RECOMENDAÇÃO N.º 1/B/2003
(Artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade: Sua Excelência, o Primeiro-Ministro
Proc.: R-769/02 (A6)
Data: 2003/02/21
Assunto: Regime remuneratório dos magistrados judiciais


 
1. Foi-me dirigida uma exposição pela quase totalidade dos Juizes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, contestando a distorção actualmente existente na estrutura remuneratória da carreira da magistratura judicial, em especial das suas categorias mais altas.


A questão objecto da presente Recomendação é naturalmente do conhecimento de Vossa Excelência. No entanto, tendo em vista facilitar a exposição dos motivos e das finalidades subjacentes a esta minha iniciativa, permita-me, Senhor Primeiro-Ministro, que enquadre juridicamente, de forma sumária, o assunto a seguir referenciado.


2. A Lei n.º 2/90, de 20 de Janeiro, veio modificar de forma significativa o sistema retributivo dos juizes, introduzindo alterações às normas até então vigentes sobre a matéria no Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho.


Designadamente, veio o citado diploma anexar àquele Estatuto o mapa que contém a escala indiciária ainda hoje em vigor para os magistrados judiciais. Da mesma forma, estabeleceu a mencionada legislação as regras relativas à actualização das remunerações, de acordo com os diversos índices que compõem a escala, nos termos que constam do actual art.º 23.º do mesmo Estatuto:



“A remuneração base é anualmente revista, mediante actualização do valor correspondente ao índice 100” (n.º 2), sendo que “a partir de 1 de Janeiro de 1991 a actualização a que se refere o número anterior (o n.º 2 citado) é automática, nos termos do disposto no artigo 2.º da Lei n. º 26/84, de 31 de Julho, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 102/88, de 25 de Agosto” (n.º 3).


A Lei n.º 26/84, de 31 de Julho, que definiu o regime de remuneração do Presidente da República, veio a ser alterada, quanto ao dispositivo que aqui nos interessa, pela Lei n.º 102/88, de 25 de Agosto, a qual modificou igualmente alguns preceitos da legislação que estabelece o regime remuneratório de cargos políticos.


Desta forma, a redacção do art.º 2.º da Lei n.º 26/84, que o Estatuto dos Magistrados Judiciais faz aplicar à actualização das remunerações destes magistrados, reza da seguinte forma: “o vencimento e o abono referidos no artigo anterior (relativos ao Presidente da República) são automaticamente actualizados, sem dependência de qualquer formalidade, em função e na proporção das alterações à remuneração mensal ilíquida fixada para o cargo de director-geral na Administração Pública”.


Nos termos da mencionada legislação, a actualização das remunerações base dos magistrados judiciais que constam da actual escala indiciária seria feita anualmente, de forma automática e sem dependência de qualquer formalidade, mediante actualização do valor correspondente ao índice 100, em função e na proporção das alterações à remuneração mensal ilíquida fixada para o cargo de director-geral na Administração Pública.


3. Não têm no entanto, e não tiveram nunca, aplicação na sua total extensão as regras relativas à actualização da remuneração base dos magistrados judiciais, tal como acima definidas.


Na verdade, como é do conhecimento de Vossa Excelência, a Lei n.º 63/90, de 26 de Dezembro, veio suspender, nos termos explicitados no seu art.º 1.º, a vigência do disposto no já mencionado art.º 2.º da Lei n.º 26/84 (na redacção dada pelo art.º 1.º da Lei n.º 102/88).


No caso particular dos magistrados judiciais, tal suspensão “é apenas aplicável à parcela das remunerações e pensões fixadas pela Lei n.º 2/90, de 20 de Janeiro (que introduziu o novo sistema retributivo dos magistrados judiciais), que exceda o montante correspondente à remuneração base do cargo de Primeiro-Ministro” (art.º 1.º, n.º 2, da citada Lei n.º 63/90).


Por via da suspensão mencionada, a actualização das remunerações base dos magistrados judiciais que constam da actual escala salarial passou então a ser feita do seguinte modo: anualmente, de forma automática e sem dependência de qualquer formalidade, mediante actualização do valor correspondente ao índice 100, em função e na proporção das alterações à remuneração mensal ilíquida fixada para o cargo de director-geral na Administração Pública, ficando no entanto suspensa a actualização das remunerações na parte em que estas venham a ultrapassar o valor da remuneração base do Primeiro-Ministro.


4. Não se revela difícil antever as consequências que a referida suspensão, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1991 e ainda em vigor, veio a ter no sistema retributivo aqui em discussão – a suspensão perduraria, nos termos do art.º 1.º, n.º 1, da Lei n.º 63/90, “até que a Assembleia da República aprove os princípios de actualização das remunerações dos titulares dos cargos públicos”, o que não aconteceu até ao momento, tendo tais remunerações vindo a ser actualizadas nos termos dos aumentos decorrentes do regime geral da função pública (sendo a última revisão aquela constante da Portaria n.º 88/2002, de 28 de Janeiro).


De facto, por via do disposto no art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 63/90, foi criado uma espécie de tecto salarial, que provocou uma aproximação sucessiva das remunerações correspondentes aos diversos índices da escala salarial dos juizes, com óbvio prejuízo para os magistrados no topo da carreira.


Só em 1993 viria o legislador a, de certa forma, atenuar tais consequências, acrescentando, através da Lei n.º 19/93, de 25 de Junho, um n.º 3 ao art.º 1.º da Lei n.º 63/90, com o seguinte teor: “À remuneração ou pensão que resulta da aplicação do número anterior (remunerações e pensões designadamente dos magistrados judiciais suspensas nos montantes que, nos termos da actualização anual, excedam a remuneração base do Primeiro-Ministro) é acrescentado o montante necessário para que se verifique uma diferenciação de 3% em relação à categoria que detenha o índice imediatamente inferior, de acordo com os mapas mandados anexar à Lei n.º 2/90, de 20 de Janeiro, à Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (…)”.


Mais tarde ainda, o legislador reportaria os efeitos desta última alteração à data de 1 de Janeiro de 1993 (cf. o art.º 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 339/93, de 30 de Setembro,).


5. Permita-me que partilhe agora com Vossa Excelência, Senhor Primeiro-Ministro, algumas preocupações sobre a questão acima exposta, quando perspectivada em dois planos distintos, num plano interno, no âmbito da carreira profissional dos magistrados judiciais, pondo em causa a justiça relativa da solução em vigor, e num plano externo, através do qual procurarei questionar a bondade da opção pela manutenção de um sistema retributivo dos juizes que, em vários momentos, se cruza com o sistema remuneratório dos titulares de cargos políticos.


6. Conforme já mencionado, o actual regime remuneratório dos magistrados judiciais, a manter-se a restrição consignada no art.º 1.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 63/90 e o actual status quo normativo em matéria de remuneração dos titulares dos cargos políticos, desencadeará uma aproximação progressiva das remunerações efectivamente recebidas pelos juizes colocados ao longo da escala indiciária constante do respectivo Estatuto.


Antes de mais, veja-se quais as diferenças salariais entre as diversas categorias da magistratura judicial consagradas na revisão do sistema retributivo dos juizes, promovida pela Lei n.º 2/90, e reportadas ao ano de 1989, logo isentas da actualização mais tarde aprovado pela Lei n.º 2/90: 35% da categoria de ingresso para a de juiz com três anos de serviço; 14,8% da categoria de juiz com três anos de serviço para a de juiz com sete anos de serviço; 12,9% desta última categoria para a de juiz com onze anos de serviço; 8,5% da categoria de juiz com onze anos de serviço para a de juiz com quinze anos de serviço; 5,2% desta categoria para a de juiz com dezoito anos de serviço; 10% desta última para a de juiz de círculo; 9% da de juiz de círculo para a de desembargador; 4,1% desta categoria para a de juiz desembargador com cinco anos de serviço; e, finalmente, 4% desta categoria para a de juiz conselheiro.


Atente-se, agora, nas diferenças remuneratórias actuais entre cada uma das mesmas categorias – reportadas ao ano de 2002, e que transportam já todo o processo de actualizações condicionado pelo disposto na Lei n.º 63/90: 35% da categoria de ingresso para a de juiz com três anos de serviço; 14,8% da categoria de juiz com três anos de serviço para a de juiz com sete anos de serviço; 12,9% desta última categoria para a de juiz com onze anos de serviço; 8,5% da categoria de juiz com onze anos de serviço para a de juiz com quinze anos de serviço; 5,2% desta categoria para a de juiz com dezoito anos de serviço; 10% desta última para a de juiz de círculo; 3% da de juiz de círculo para a de desembargador; 3% desta categoria para a de juiz desembargador com cinco anos de serviço; 3% desta categoria para a de juiz conselheiro.


Se compararmos as diferenças remuneratórias entre cada uma das categorias da magistratura judicial decorrentes da aplicação, sem qualquer actualização, da escala salarial resultante da aprovação da Lei n.º 2/90, com as diferenças remuneratórias actualmente existentes entre as mesmas categorias, é notório que as categorias superiores têm vindo a conhecer uma menor valorização, em termos remuneratórios, designadamente face às situadas mais abaixo na escala indiciária. As sete primeiras categorias, contadas a partir da base da escala, mantêm, em 2002, a mesma diferença salarial que mantinham, entre si, em 1989. As três categorias do topo viram agora diminuída essa diferença, comparativamente a 1989: a de juiz desembargador face à de juiz de círculo em seis pontos percentuais (isto é, uma quebra de 66,7%), a de desembargador com cinco anos de serviço face à de desembargador em um ponto percentual acrescido de uma décima (isto é, menos 26,8%), e a de conselheiro face àquela última num ponto percentual (isto é, menos 25%).


Tal situação decorre única e exclusivamente da limitação da actualização dos vencimentos aqui em análise.


No actual quadro, esquecendo hipotéticos e imprevisíveis desenvolvimentos, a diferença remuneratória entre a base e o topo é 8% inferior ao estabelecido na escala salarial prevista na Lei. Esta divergência é, como é evidente, mais marcada no topo da carreira, isto é, com maior prejuízo dos juizes dos tribunais superiores.


Assim, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ou um juiz conselheiro auferirá apenas mais 9,1% que um juiz de círculo, isto é, em situação que, de permeio, ainda comporta a categoria de desembargador, com dois escalões. Ao nível da escala salarial fixada, esta diferença deveria ser de 18,2%, isto é, precisamente o dobro do actualmente praticado.


Noutra perspectiva, um juiz de círculo ganha agora 91,7% do vencimento de um conselheiro, sendo certo que, na ausências das restrições aqui em foco, essa percentagem não seria maior do que 84,6%.


Revelar-se-á de alguma forma difícil apurar, sem algum grau de subjectivismo, em que medida uma determinada diferença percentual entre as remunerações dos juízes de categorias distintas – por exemplo, os 3% que, a manter-se o quadro actual, separarão os vencimentos de cada uma das categorias da magistratura a partir da categoria de juiz de círculo, corresponderá, ou não, às diferenciações funcionais e hierárquicas respeitantes a cada uma dessas mesmas categorias, quando comparadas entre si.


Diga-se, de qualquer forma, que não foi decididamente intenção do autor da Lei n.º 2/90, a concepção de uma diferenciação de remunerações como a que hoje encontramos, designadamente entre as categorias superiores. Prevendo o mesmo legislador uma actualização proporcional de tais remunerações, fácil se mostra concluir que a intenção do mesmo era a de manter, no âmbito das actualizações anuais, as mesmas diferenças remuneratórias entre as diferentes categorias da magistratura. O diferencial hoje existente decorre de uma limitação posterior dos efeitos inicialmente pretendidos pelo autor da Lei n.º 2/90.


Aliás, diga-se a título ilustrativo, que aos índices estabelecidos pelo legislador na escala que fez anexar, por via da aprovação da Lei n.º 2/90, ao Estatuto dos Magistrados Judiciais – do topo para a base, os índices 260, 250, 240, 220, 200, 190, 175, 155, 135 e 100 -, corresponderão actualmente, em termos reais e respectivamente, os seguintes índices: 240, 233, 227, 220, 200, 190, 175, 155, 135 e 100.


Já é, no entanto, um dado objectivo que às categorias situadas no topo da carreira estarão inevitavelmente associados graus mais elevados de experiência e de responsabilidade, e que o actual sistema não estará decerto a dar a resposta adequada a essa realidade.


É ao nível dos tribunais de recurso ou revista, dotados de magistrados com mais anos de experiência e cujo mérito motivou a sua ascensão na carreira, que o prémio remuneratório é drasticamente diminuído pelo regime aqui em questão, quase se podendo afirmar que, pela via remuneratória, não se veria vantagem no acesso aos tribunais superiores. E igualmente não se estimula a sua potencial permanência nas categorias de topo, logo que preenchidos os requisitos legais para a aposentação.


Não é demais sublinhar a imperatividade da adequação das soluções legais ao princípio da igualdade, consagrado de forma geral no art.º 13.º da Constituição e, para o que aqui nos interessa, de forma especial no art.º 59.º, n.º 1, alínea a), da Lei Fundamental, dispositivo onde se encontra expresso o direito do trabalhador à remuneração do seu trabalho.


Conforme referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 319), estão definidas neste último preceito as orientações fundamentais a que deve obedecer a retribuição do trabalho: “ela deve ser conforme à quantidade de trabalho (i. é, à sua duração e intensidade), à natureza do trabalho (i. é, tendo em conta a sua dificuldade, penosidade ou perigosidade) e à qualidade do trabalho (i. é, de acordo com as exigências em conhecimentos, prática e capacidade)”; por outro lado, “a trabalho igual em quantidade, natureza e qualidade deve corresponder salário igual, proibindo-se desde logo as discriminações entre trabalhadores (…)”.


Recordo Vossa Excelência que o Tribunal Constitucional julgou já inconstitucional, em sede de fiscalização concreta, e por violação dos preceitos constantes dos art.ºs 13.º, 59.º, n.º 1, e 210.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, a norma do art.º 1, n.º 2, da Lei n.º 63/90 – preceito que veio suspender a actualização das remunerações dos juizes na parte em que excedam o ordenado base do Primeiro-Ministro -, embora aplicada a situações reportadas ao período de tempo, entre 1 de Janeiro de 1991 e 1 de Janeiro de 1993, em que a mesma esteve vigente sem o ajustamento que viria a ser aprovado pela Lei n.º 19/93 e pelo Decreto-Lei n.º 339/93, isto é, sem a obrigatoriedade de diferenciação dos escalões por via da aplicação de 3% sobre o montante das remunerações, nos termos já explicitados.


Tendo em atenção que, no caso concreto objecto de apreciação do Tribunal Constitucional, estaria em causa a equiparação remuneratória das categorias de juiz conselheiro e de juiz desembargador, que vigorou efectivamente no período anterior à aprovação da Lei n.º 19/93 -, importa trazer à colação o que se disse no Acórdão daquele Tribunal n.º 237/98, de 4 de Março de 1998, proferida no âmbito do recurso n.º 56/95: “das normas e princípios constitucionais assinalados resulta a obrigação para o legislador ordinário de consagrar, nas carreiras da magistratura judicial e da magistratura do Ministério Público (…), para as várias categorias, a que correspondem diferentes níveis de experiência e de responsabilidade, diferenciações de níveis remuneratórios (…)”.


Não se pronunciou aquele Tribunal, no mencionado aresto, sobre a conformidade à Constituição da solução introduzida pela Lei n.º 19/93, não estando em jogo a sua aplicação no caso concreto.


Não estando também na presente análise em causa a quantificação em si da diferenciação remuneratória que deverá existir entre cada uma das categorias em apreço, de acordo com o que acima ficou já expresso, a verdade é que a tendência de desvalorização das remunerações das categorias situadas no topo da carreira da magistratura judicial, face designadamente aos montantes dos vencimentos atribuídos às categorias colocadas em níveis inferiores que vão resultando das diversas actualizações legais, não deixará de revelar-se de certa forma contrária ao sentido constitucional de retribuição do trabalho, tendo em atenção que os conceitos de natureza e de qualidade do trabalho, atrás explicitados, implicarão necessariamente uma valorização dos elementos mérito, experiência e responsabilidade inerentes às funções concretamente exercidas no âmbito do mesmo.


Este aspecto assumirá especial relevância quando estamos, como é o caso, perante as funções específicas de quem é chamado a julgar e a decidir designadamente em última instância.


É na perspectiva apontada – desvalorização progressiva das remunerações efectivamente percebidas pelas categorias superiores da magistratura (precisamente as categorias que têm inerentes às respectivas funções graus mais elevados de experiência e de responsabilidade), face aos valores que resultam da actualização anual das remunerações das categorias situadas mais abaixo na escala indiciária -, que entendo poder estar posta em causa a conformidade da actual solução legal ao princípio da igualdade, com o conteúdo resultante da conjugação dos art.ºs 13.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da Lei Fundamental.


7. Por outro lado, já noutra perspectiva, diga-se que o sistema retributivo da magistratura judicial encontra-se inegavelmente associado ao regime remuneratório dos titulares de cargos políticos.


Antes de mais, na medida em que a actualização das remunerações correspondentes aos diversos índices da escala salarial dos juizes é feita, nos termos estatuídos pelo art.º 23.º, n.º 3, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, e conforme já mencionado, em função da actualização da remuneração do Presidente da República, a que alude o art.º 2.º da Lei n.º 26/84, na redacção introduzida pela Lei n.º 102/88.


Por outro lado, vê neste momento a judicatura parte das respectivas actualizações remuneratórias suspensas, já que se mostra legalmente suspensa a vigência da norma que precisamente prevê a forma de actualização da remuneração do Presidente da República, acima mencionada.


Tal suspensão perdurará “até que a Assembleia da República aprove os princípios de actualização das remunerações dos titulares dos cargos públicos” (cf. art.º 1.º, n.º 1, da Lei n.º 63/90), incluindo naturalmente os titulares de cargos políticos.


Diga-se, ainda, que o limite a partir do qual estão suspensas as actualizações dos juizes é o montante correspondente à remuneração base do Primeiro-Ministro (cf. art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 63/90).


Finalmente, abstraindo da actual suspensão nos termos explicitados, será sempre aplicado, aos magistrados judiciais, o limite previsto no art.º 3.º, n.º 1, da Lei n.º 102/88, onde se pode ler que “pelo exercício, ainda que em regime de acumulação, de quaisquer cargos e funções públicas, com excepção do Presidente da Assembleia da República, não podem, a qualquer título, ser percebidas remunerações ilíquidas superiores a 75% do montante equivalente ao somatório do vencimento e abono mensal para despesas de representação do Presidente da República”. O n.º 3 do mesmo dispositivo legal avança no sentido de que tal regra “prevalece sobre todas as disposições gerais ou especiais em contrário (…)”. A própria Lei n.º 2/90, que aprovou o actual sistema retributivo dos juizes, estabelece, no respectivo art.º 4.º, n.º 2, que “para efeitos previstos na presente lei não podem, a qualquer título, ser percebidas remunerações ilíquidas superiores ao limite previsto no artigo 3.º da Lei n.º 102/88, de 25 de Agosto”.


Pelo que fica exposto, fácil se torna perceber que a alteração do sistema retributivo dos juizes se encontra definitivamente dependente da modificação do sistema retributivo dos titulares de cargos políticos.


Permita-me, Senhor Primeiro Ministro, que adiante que a solução que de alguma forma – e designadamente daquela acima mencionada – faz depender o desenvolvimento do sistema retributivo dos juizes da evolução do regime remuneratório dos titulares de cargos políticos, não só se revelará desadequada como provavelmente até evitável.


Os Tribunais são, antes de mais e nos termos constitucionais, órgãos de soberania. Em segundo lugar, os Tribunais, não só não são órgãos políticos, como têm toda a sua actividade alicerçada em critérios de independência e de imparcialidade, em termos que naturalmente me escuso aqui de enunciar.


Não feriria o quadro jurídico-constitucional vigente que o legislador optasse por conceber um regime retributivo da magistratura judicial autónomo, no sentido de não o interligar com o sistema retributivo dos titulares de cargos políticos, tal como acontece actualmente.


Por outro lado, recordo a Vossa Excelência as motivações da Lei n.º 63/90, que estabeleceu as suspensões aqui em discussão. O alarme provocado na opinião pública na sequência do anúncio de um aumento substancial das remunerações dos titulares de cargos políticos, matéria que é de grande melindre e se reveste de contornos cuja especificidade me escuso de enunciar, levou o legislador a adiar, há mais de uma década e sine die, as actualizações do regime remuneratório dos cargos em causa.


A efectiva concretização da actualização das remunerações dos políticos está assim, e sempre estará, inevitavelmente condicionada por critérios de oportunidade política.


Vossa Excelência decerto concordará que os mesmos critérios de oportunidade política não deverão, em caso algum, condicionar o investimento numa área tão crucial como é a da justiça, ao nível da gratificação daqueles que têm justamente por missão exercer um dos poderes soberanos do Estado, aplicando a justiça em nome do Povo. Nem tão pouco as motivações que presidiram à feitura da Lei n.º 63/90 justificarão da mesma forma o não aumento dos vencimentos da classe política e a não actualização das remunerações dos juizes.


Por último, será sempre saudável que em nenhuma circunstância, num Estado de direito democrático, os interesses dos titulares do poder político e do judicial, designadamente os que estão aqui em causa, possam de alguma forma cruzar-se.


De resto, quanto à questão da legitimidade de um eventual tratamento mais favorável para a magistratura, face aos restantes titulares de cargos públicos – tem já, aliás, expressão na própria Lei n.º 63/90, quando confrontados os n.ºs 1 e 2 do seu art.º 1.º, respectivamente respeitantes aos titulares de cargos públicos em geral e à magistratura em particular -, veja-se o que ficou dito, precisamente a propósito da diferenciação introduzida nos referidos dispositivos legais, pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão atrás citado: 



“Poderá questionar-se se o tratamento mais favorável para as magistraturas em comparação com os restantes titulares de cargos públicos abrangidos pelo n.º 1 do artigo 1.º, constante da norma do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 63/90, é constitucionalmente legítimo e se existe uma diferenciação fáctica e jurídica concreta “com um peso suficiente para justificar um tratamento jurídico diferenciado”, como se escreveu na decisão recorrida. (…) A resposta é claramente positiva: ao contrário dos outros beneficiários do regime de actualização automática suspenso, os magistrados são titulares permanentes dos cargos públicos que ocupam, não usufruem de prerrogativas especiais de reinserção ou reforma, não beneficiam (excepto os presidentes dos Tribunais Superiores e os titulares dos cargos superiores do Ministério Público) de abonos para despesas de representação, nem, na generalidade dos casos, da possibilidade de constituírem um gabinete de apoio ou de utilizarem viaturas oficiais, além de estarem vinculados constitucionalmente à exclusividade de funções (cfr. o n.º 3 do artigo 218.º da Constituição). Compreende-se, portanto, que o legislador, a quem, em primeira linha, compete “averiguar […] da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico e decidir das circunstâncias e actores a ter como relevantes nessa averiguação […]” (como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 142/85, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1985), tenha diferenciado a situação das magistraturas das restantes”.


Não vou também aqui desenvolver, porque naturalmente conhecido de Vossa Excelência, todo o enquadramento específico – designadamente ao nível dos impedimentos e incompatibilidades – em que se desenvolve, nos termos do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a actividade dos juizes.


Refira-se ainda, o que me não parece despiciendo, a excepção prevista no art.º 3.º, n.º 4, da Lei n.º 102/88, que liberta os gestores públicos da limitação estabelecida no n.º 1.º do mesmo dispositivo legal, isto é, do tecto salarial imposto aos titulares de cargos públicos, correspondente a 75% do somatório do vencimento e abono mensal para despesas de representação do Presidente da República, por maioria de razão podendo exceder o vencimento do Primeiro-Ministro.


Compreende-se que razões ponderosas, aliás com alguma evidência, justificam a excepção. Não creio, contudo, que os titulares de órgãos de soberania como sejam os em causa na presente análise, possam merecer, em atenção a essa qualidade e a todas as garantias constitucionais próprias da magistratura, um tratamento mais desfavorável – a limitação actual imposta aos juizes nem sequer é reportada à remuneração do Presidente da República, mas antes à do Primeiro-Ministro -, impondo-lhes limitações que mais bem se percebem no seio da Administração.


Não escapará a Vossa Excelência que os gestores públicos, que, de algum modo, se podem considerar na dependência do Governo, ainda que não no uso do poder de direcção (cfr. art.º 199.º, d), da Constituição), não têm as suas remunerações limitadas pela remuneração do Primeiro-Ministro – nem pela remuneração do Presidente da República, nos termos mencionados -, sendo que aos juizes, titulares de órgãos de soberania independentes, já essa limitação é imposta.


8. Por tudo o que fica acima exposto, entendo que a solução em vigor, aqui em discussão, se revelará não só pouco adequada ao quadro jurídico-constitucional actual, como até provavelmente incompatível com alguns dos princípios fundamentais do mesmo decorrentes, nos termos acima devidamente explicitados.


Motivo pelo qual deixarei, nesta sede, à consideração de Vossa Excelência, pelos motivos atrás adiantados, a oportuna promoção, pelo Governo, de iniciativa legislativa tendo em vista a revogação, pela Assembleia da República, da norma constante do art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 63/90, que precisamente prevê a suspensão da actualização das remunerações dos magistrados judiciais na parte em que venham a exceder a remuneração base do cargo de Primeiro-Ministro.


Todas as considerações acima tecidas aplicar-se-ão à magistratura do Ministério Público – as alterações ao sistema retributivo dos magistrados judiciais e a consequente suspensão das actualizações anuais que motivaram a análise acima feita foram previstas, para o que aqui interessa, em termos idênticos para a magistratura do Ministério Público (cf. art.º 2.º da Lei n.º 2/90) -, razão que me leva a propor a Vossa Excelência que as modificações apresentadas venham a ser igualmente consideradas para o regime remuneratório destes magistrados.


A esta proposta subjaz a minha profunda convicção, Senhor Primeiro-Ministro, de que os Tribunais são a primeira e a última garantia de defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos num Estado de direito democrático. A promoção – e, neste caso, a mera reposição – do tão necessário equilíbrio no seio de quem tem em mãos o poder e a responsabilidade de administrar a justiça, é seguramente um caminho para a concretização e o aprofundamento dos valores e princípios mais elementares da nossa Lei Fundamental.


Assim, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, b), da Lei 9/91, de 9 de Abril, recomendo ao Governo, na pessoa de Vossa Excelência, Senhor Primeiro-Ministro, 







que seja oportunamente promovida iniciativa legislativa junto da Assembleia da República, tendo em vista a revogação da norma constante do art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 63/90, de 26 de Dezembro, que prevê a suspensão da actualização das remunerações e pensões dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público na parte em que venham a exceder o vencimento base do cargo de Primeiro-Ministro.


Na expectativa de que o objecto da presente Recomendação mereça da parte de Vossa Excelência, Senhor Primeiro-Ministro, a atenção que entendo desejável, aguardo naturalmente pela comunicação do Governo sobre a posição que assumirá perante o acima recomendado.



O Provedor de Justiça,


H. Nascimento Rodrigues