito, a menção implícita ao acolhimento dos pedidos de reembolso do IVA relativos à aquisição daqueles objectos evidencia, de forma notória, a incongruência – não já só de direito mas, agora, igualmente de facto – da fundamentação das decisões. Socorrendo-me de um dos exemplos apresentados, julgo ser útil confrontar o tratamento que é dado à aquisição de uma qualidade de objectos que os Serviços de Reembolso do IVA entendem como destinada única e exclusivamente ao culto religioso (os cálices) com a posição tomada relativamente à aparelhagem de som da Igreja da Sé. Verifico, então, que, sendo verdade que mesmo um “sistema de amplificação sonora expressamente construído para aplicação no culto religioso” pode ser usado fora do culto religioso, a aceitação do mesmo silogismo lógico (nem todos os bens utilizados no culto só a ele se destinam e, por esse facto, não dão lugar à restituição do IVA) imporia a conclusão de que a aquisição de um cálice (ou uma imagem ou qualquer outro bem que, em abstracto, pode ser usado fora do culto religioso) também não deveria dar lugar ao reembolso do IVA. De facto, se, em abstracto, todos aqueles podem ser usados fora do culto religioso, então um cálice (do latim, calice-, «copo pequeno») é, por maioria de razão, um objecto que, como resulta da sua natureza intrínseca, foi especialmente concebido para uma utilização fora do culto religioso. Conhecendo o entendimento propugnado pelos Serviços de Reembolso do IVA sobre a interpretação do disposto na alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, esperar-se-ia, como corolário lógico, que não houvesse lugar, em nenhuma daquelas situações, à restituição do IVA.
8. Permitir-me-á V.Ex.ª que, continuando ainda no exemplo que os Serviços de Reembolso do IVA quiseram dar, seja igualmente referida outra incongruência lógica resultante da interpretação que motivou o indeferimento: deve devolver-se o IVA relativo à aquisição de um cálice que, para além do culto, é susceptível de ser também utilizado em exposições de arte sacra mas não é de reembolsar o IVA relativo a uma instalação sonora que, por estar fixada permanentemente nas paredes da Sé Catedral de Angra do Heroísmo, não pode ser utilizada senão para o culto religioso. Mais: como V.Ex.ª não deixará de reconhecer, nunca uma cerimónia de culto religioso deixaria de fazer-se por falta de um cálice (ou de uma imagem ou, mesmo, de um altar) mas, ao contrário, poderia ser de todo inviabilizada por ausência de amplificação de som num recinto amplo (como é o da Igreja da Sé de Angra do Heroísmo). Não pode evitar-se, aqui, uma interrogação: que sentido faz uma interpretação que, como resulta do exemplo atrás referido, não permite que o único dos bens que só é utilizado na Igreja e nela ela é indispensável (sistema de amplificação de som) seja abrangido pela previsão legal de reembolso mas que, ao mesmo tempo, autoriza que um bem potencialmente usado fora do culto, e que para ele é dispensável, beneficie sempre da restituição do IVA?
9. Como é bom de ver, não posso deixar de concluir pela volatilidade da argumentação que me foi apresentada.
10. Chegados aqui, importa adiantar o entendimento que julgo consentâneo com a letra e com o espírito da alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, de 13 de Janeiro, no sentido de que não são de atender os pedidos de restituição relativos a bens que, não obstante parecerem ir ser utilizados no culto religioso, o não são, de facto. Neste ponto, dir-se-á que a minha posição é, indubitavelmente, ainda mais restrita do que a dos Serviços de Reembolso do IVA. Do mesmo passo, creio que só devem ser atendidos os pedidos relativos a objectos que, na verdade, apenas são utilizados no culto religioso. Também neste domínio, julgo poder concluir que o meu entendimento é substancialmente menos abrangente do que o desses Serviços. Queira V.Ex.ª notar que a minha posição, não só não significa qualquer alargamento indiscriminado das situações que devem dar lugar à restituição do IVA como, antes pelo contrário, representa uma previsível diminuição do universo de bens efectivamente abrangido pelos reembolsos de IVA. Defendo, então, que os objectos destinados única e exclusivamente ao culto religioso serão, para efeitos do disposto na alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, unicamente aqueles que, tendo essa virtualidade, em abstracto, têm também esse uso (e somente esse), em concreto.
11. De facto, o raciocínio consubstanciado nas afirmações que atrás expendi sustenta a afirmação de que as decisões relativas à restituição do imposto sobre o valor acrescentado correspondente às aquisições e importações efectuadas por instituições da Igreja Católica, devem partir da ponderação, sucessiva mas conjugada, de cada um dos dois requisitos que creio serem impostos pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, de 13 de Janeiro, a saber:
a) primeiro, a verificação de que os objectos são susceptíveis, em abstracto, de utilização no culto religioso; |
12. Finalmente, julgo dever expressar a minha convicção de que este entendimento é, até, o único susceptível de permitir, por um lado, que seja sempre respeitada a intenção do Legislador em todas as situações e, por outro, que não seja permitida, nem a restituição relativa a aquisições de bens que, posteriormente, venham a ser utilizados fora do culto nem, tão pouco, o indeferimento de pedidos relativos a objectos que se destinam unicamente a propiciar o normal desenvolvimento do culto religioso. Esta última situação é a que, no caso em apreço, julgo estar a inquinar a decisão relativa ao pedido da XXXX da Sé Catedral de Angra do Heroísmo.
III – CONCLUSÕES
13. Em face do que deixei exposto, resta-me concluir que devem ser reequacionados os critérios de apreciação dos pedidos de restituição do IVA relativos à aquisição de bens destinados única e exclusivamente ao culto religioso, no sentido de serem contemplados unicamente os objectos que, para além de terem essa hipotética virtualidade, tenham também essa utilização concreta, e nenhuma outra.
14. Do mesmo passo, entendo não existir justificação plausível para que não se proceda à restituição, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, de 13 de Janeiro, do IVA relativo à aquisição do sistema de amplificação sonora da XXXX da Sé Catedral de Angra do Heroísmo, exactamente porquanto a aparelhagem de som, não só é susceptível de utilização no culto religioso (como se verifica sempre que a Assembleia se reúne naquela Igreja) como, para mais, não pode ter qualquer outro uso (uma vez que está fixada, com carácter permanente e definitivo, nas paredes da Sé Catedral de Angra do Heroísmo).
15. Pelas razões atrás aduzidas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo:
A. Que as decisões relativas à restituição do IVA correspondente às aquisições e importações efectuadas por instituições da Igreja Católica, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 20/90, de 13 de Janeiro, resultem, não só da verificação de que os objectos são susceptíveis, em abstracto, de utilização no culto religioso como, também, da constatação de que eles apenas nele são utilizados; B. Que, em conformidade com este entendimento, se proceda à restituição do IVA relativo à aquisição do sistema de amplificação sonora da XXXX da Sé Catedral de Angra do Heroísmo. |
16. Permito-me, ainda, lembrar V.Ex.ª da circunstância de a formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que seja comunicada a este órgão do Estado, de forma fundamentada, a posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues