RECOMENDAÇÃO N.º 9/A/2003
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Alto Minho, S.A.
Procº: R-2040/03
Data: 2003/07/31
Área: A4
Assunto: Reclamação apresentada por XXX, assistente hospitalar de anestesiologia – Trabalho prestado para além do limite de idade.


1- Como é decerto do conhecimento de V. Exa, o médico acima referenciado, actualmente na situação de aposentado, dirigiu-me uma queixa onde, no essencial, questionava a regularidade da actuação dessa unidade hospitalar que lhe denegou o pagamento das remunerações correspondentes ao trabalho extraordinário executado no respectivo serviço de urgência após a data (13/02/02) em que o mesmo atingiu o limite máximo de idade para o exercício das suas funções, e isto por ter permanecido em efectividade de serviço médico até 14/03/03, data em que foi afinal notificado por essa instituição da respectiva desligação de serviço para efeitos de aposentação.


2- No âmbito da instrução do processo organizado com base na referida queixa procedeu-se à audição desse Centro Hospitalar, que em resposta transmitiu os esclarecimentos consubstanciados no ofício nº 638/2003/SP, de 24/06/2003. Neste contexto, veio esse Conselho de Administração justificar a recusa do pagamento das quantias em questão argumentando, em suma, que o aqui reclamante contribuíra conscientemente para a configuração da situação de facto invocada, e consequentemente para a existência do vício de ilegalidade de que a mesma padecia, posto que: 



a) A demora na efectivação da desligação de serviço, por limite de idade, deste funcionário radicara em erro na verificação dos respectivos pressupostos de facto, induzido por lapso de registo da respectiva data de nascimento constante de declaração por este preenchida;


b) Devendo o mesmo médico ter conhecimento das normas legais e regulamentares que lhe diziam respeito, estava também constituído na obrigação de “procurar obter junto do Serviço de pessoal desse Centro, o devido esclarecimento quanto à data de desvinculação, o que efectivamente não se verificou…“.


 3- Concluída a análise do processo subjacente com base no registo factual apurado e nos elementos informativos que em suporte da matéria reclamada foram prontamente disponibilizados por esse organismo, afigura-se não dever deixar de comunicar a V. Exa algumas considerações que a questão abordada suscitou.


4- Com efeito, do circunstancialismo concreto que determinou a passagem do referido funcionário à aposentação vem assente, desde logo, que o mesmo completou 70 anos de idade em 13/02/03, sendo que à data da verificação deste evento já se encontrava pendente um processo de aposentação voluntária aberto a requerimento do próprio, cujos pressupostos assentavam na observância simultânea da idade e tempo de serviço aludidos no artigo 37º, nº 1, do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9/12, alterado pelos Decreto-Lei nº 191-A/79, de 25/06, e nº 503/99, de 20/11.


5- Não obstante a ocorrência deste evento, o mesmo funcionário continuou a prestar serviço médico na unidade hospitalar, em efectividade de serviço, até 13/03/03, data em que foi efectivamente notificado da sua desvinculação para aposentação, com efeitos reportados à data em que completara a idade-limite.


6- No plano do direito, registaria, em primeira linha, que a verificação superveniente do limite de idade para o exercício de funções públicas, prescrito para a Administração Pública, em geral, no artigo 1º do Decreto nº 16563, de 2/03/29, complementado pelo Decreto-Lei nº 127/87, de 17/03, influenciava decisivamente a esfera individual deste funcionário, independentemente do desenvolvimento procedimental do processo de aposentação que já então se encontrava em curso, posto que logo determinaria, por imperativo legal, a cessação definitiva da relação de emprego público que o mesmo constituíra com a Administração e a sua consequente transição para a situação de inactividade (ou pré-aposentação).


7- Configurava-se, deste modo, a ocorrência de novo facto determinante do direito à aposentação (cfr. disposições conjuntas dos artigos 28º, nº 1, última parte, do Decreto-Lei nº 427/89, de 7/12, e 37º, nº 2, alínea b), 43º, 74º, nº 2, 97º e 99º do referido Estatuto de Aposentação) que desencadearia a imediata desligação de serviço deste funcionário, no momento em que perfizesse os referidos 70 anos de idade. Tal, apesar de, no caso concreto, a resolução final proferida pela Caixa Geral de Aposentações sobre o reconhecimento e concessão do direito à pensão de aposentação apenas ter sido proferida em 7/04/03 e dada a conhecer ao serviço a que pertencia em 16/04/03 (cfr. artigo 97º, nº 1, e artigo 99º, nºs 1 e 2, do citado Estatuto).


8- Atendendo à legislação pertinente que com a matéria se relaciona, entendo, porém, que nenhum dos argumentos invocados por V.Exa são de molde a justificar a bondade da decisão assumida neste domínio. Na verdade, apesar de reconhecer a procedência dos obstáculos de direito positivo aduzidos para pôr em causa a prestação de trabalho assegurada além da idade legal, como também admita que a Administração não pretendesse desrespeitar as normas e princípios legais aplicáveis, menos atendível se afigura invocar que a alegada participação culposa do reclamante tenha contribuído para a passividade desse Centro Hospitalar, no que toca ao cumprimento atempado das obrigações previstas no artigo 1º do citado Decreto-Lei nº 127/87, de 17/03.


9- Em primeiro lugar, não é crível nem razoável que o lapso de escrita registado pudesse, por si só, induzir à formação de um juízo erróneo quanto à data de verificação do limite de idade, quando a prossecução do dever de cuidado e diligência esperados aconselharia os respectivos serviços administrativos a confrontar os dados biográficos indicados com os meios oficiais de prova, maxime os documentos oficiais de identificação, que naturalmente deveriam constar do processo individual organizado nesses serviços, estes sim com inegável relevância procedimental no que toca à verificação dos factos que pudessem relevar na respectiva situação laboral – v. artigo 87º, nº 2, do CPA.


10- A fundamentação aduzida é tanto menos sustentável quanto uma breve consulta ao requerimento e informação procedimental contida no processo de aposentação voluntária iniciado pelo interessado em 19/11/02, maxime os elementos de identificação por este preenchidos no modelo pré-impresso que o instruía, teria permitido identificar e corrigir a nota biográfica dissonante, em tempo oportuno, uma vez que aqui já o mesmo funcionário apontara outra data de nascimento: 13/02/33.


11- Entendo, isso sim, demonstrado que a Administração, através dos seus órgãos competentes, agiu, no caso concreto, de forma negligente e reforçou, por inércia, o erro em que já laborava, quanto à verificação e controlo da informação biográfica de um seu funcionário, nomeadamente no quadro das especiais obrigações que lhe estavam cometidas pelo artigo 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 127/87, supra referido, responsabilidades que relativamente à situação denunciada não poderão ser desvaloradas ou dirimidas, no que toca à permanência em funções além do limite de idade atingido.


12- Ademais, parece-me pouco seguro afiançar que a atitude de alheamento imputada a este funcionário, relativamente à comunicação de facto que poderia levar a Administração a ponderação diversa, indicie actuação dolosa orientada para a obtenção de vantagens ilegítimas ou a colaboração consciente na existência do vício invocado que poria em causa a sua boa fé. Se o grau de habilitação detido ou a função social do respectivo cargo não lhe permitiriam abstrair-se do condicionamento legal imposto ao exercício das suas funções e a prudência desejável recomendar que procurasse obter adequado esclarecimento da respectiva situação junto dos respectivos serviços de pessoal, o certo é que não estava cometida a este médico qualquer obrigação informativa relativamente aos factos subjacentes. Ao invés, pode até dizer-se que a inércia desse Centro Hospitalar, que, de modo negligente, consentiu e autorizou a continuidade da prestação de trabalho deste funcionário, poderia constituir motivo sério e razoável para o mesmo acreditar na validade da sua situação funcional após aquela data ou na possibilidade do seu reconhecimento formal para futuro – v., neste sentido, o artigo 6º-A, nº 2, do CPA.


13- Efectuada que foi uma análise balanceada da correcção e probidade dos comportamentos do funcionário e da Administração no quadro factual denunciado, entendo, porém, que não estava juridicamente arredada a possibilidade de atribuição de determinados efeitos à prestação de trabalho em causa.


14- Dir-se-á, antes de mais, que, independentemente das responsabilidades que em sede disciplinar pudessem ser imputadas aos agentes envolvidos, não é lícito ou sustentável que esse Centro Hospitalar se prevaleça da ausência de suporte legal e da consequente irregularidade da actividade profissional exercida após a idade limite, para recusar o pagamento ao queixoso da compensação remuneratória devida pelo trabalho prestado a incumbência dos seus serviços.


15- Na verdade, e não é menos relevante, vem sobejamente comprovado que o particular reclamante, atingido o limite de idade para o exercício do respectivo cargo, manteve a sua colaboração profissional a esse Centro Hospitalar, com a autorização das respectivas chefias médicas e demais responsáveis, continuando a assegurar, com a aparência de normalidade e de forma amplamente conhecida dos utentes e demais colaboradores da instituição, a prestação dos serviços médicos que lhe cabiam, o que permitiu o funcionamento eficaz e regular do Serviço de Urgência.


16- E se assim é, considero que a situação retratada, ainda que circunscrita a curto período temporal, revela óbvio aproveitamento injustificado por parte da Administração obtido à custa do funcionário que continuou a desempenhar a sua actividade profissional para além dos 70 anos de idade, porquanto só ela retira benefícios do exercício gratuito destas funções, ao rejeitar a contrapartida salarial do trabalho extraordinário que o mesmo executou.


17- Nesta circunstância, não é curial que a Administração exceda os limites da boa fé e do não locupletamento à custa alheia, consentindo e aproveitando o exercício destas funções, mas recusando a correspondente remuneração, o que se afigura injusto e desproporcionado, para além de ofender o princípio da igualdade consagrado na lei fundamental (cfr. artigos 13º e 266º da Constituição, com a configuração específica plasmada no artigo 59º, nº 1, alínea a), da mesma lei).


18- Por esta razão, justifica-se que à luz dos postulados básicos que orientam a actividade administrativa em geral e o respectivo relacionamento com os particulares, maxime os princípios da boa fé e da proibição do enriquecimento sem causa (este último, um princípio geral de direito decorrente do disposto no artigo 473º do Código Civil, transposto pela doutrina e jurisprudência para o contexto da relação administrativa, enquanto factor autónomo de obrigações para a Administração – v. Alexandra Leitão in “O enriquecimento sem causa na Administração Pública”, págs 38 e seguintes), a par dos princípios da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade, seja ainda considerada a possibilidade de serem abonadas ao reclamante as remunerações correspondentes ao serviço por este prestado após o limite de idade.


19- Na perspectiva exposta, cumpre-me finalmente salientar que, independentemente da minha intervenção, nada impedirá que o mesmo reclamante recorra à jurisdição administrativa para obter o ressarcimento daquilo com que a Administração se locupletou indevidamente pelo desempenho do seu trabalho, fazendo uso, para tanto, de acção condenatória para efectivação de responsabilidade extra-contratual desse Centro Hospitalar (artigo 71º da LPTA e Decreto-Lei nº 48051, de 21/11/67).


Em face de tudo quanto precedentemente exposto e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei nº 9/91, RECOMENDO a V. Exa: 







que seja providenciado o pagamento ao médico XXX das remunerações decorrentes do trabalho extraordinário por este realizado no serviço de urgência desse Centro Hospitalar entre 13/02/2003 e 13/03/2003, com os demais juros de mora, por forma a impedir o enriquecimento desse organismo público sem causa justificativa.


Queira V. Exa, em cumprimento do dever consignado no artigo 38º, nº2, da Lei nº 9/91, de 9/04, dignar-se informar sobre a sequência que o assunto vier a merecer.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues