RECOMENDAÇÃO N.º 6/A/2002
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Sua Excelência o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-2170/01
Data: 2002/05/23


Assunto: Reclamação apresentada na Provedoria de Justiça pelo Senhor ….. Condições de acesso ao crédito PAR – Programa de Financiamento a Arrendatários Rurais.



I
– Enunciado –


1. Foi apresentada uma queixa na Provedoria de Justiça pelo Reclamante supra identificado, expondo uma situação relativa ao enquadramento legal do leasing de imóveis no âmbito dos programas de apoio dirigidos especialmente aos arrendatários rurais.


2. Em causa está o entendimento defendido pelo Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas, no sentido de não considerar possível equiparar a arrendatário rural, para efeitos de acesso ao PAR – Programa de Financiamento a Arrendatários Rurais, criado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 159/80, de 15 de Abril, os locatários no âmbito de um contrato de locação financeira, como será o caso do Reclamante.


3. Segundo alegou este, tal entendimento contraria frontalmente a posição que esse mesmo Instituto adoptou em momento anterior a propósito de um outro seu projecto de candidatura que veio a ser aprovado, por se ter aceite nessa situação que o contrato de locação financeira pudesse valer como prova da posse efectiva do terreno no qual aquele se propunha investir.


4. Deste modo, e tendo em conta que a legislação aplicável ao crédito PAR, designadamente a Resolução do Conselho de Ministros n.º 245/80, de 3 de Julho, apenas refere como condição dos candidatos para acesso à formulação de pedidos de financiamento, que sejam locatários dos prédios abrangidos pelos mesmos, assim como a existência de acordo e compromisso do senhorio para a venda, solicitou-se ao IFADAP que esclarecesse:








– as razões pelas quais esse Instituto passou a considerar insuficiente ou desadequada a qualidade de locatário num contrato de locação financeira de imóveis para efeitos de candidatura ao crédito PAR;


– qual a posição que tinha sido adoptada a respeito dos subsídios concedidos para a aquisição de móveis, nomeadamente de máquinas agrícolas, sendo certo que o Reclamante alega que, nesse caso, tem sido suficiente a mera apresentação de um compromisso de compra para promover a necessária equiparação à qualidade de proprietário;


– se existiam outros programas de financiamento nos quais esta questão da suficiência da qualidade de locatário num contrato de leasing já foi ou poderia vir a ser colocada sob a perspectiva acima abordada.



5. Como primeiro resultado da instrução do processo, o IFADAP enviou a lacónica resposta constante do ofício n.º 36.000/302/2001, de 13 de Julho de 2001, de que se anexa cópia, em que afirma que o círculo de destinatários do PAR se acha circunscrito apenas e tão-só aos rendeiros, qualidade que o Reclamante não detém. Por outro lado, muito embora se tivesse admitido que o contrato de locação financeira pudesse ser suficiente para a atribuição de outro tipo de subsídios, recusou-se a sua equiparação a um contrato de arrendamento, essencial à candidatura ao PAR, sem avançar qualquer fundamento que permitisse compreender as razões que impediam satisfazer a pretensão do Reclamante.


6. Por se ter considerado como insuficientemente fundamentada esta posição transmitida pelo IFADAP, tanto mais que radica numa perspectiva estritamente formal da legislação aplicável – de que a lei só menciona os rendeiros ou arrendatários rurais -, encaminhou-se o assunto para o Ministério da Agricultura do Desenvolvimento Rural e das Pescas, confrontando-o desde logo com alguns argumentos a que se poderia recorrer para contrariar o entendimento manifestado por aquele Instituto, tais como :








a) A Resolução do Conselho de Ministros n.º 245/80, de 3 de Julho – que define as condições e requisitos que os arrendatários e os prédios devem satisfazer para a formulação de pedidos de financiamento ao abrigo do PAR – , apenas exige que os candidatos a este programa de apoio sejam “(…) locatários dos prédios abrangidos pelos pedidos de financiamento (…)”, sem cuidar, em concreto, da natureza da relação locatícia que possa estabelecer-se.


b) O IFADAP já havia considerado em sede de apreciação de uma outra candidatura do Reclamante que mereceu aprovação, que um contrato de locação financeira poderia valer como prova da posse efectiva do terreno ao qual se destinava o investimento.


c) A ploriferação crescente de contratos de locação financeira, quer de móveis, quer de imóveis, desde a data da criação deste programa de financiamento, ou seja, há mais de 20 anos, poderia também ser invocada a favor da necessidade de ser seguida uma interpretação actualista da legislação em causa, elaborada num contexto sócio-económico diverso, em que a relação tradicional de fruição de um imóvel era constituída, salvo raras excepções, através de um contrato de arrendamento celebrado com o respectivo proprietário.


d) Pelo que a posição do IFADAP poderia carecer de fundamento, uma vez que insistia em tratar de forma distinta duas situações aparentemente análogas.



7. Porém, após várias e insistentes diligências por parte da Provedoria de Justiça junto do Gabinete do antecessor de Vossa Excelência, veio esse Ministério finalmente defender, nos termos do ofício n.º 1047, de 25 de Fevereiro de 2002, cuja cópia segue também em anexo, a correcção da posição do IFADAP, continuando a afirmar que a qualidade de locatário não poderia ser equiparada a rendeiro para efeitos de atribuição do crédito PAR mas, mais uma vez, e apesar de no pedido de esclarecimentos se ter solicitado de forma expressa que fossem comunicados os fundamentos para tal entendimento, não foi apresentada qualquer explicação que pudesse considerar-se minimamente suficiente ou razoável para semelhante entendimento.


8. Na verdade, insiste-se apenas em afirmar que “(…) a qualidade de rendeiro num contrato de arrendamento rural se encontra expressamente delimitada na RCM n.º 245/80 (…)”, menosprezando todos os argumentos invocados em favor de uma interpretação que permitisse atender à relevância que hoje em dia assume o leasing na economia empresarial portuguesa, incluindo no meio rural, privilegiando-se, pelo contrário, uma perspectiva estritamente formal e restritiva do alcance dos preceitos contidos neste diploma e dos objectivos que através da criação deste programa de apoio se quiseram prosseguir, maxime de incentivo à aquisição da propriedade da terra por quem dela retira o seu sustento.


II
Apreciação –


9. Ponderada a posição transmitida pelo IFADAP e corroborada por esse Ministério face à legislação aplicável, não me parece, salvo o devido respeito por opinião contrária, que a mesma se afigure como a mais acertada, fundamentada ou justa.


10. Na verdade, desde logo na Resolução do Conselho de Ministros n.º 159/80, de 15 de Abril, que criou o crédito PAR, pode lêr-se que este programa de apoio tem como objectivo proporcionar aos arrendatários rurais a possibilidade de aquisição dos prédios rústicos que estão sob sua directa exploração, através de um sistema de apoios técnicos e financeiros.


11. Ora, não só este objectivo se enquadra na perfeição nas regras do contrato de leasing, como a própria particularidade deste tipo contratual que o distingue da locação tradicional – ou seja, a faculdade de aquisição do bem uma vez findo o prazo estipulado – facilitaria a concessão deste tipo de apoio.


12. O mesmo se diga em relação ao diploma que se seguiu, isto é, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 254/80, de 3 de Julho, que veio definir as condições e requisitos que os rendeiros e respectivos prédios deverão satisfazer para poderem formular pedidos de financiamento.


13. Podem assim elencar-se como requisitos que o “rendeiro” ou arrendatário rural deverá satisfazer para poder aceder ao crédito PAR :








a) Ser locatário do prédio para fins de exploração agrícola, pecuária ou florestal;


b) O candidato deve retirar do prédio a sua principal fonte de rendimento e a respectiva exploração deve constituir a sua actividade exclusiva ou predominante;


c) O candidato já deve ter completado três anos de actividade como rendeiro;


d) O candidato não deve ter mais de 60 anos.


e) Tem que existir um acordo ou compromisso de venda da parte do senhorio que seja o proprietário do prédio em causa.



14. Aliás, também na Resolução do Conselho de Ministros n.º 219/81, de 7 de Outubro, que alargou os objectivos do crédito PAR para o financiamento ao pagamento de tornas a herdeiros directos e de acções de emparcelamento, constam requisitos de idêntica natureza.


15. Tendo presentes as exigências constantes da legislação do crédito PAR, pode dizer-se que também o próprio regime jurídico da locação financeira, aprovado pelo Decreto Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, nos permite afirmar que o contrato de locação financeira não requer qualquer adaptação das regras deste programa de apoio que possa comprometer os seus objectivos ou ofender o espírito que presidiu à sua criação.


16. É que, estando previsto neste tipo contratual, ao contrário do que sucede normalmente nos habituais contratos de arrendamento a possibilidade de o locatário adquirir a coisa uma vez decorrido o período acordado (cfr. art.º 10.º, n.º 2, alínea e) do citado diploma), pode até dizer-se que existem garantias acrescidas de que o locatário candidato poderá adquirir o imóvel, sem necessidade de nenhuma autorização especial da parte do locador, seu proprietário, ao contrário do que normalmente sucede com os senhorios, quando se instrui um pedido de financiamento com um contrato de arrendamento.


17. Sendo assim, poder-se-á perguntar porque motivo não se encontra contemplada na legislação vigente a possibilidade expressa de um locatário num contrato de leasing poder beneficiar do crédito PAR para adquirir o imóvel que vem explorando.








a) Em primeiro lugar, talvez esta não seja sequer a melhor forma de abordagem desta questão, uma vez que, no elenco dos requisitos a satisfazer para aceder ao programa de apoio, a legislação menciona a palavra “locatário”, na qual se inclui naturalmente aquele a quem é concedida a fruição de uma coisa mediante um contrato de locação financeira. Ou seja, a letra da lei não exclui este tipo contratual, apenas não o prevê de forma expressa, uma vez que o legislador optou antes pela utilização da figura geral da locação para designar o vínculo que deve ligar o candidato ao proprietário da coisa.


b) É certo que em várias disposições desse diploma se usa o termo “rendeiro” para designar o candidato. Contudo, sem esforço acrescido de interpretação se poderá compreender que o legislador procurou utilizar o conceito mais generalizado e mais comum para denominar os locatários que exploram um prédio rústico, quando definiu o universo de potenciais candidatos a este programa de apoio.


c) Assim, o facto de a legislação não ter previsto os locatários do contrato de locação financeira como destinatários do PAR não significa que tenha pretendido excluí-los deste tipo de programa de apoio, como aliás, nem faria sentido que assim fosse.


d) É que, destinando-se este programa a financiar a aquisição de prédios rústicos e, por outro lado, constituindo um dos direitos específicos de um locatário do contrato de leasing a aquisição do bem no termo do período convencionado, não só não existe qualquer incompatibilidade, como se vislumbra até uma total identidade de propósitos que normalmente não se encontra num contrato de arrendamento.


e) Como se sabe, ao arrendatário são apenas e tão-só concedidas faculdades de uso, gozo e fruição da coisa, daí a necessidade de o pedido de financiamento ser acompanhado de uma declaração do senhorio que excepcionalmente manifeste a vontade de vendê-la àquele.


f) Ora, esta exigência nem sequer se coloca quando existe um contrato de locação financeira, porque pura e simplesmente o direito potestativo de aquisição da coisa locada é um elemento integrante do próprio contrato.


g) Refira-se ainda, sem correr risco de especulação que, o facto de o legislador não ter mencionado o leasing no regime jurídico deste programa, poderá ser justificado pela circunstância de que, quando em 1980 foi criado o crédito PAR, esta figura ainda não tinha adquirido grande projecção como instrumento comercial e financeiro em Portugal, pelo menos no que se refere a bens imóveis, cuja exploração por alguém distinto do respectivo proprietário era normalmente titulada por um contrato de arrendamento.


h) A este respeito será particularmente elucidativo o trabalho sobre este tipo contratual in BMJ, n.º 231, de Dezembro de 1973, do Dr. José Carlos Moitinho de Almeida, de onde se pode retirar a seguinte afirmação elucidativa da escassa relevância do leasing nessa época: “(…) Em Portugal desconhecemos a prática do leasing em termos significativos, o que é certamente de atribuir, por um lado, à falta de regime jurídico que isente a operação de dúvidas interpretativas ou lhe proporcione os instrumentos capazes, por outro, à mentalidade empresarial arreigada ainda excessivamente ao conceito de propriedade (…)”.


i) Na verdade, como também afirma o Dr. Rui Pinto Duarte no seu estudo sobre os “Aspectos Contratuais do Aluguer, da Locação Financeira e de Outros Contratos Afins à face da Lei Portuguesa”, publicado na Revista “FISCO” de Fev/Mar 93, “(…) Da primeira origem apareceu o “leasing” dito financeiro … que o legislador português introduziu entre nós rebaptizado de “locação financeira” (…). Na verdade, foi só (e dois anos passados) na sequência de dois decretos-leis de 1979 (que regularam a constituição e o funcionamento das sociedades de locação financeira … com o estatuto de instituições parabancária …e o próprio contrato de locação financeira) que surgiram as primeiras empresas de “leasing” financeiro em Portugal (…)”.


j) Ora, certamente que uma interpretação actualista destas normas jurídicas permitiria, sem esforço, enquadrar os locatários de um contrato de leasing entre os locatários “destinatários-tipo” deste programa de apoio.



18. É assim claro que todos os elementos que a exegese jurídica manda que se apreciem para compreender o sentido e alcance das normas jurídicas – a letra da lei e os elemento sistemático, histórico e teleológico – (cfr. art.º 9.º, n.º 1 do Código Civil), apontam para esta conclusão.


19. Ao contrário da jurisprudência que não é particularmente abundante sobre esta matéria, embora já comece a tratar com maior regularidade este tipo de assuntos, uma vez que se trata de uma questão cada vez mais abordada nos meios comerciais e financeiros, a produção doutrinal a respeito da [nova] figura da locação financeira é profícua e esclarecedora sobre a natureza jurídica deste tipo contratual que hoje prospera de forma massificada na sociedade portuguesa.


20. Pode assim citar-se, desde logo, o estudo do Dr. Pedro Rebello de Sousa (in Boletim da Ordem dos Advogados n.º 25, Abril/84, pág.s 11 e ss.) em que define o leasing como “aquele acordo de vontades cujo escopo é a concessão do uso de bens de capital ou de outros componentes de activo de uma empresa (coisa infungível) através do arrendamento por prazo determinado, findo o qual poderá a arrendatária optar entre a devolução do objecto contratual, a renovação do arrendamento ou a aquisição daquele por valor pré-fixado, o valor residual convencionado pelas partes”.


21. Resulta desta noção que, para além do direito potestativo de adquirir no fim do contrato os bens de que já se usou, está também presente a transferência do gozo da coisa para o locatário. Repare-se inclusivamente que este Autor qualifica o locatário do leasing como arrendatário e a essência deste tipo de contrato como de arrendamento.


22. Com interesse para o problema que agora nos move, este Autor defende ainda que não devem vingar as tentativas de caracterizar o leasing como um mero processo de financiamento, uma vez que a “(…) locação em si não é afectada pelas circunstâncias antecedentes à aquisição do bem pelo locador, nem pelo maior valor dos aluguéis, nem pelo prazo mais longo da locação, nem pela atribuição ao locatário dos encargos que normalmente são do locador, nem pela opção de compra que se ofereça ao mesmo locatário. A ocorrência de circunstâncias (mormente as extrínsecas, como as pertinentes à aquisição do bem pelo locador) e de condições diversas das que se verificam nas locações usuais apenas confere peculiaridades ao contrato de locação (…) sem interferir na essência do seu objecto, a utilização remunerada do bem a que se refere (…)”.


23. Por seu turno, no estudo do Dr. Ricardo Munhoz, publicado em Dezembro de 1997 na Revista Portuguesa de Direito do Consumo, muito embora se tenha procurado vincar a figura do leasing como um novo “instrumento financiador do consumo”, centralizando a opção de compra do locatário no âmbito dos elementos essenciais deste tipo de contratos, reconhece-se também que, à semelhança de qualquer contrato de locação, o locatário (no âmbito do leasing) tem naturalmente o direito de uso e fruição da coisa.


24. Nessa esteira, pode citar-se uma vez mais o Dr. Moitinho de Almeida quando, procurando determinar a natureza jurídica da locação financeira, caracteriza esta figura contratual como “um negócio misto, com elementos da locação, da venda e do mútuo”. Mais adiante admite ainda que, sob o aspecto técnico, a locação é o instrumento chave da estrutura desse contrato (de leasing), a essência do negócio, muito embora em termos funcionais domine o plano do financiamento.


25. Também a nossa jurisprudência se tem debruçado sobre este tema, sem abordar no entanto em particular a questão que agora nos ocupa – saber se o leasing poderá titular a situação jurídica de um candidato ao crédito PAR -, designadamente o Parecer n.º 41/94,do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República in DR II.ª Série de 19.10.1994.


26. Aí se procurou fixar a natureza jurídica da locação financeira, mediante a distinção dos tipos contratuais que não só lhe estão mais próximos, como também compõem a sua estrutura mista. Desde logo, apontam-se como elementos distintivos face à locação típica os seguintes traços da locação financeira :








– O risco de perecimento da coisa corre por conta do locatário;
– O locador não corre os riscos próprios de um “proprietário – senhorio”, nomeadamente em termos económicos e de rentabilidade do bem, que se transferem por efeito do contrato para o locatário.



27. Mais adiante se pode lêr também que “(…) a locação financeira distingue-se, além do mais, da compra e venda a prestações porque o locador conserva sempre a propriedade plena da coisa, sendo a compra pelo locatário apenas opcional (…)”.


28. No mesmo sentido de que o locatário financiado (do leasing) não adquire a coisa por mero efeito do contrato, ou seja, não lhe é transmitida a propriedade do bem locado, mas apenas o direito potestativo de futura aquisição, pode também referir-se o Acórdão do STJ de 1993.03.09 (in “Sub Judice, edição de Setembro/Dezembro de 1993) e o Acórdão da Relação de Lisboa de 1990.01.25 (in CJ, 1990, I, 149).


29. De onde resulta que o locatário do leasing terá todas as faculdades de que dispõe um arrendatário, isto é, como se refere no Acórdão do STJ de 7.03.1991 “É essencial ao contrato de locação financeira o gozo temporário e oneroso da coisa locada pelo locatário (…)” , e ainda mais a de optar, no final do prazo acordado, por uma de três vias: pela aquisição da propriedade, pela continuação da locação com uma renda inferior, uma que o valor da coisa locada se encontra já amortizado, ou pela sua restituição.


30. Decorre assim como evidente a conclusão de que o cerne do contrato de locação financeira reside na concessão do gozo da coisa locada (Ac. Relação de Lisboa de 20.05.1999 in CJ 1999, 3, 107), uma vez que se lhe proporciona não a propriedade do bem, mas a sua posse e utilização para certos fins (Ac. STJ de 18.02.1999 in CJ, 1999, I, 114).


31. Assim, e independentemente da orientação que se perfilhe a propósito da natureza jurídica do direito de arrendamento, seja como mero direito de crédito, direito pessoal ou real de gozo, como defende desde 1985, in ROA, Ano 45, o Prof.º Oliveira Ascensão, não se vê em que medida um arrendatário [rural] possa dispôr de maiores poderes sobre a coisa dada em arrendamento do que um locatário no âmbito de um leasing, tanto mais que a vontade de vender a coisa, exigida como condição absolutamente imprescindível à concessão de crédito através do PAR, normalmente não existe num contrato de arrendamento e é, pelo contrário, um elemento integrante da locação financeira.


32. Face ao estudo da legislação vigente, da doutrina e jurisprudência a que atrás se procedeu, podemos elencar as seguintes conclusões:








A) A Resolução do Conselho de Ministros n.º 245/80, de 3 de Julho apenas exige que os candidatos ao PAR sejam “(…) locatários dos prédios abrangidos pelos pedidos de financiamento (…)”, sem cuidar, em concreto, da natureza da relação locatícia que possa estabelecer-se, ou seja, a exclusão das candidaturas que não sejam instruídas com contratos de arrendamento não decorre da letra da lei.


B) O facto de a legislação não ter previsto expressamente os locatários do contrato de locação financeira como destinatários do PAR não significa que tenha pretendido excluí-los deste tipo de programa de apoio, uma vez que, destinando-se este programa a financiar a aquisição de prédios rústicos e, por seu lado, constituindo um dos direitos específicos de um locatário do contrato de leasing a aquisição do bem no termo do período convencionado, não só não existe qualquer incompatibilidade, como se vislumbra até uma identidade de propósitos que nem sequer se encontra num contrato de arrendamento.


C) Ao arrendatário são apenas e tão-só concedidas faculdades de uso, gozo e fruição da coisa, daí a necessidade de o pedido de financiamento formulado no âmbito do PAR ser acompanhado de uma declaração do senhorio que excepcionalmente manifeste a vontade de vendê-la àquele, ao passo que esta exigência específica nem sequer se coloca quando existe um contrato de locação financeira, porque pura e simplesmente o direito de aquisição é um elemento integrante do próprio leasing.


D) O facto de o legislador não ter mencionado o leasing no regime jurídico deste programa, poderá ser justificado pela circunstância de que, em 1980, quando foi criado o crédito PAR, esta figura ainda não tinha adquirido grande projecção como instrumento comercial e financeiro em Portugal, pelo menos no que se refere a bens imóveis, cuja exploração por alguém distinto do respectivo proprietário era normalmente titulada por um contrato de arrendamento.


E) Assim, uma interpretação actualista, justificada pela necessidade de ponderação das “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (cfr. art.º 9.º, n.º 1 do CC), permitiria com facilidade incluir os locatários do leasing entre os candidatos ao crédito PAR.


F) Abstraindo do maior ou menor relevo da função de financiamento directo que o leasing desempenha, a doutrina é unânime em reconhecer ao locatário os direitos reais de gozo de que dispõe um “arrendatário tradicional”, e a presença de elementos típicos da locação civil neste novo tipo contratual misto.


G) Os traços que distinguem a locação financeira da “locação civil” (ou mais concretamente neste caso, de um contrato de arrendamento) – outorgam ainda acrescidos poderes sobre a coisa locada ao locatário do leasing em relação a um arrendatário comum, já que lhe conferem automaticamente a opção de compra da coisa no fim do contrato.


H) Pelo que, dando ainda maiores garantias do sucesso do investimento a financiar pelo PAR, essas diferenças não podem ser invocadas para justificar a exclusão deste programa de apoio dos locatários no âmbito do leasing.


I) A nossa jurisprudência, tendo também por base o próprio regime jurídico da locação financeira actualmente vigente, reconhecendo embora as semelhanças e disparidades desta figura em relação a outros tipos contratuais, designadamente a “locação civil”, refere igualmente que o cerne do contrato de locação financeira reside na concessão do gozo da coisa locada, uma vez que se lhe proporciona não a propriedade do bem, mas a sua posse e utilização para certos fins.


J) De onde resultaria igualmente uma compatibilidade de fins com o crédito PAR, pois se no leasing o locatário ainda não é proprietário da coisa, tal como no arrendamento, justifica-se plenamente que se candidate a este programa de apoio, como se tratasse de um arrendatário, com vista a obter financiamento que ajude a adquiri-la.


K) Deste modo, e considerando a irredutibilidade da posição transmitida pelo IFADAP e confirmada pelos anteriores responsáveis pelo Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, sem que tenham sido invocados quaisquer argumentos válidos que pudessem constituir obstáculo ao alargamento do universo dos destinatários do PAR aos locatários que explorem um prédio rústico através de um contrato de locação financeira, não pude deixar de trazer ao conhecimento de Vossa Excelência a falta de razoabilidade desta exclusão, que coarcta de forma infundada e com base numa interpretação excessivamente formalista e restritiva o direito dos cidadãos que pretendam, como será o caso do Reclamante, solicitar apoio financeiro para adquirir a propriedade do imóvel que exploram ao abrigo do leasing.



33. Assim, de acordo com as motivações acima expostas e nos termos do art.º 20.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto do Provedor de Justiça (Lei n. 9/91, de 9 de Abril), recomendo:








A) Que o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas adopte medidas concretas que passem a permitir o acesso imediato ao crédito PAR por parte dos locatários que exibam contratos de locação financeira como título da respectiva posse.


B) Para esse efeito, e porque me parece que a redacção da legislação vigente será já suficientemente abrangente para abarcar como destinatários do programa também os locatários do leasing, bastará que sejam dadas instruções ao órgão gestor deste programa de apoio – que julgo que seja actualmente o IFADAP -, para que os admita como candidatos válidos nessa qualidade, mediante uma interpretação actualista dos preceitos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 245/80, de 3 de Julho.


C) Porém, e salvaguardando a hipótese de não se entender como suficiente essa medida agora sugerida, então que se proceda à alteração desse regime jurídico, de modo a contemplar de forma expressa esse tipo de locatários, para que dúvidas não restem da sua legitimidade enquanto destinatários deste programa de apoio.



Nos termos do disposto no art.º 38º, n.º 2 do Estatuto aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, deverá Vossa Excelência comunicar-me o acatamento desta Recomendação ou, porventura, o fundamento detalhado do seu não acatamento, no prazo de sessenta dias, informando sobre a sequência que o assunto venha a merecer.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues