RECOMENDAÇÃO N.º 5/B/05
(Artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)
Entidade visada: O Primeiro-Ministro
Procº: R-4041/03
Data: 2005/09/20
Assunto: Domínio público marítimo. Regiões Autónomas.
Área: A6
1. Nos termos do art.º 84.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), pertencem ao domínio público, para além dos restantes bens aí assinalados e de outros bens que a lei classifique como tal, as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos (alínea a), primeira parte, da citada disposição).
O legislador constituinte remete ainda para a lei a definição dos bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites (n.º 2 do mesmo art.º 84.º). Aquela lei é necessariamente uma lei da Assembleia da República ou um decreto-lei autorizado, já que a definição e o regime dos bens do domínio público integram o rol de matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (v. art.º 165.º, n.º 1, alínea v), da CRP).
Para o que aqui importa analisar, referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (1) que “o conceito de águas territoriais (a que alude a alínea a), primeira parte, do acima identificado n.º 1 do art.º 84.º da CRP) abrange fundamentalmente as águas exteriores com os seus leitos. No âmbito normativo de águas territoriais exteriores incluem-se: (a) o mar territorial, isto é, uma zona de mar adjacente ao território (…); (b) as águas arquipelágicas (…) dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”.
A propósito do domínio público marítimo, esclarecem os mesmos autores (2) que “compete à lei a determinação do sujeito titular dos bens do domínio público, embora pareça natural que certos bens não podem deixar de integrar o domínio público do Estado, por serem inerentes ao próprio conceito de soberania (como sucede com o domínio público marítimo e aéreo)” (sublinhados meus).
2. Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, que regulamenta o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico, republicado em anexo à Lei n.º 16/2003, de 4 de Junho, determina, no seu art.º 5.º, n.º 1, que se consideram “do domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sempre que tais leitos e margens lhe pertençam, e bem assim os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos públicos do Estado”. As duas referidas noções, de leito e de margem, designadamente para os efeitos em referência, encontram-se explicitadas nos art.ºs 2.º e 3.º do diploma.
No art.º 8.º do Decreto-Lei em referência estatui o legislador os procedimentos tendo em vista o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens públicos, estabelecendo-se, no respectivo art.º 10.º, n.º 1, que “a delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza compete ao Estado, que a ela procederá oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados”.
Decorre assim do quadro constitucional e legal acima identificado, que as margens das águas do mar, incluindo as dos Açores e da Madeira, tal como definidas no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, integram o domínio público do Estado.
Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003 (3), “torna-se assim manifesto que o domínio público marítimo resultante do disposto na lei compreende, nomeadamente por razões de necessária acessoriedade – as margens são indispensáveis para possibilitar a utilização das águas –, as faixas de terreno, legalmente qualificadas como margem, que sejam contíguas às águas do mar ou às demais águas sujeitas à influência das marés, desde que esses terrenos estejam na pertença do Estado, o qual, por sua vez, beneficia de uma presunção juris tantum de que os mesmos são propriedade pública (…)”.
3. No que toca concretamente às Regiões Autónomas, e tendo em linha de conta que a Constituição estabelece a existência de um domínio público regional, devendo a lei proceder à respectiva delimitação face, designadamente, ao domínio público do Estado (4), pode ler-se, no art.º 144.º da Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, republicada em anexo à Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, que aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, o seguinte:
“1. Os bens do domínio público situados no arquipélago, pertencentes ao Estado, bem como ao antigo distrito autónomo, integram o domínio público da Região.
2. Exceptuam-se do domínio público regional os bens afectos à defesa nacional e a serviços públicos não regionalizados não classificados como património cultural”.
Por sua vez, o art.º 112.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, e republicado em anexo à Lei n.º 61/98, de 27 de Agosto, dispõe de forma semelhante, apenas utilizando a expressão “bens que interessam à defesa nacional” em vez de “bens afectos à defesa nacional”.
As conclusões por um lado de que o domínio público marítimo – que abrange, conforme decorre explicitamente da lei, nos termos acima assinalados, as faixas de terrenos legalmente qualificadas como margens –, estará afecto à defesa nacional (ou interessará à defesa nacional) e, por outro, que “não é constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região (Autónoma)” (5) (6), resultam suficientemente determinadas na jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria.
Assim sendo, pode ler-se no já acima identificado Acórdão n.º 131/2003 o seguinte:
“Conforme sublinha a jurisprudência portuguesa, os bens indissociavelmente ligados à soberania não podem pertencer ao domínio público regional, devendo permanecer integrados no domínio público necessário do Estado, tomado este na acepção de pessoa colectiva de direito público que tem por órgão o Governo”.
Citando Gomes Canotilho e Vital Moreira, refere ainda aquele Tribunal, no mesmo aresto, que “dada a natureza não soberana das Regiões Autónomas, elas não podem ser titulares daquele domínio público intrinsecamente ligado à soberania do Estado (mar territorial, etc.), sem prejuízo das competências administrativas que lhe sejam atribuídas sobre ele”.
Aduz-se ainda naquele Acórdão:
“Não sendo, assim, possível admitir “a transferência dos bens em apreço para as Regiões”, só poderá (…) subscrever-se a constitucionalidade de uma disposição tal como (as dos Estatutos da Madeira e dos Açores, acima identificadas), se se entender que a excepção feita aos “bens que interessem à defesa nacional e os que estejam afectos a serviços públicos não regionalizados” compreende os “que se incluem no domínio marítimo e no domínio aéreo.
(…)
Podemos deste modo concluir que, designadamente por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional, nos termos do artigo 273.º da Constituição, não é possível a transferência para os Governos Regionais de determinados bens, nomeadamente os que integram o domínio público marítimo, domínio público necessário do Estado (7). Assim sendo, os Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas não operaram qualquer transferência desses bens do domínio público marítimo, que continuam, assim, a ser bens do Estado” (8).
4. A questão aqui em análise prende-se com o exercício, pelas Regiões Autónomas – onde naturalmente o problema se coloca com maior acuidade (9) –, de determinadas faculdades relativas à utilização dos bens em causa, designadamente as que aparecem associadas à possibilidade de atribuição de direitos de usos privativos sobre os mesmos.
É importante começar por analisar as atribuições dos órgãos próprios das Regiões Autónomas, relacionadas com o tema em discussão, que aparecem estabelecidas nos diplomas regionais.
Quanto à Região Autónoma da Madeira, e nos termos do Decreto Regulamentar Regional (DRR) n.º 6/2005/M, de 9 de Março, que aprova a orgânica da Secretaria Regional do Equipamento Social e Transportes, pode ler-se, no art.º 62.º, que a Direcção Regional de Ordenamento do Território, em estreita ligação com o Secretário Regional do Equipamento Social e Transportes, designadamente “gere e fiscaliza o domínio público marítimo (…) sem prejuízo das competências atribuídas por lei a outras entidades”.
Por seu turno, ao director regional de Ordenamento do Território compete designadamente “gerir e fiscalizar o domínio público marítimo, sem prejuízo das competências atribuídas por lei a outras entidades (…), propor ao Secretário Regional a emissão de licenças ou atribuição de concessões de uso privativo do domínio público marítimo e todos os actos respeitantes à sua execução, modificação ou extinção (…) (e) propor ao Secretário Regional a fixação de taxas, no âmbito do domínio público marítimo” (respectivamente alíneas f), h) e l) do referido DRR n.º 6/2005/M).
Finalmente, compete ao Secretário Regional do Equipamento Social e Transportes, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, alínea f), daquele DRR, “fixar os preços, taxas e tarifas, conceder licenças e autorizações, bem como outorgar concessões relativas aos vários sectores de actividade das suas competências” (designadamente litoral, portos e aeroportos, nos termos do art.º 1.º do diploma).
Já no que respeita aos Açores, estabelece o art.º 20.º do Decreto Regulamentar Regional (DRR) n.º 12/2000/A, de 18 de Abril, que aprova a orgânica da Secretaria Regional do Ambiente – hoje, Secretaria Regional do Ambiente e do Mar (10) –, como atribuições da Direcção de Serviços dos Recursos Hídricos, “emitir, nos termos da legislação em vigor, licenças de utilização do domínio hídrico (…), exercer na Região as competências transferidas no âmbito do domínio público marítimo (…) (e) acompanhar e fiscalizar, em articulação com os demais organismos competentes, projectos e obras no domínio hídrico” [(n.º 1, respectivamente alíneas g), i) e m)].
5. Face ao que acima fica dito, importará agora analisar que competências específicas estarão implícitas nas atribuições das Regiões Autónomas acima assinaladas, no que diz respeito ao domínio público marítimo.
Considerando, conforme já dito, a impossibilidade de transferência, para as Regiões Autónomas, da titularidade de bens do domínio público marítimo, e também a circunstância de a definição e o regime dos bens do domínio público integrarem o rol de matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, conclui-se, desde logo, que estará excluído, quanto aos bens do domínio público marítimo, o exercício de poderes legislativos pelas Regiões Autónomas.
De acordo com o que se pode ler por sua vez no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 330/99 (11), “as razões que levam a integrar a matéria atinente à definição e ao regime dos bens do domínio público na reserva de competência legislativa parlamentar – designadamente, a necessidade de preservar a integridade desses bens e o respeito pela sua afectação a finalidades de indiscutível interesse nacional – valem inteiramente para a determinação das respectivas condições de utilização, que assim são parte integrante do regime daqueles bens. (…) A reserva da Assembleia da República abrange, por isso, tudo quanto diga respeito ao regime do domínio público do Estado, sendo que nessa abrangência – repete-se – se inclui a definição das condições de utilização dos bens do domínio público (a sujeição a um uso geral, a um uso particular, a um uso especial ou a um uso excepcional, neste caso, o regime de licença ou de concessão)”.
Assim sendo, será também de eliminar a possibilidade de exercerem as Regiões Autónomas qualquer tipo de poder regulamentar sobre a mesma matéria. Conforme refere Pedro Lomba (12), “excluído o poder legislativo das regiões autónomas sobre o domínio público do Estado, também está excluído o poder de as regiões autónomas regulamentarem um acto legislativo estadual, atribuindo as competências exercidas pelos órgãos do Estado às autoridades regionais”.
Acrescenta ainda que,
“De facto, os referidos diplomas regionais carecem de legitimidade constitucional para derrogar para as respectivas regiões as normas de competência sobre o domínio público marítimo fixadas nas leis estaduais. Qualquer transferência de competências estaduais para o âmbito regional tem de ser decidida pelos órgãos do Estado, não pelos órgãos regionais. Se é certo que as regiões dispõem também de competência para regulamentar as leis gerais dos órgãos de soberania (art.º 227.º, alínea d), da Constituição), nenhuma regulamentação é aqui possível, uma vez que não foi efectivada qualquer transferência para as regiões de competências sobre bens do domínio público hídrico”.
Faço ainda notar que, perante tudo o que acima fica exposto, não pode ser uma norma como a que se encontra plasmada no art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 468/71 – onde se determina que “nas áreas sob jurisdição portuária e nas Regiões Autónomas as competências conferidas pelo presente diploma são exercidas, respectivamente, pelos departamentos, organismos ou serviços a que legalmente estão atribuídas e pelos departamentos, organismos ou serviços das respectivas administrações regionais autónomas com atribuições correspondentes” – a viabilizar o exercício sozinho, pelas Regiões Autónomas, de poderes de disposição sobre os bens do domínio público marítimo (13) (14).
6. Assentes as duas referidas conclusões, quanto aos poderes legislativo e regulamentar, nada parece no entanto impedir que as Regiões Autónomas assumam, quanto à matéria aqui em análise, poderes de cariz administrativo (15), designadamente os que envolvem a atribuição, mediante licença ou concessão, de direitos de usos privativos sobre bens do domínio público estadual. Aliás, os próprios diplomas regionais expressamente determinam os termos em que esta competência regional deverá ser exercida, conforme decorre dos normativos acima citados constantes dos DRR n.º 6/2005/M e DRR n.º 12/2000/A.
Esclarece Pedro Lomba (16) que “na defesa nacional compreendem-se, certamente, poderes necessários à sua satisfação, que entram, por conseguinte, no conceito de “reserva do governo da República”, não outros poderes que sejam irrelevantes para a defesa nacional e para a unidade do Estado. O regime jurídico dos bens do domínio público – e também do domínio público natural – é, como afirma Barcelona Llop, caracterizado pela sua heterogeneidade. Mais, o legislador está apenas constitucionalmente proibido de alienar o domínio público necessário, de lhe subtrair algum dos bens identificados pela Constituição e comprometer o cumprimento unitário das funções – de defesa nacional, por exemplo – que lhe sejam inerentes. Fora disso, o legislador tem a liberdade conformadora própria da função soberana que exerce”.
Diz ainda:
“Sendo assim, se se pode afirmar em regra que a dominialidade pública acarreta uma proibição de dispor de faculdades necessárias para a garantia de princípios e tarefas constitucionais, parece-nos que não está excluída a possibilidade de transferência de um poder ou faculdade bem especificados, desde que não seja posto em causa o núcleo essencial da dominialidade e, naturalmente, desde que haja conexão entre tais poderes e o interesse específico das regiões.
(…)
Simplificando, não se trata de pretender a redefinição legal dos limites do domínio público marítimo ou dos bens que lhe estão afectos; nem se trata de subverter o princípio da unidade do Estado, alienando inconstitucionalmente nichos de funções do Estado primaciais como a defesa nacional.
(…)
Na realidade, do que se trata é de reconhecer que o estatuto jurídico associado à dominialidade não é uniforme e que, se certos poderes ou faculdades são intransferíveis, outros, menos vitais e nada atentatórios da unidade do Estado, não o são. Trata-se de tirar consequências da inclusão na Constituição de uma norma sobre o interesse específico regional (…). Trata-se também de afirmar que o domínio público do Estado é um conceito instrumental para a satisfação de outros fins de utilidade pública que não os da mera preservação da dominialidade. Veja-se: se a Constituição atribui, nomeadamente, às Regiões Autónomas competência para definir o regime jurídico de utilização do domínio hídrico (naturalmente o regime jurídico de utilização do domínio hídrico regional, já que a definição do regime de utilização do domínio hídrico estadual, designadamente do domínio marítimo, aqui em análise, terá de ser feita por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado), este interesse específico pode constituir um fundamento para a transferência de poderes ou faculdades de decisão administrativa sobre bens afectos ao domínio público hídrico estadual. Esses poderes serão apenas de aproveitamento (ou de utilização) e o seu exercício terá que ser rigorosamente condicionado”.
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003, por diversas vezes acima referido, faz-se alusão a um Parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo (17) onde se pode ler, no seguimento das orientações atrás explicitadas sobre a impossibilidade de transferência, designadamente para as Regiões Autónomas, de poderes de disposição sobre os bens em causa, o seguinte:
“Outro tanto se não diria da transferência de poderes secundários, que não afectasse a autoridade suprema do Estado nesta matéria, porque seriam configurados como delegação administrativa de competências nos órgãos ou serviços das Regiões Autónomas. De resto, tal possibilidade já foi encarada favoravelmente por esta Comissão (…)”.
De facto, do Parecer n.º 5880 (18) desta mesma Comissão – a que faço referência na minha Recomendação n.º 2/A/02, já acima mencionada (19) –, resultam duas conclusões, também referidas naquela Recomendação, e que passo a transcrever desta:
“- os bens do D.P.M (domínio público marítimo) na Região Autónoma dos Açores (em causa no Parecer da Comissão e na minha Recomendação citada), na medida em que constituem bens de interesse para a defesa nacional e, nessa medida, são também de interesse nacional, são da titularidade do Estado, com os inerentes poderes de manutenção, delimitação e defesa do mesmo domínio;
– a atribuição de direitos de uso privativo sobre bens do D.P.M. não colide nem interfere com a pertença daqueles bens dominiais ao Estado, podendo ser atribuídos por quaisquer entidades que sejam ou venham a ser declaradas legalmente competentes para o efeito, sem prejuízo do regime jurídico de utilização desses bens e da competência legislativa da Assembleia da República fixada pelo artigo 165.º, n.º 1, alínea v), da Constituição da República Portuguesa, quanto à definição e regime dos bens do domínio público”.
Se se mostrará admissível que as Regiões Autónomas atribuam direitos de usos privativos mesmo sobre bens que integram o domínio público estadual, no caso o domínio público marítimo, já não parece no entanto possível que esses poderes sejam exercidos pelos órgãos regionais à margem de uma autorização expressamente concedida, para o efeito, pelo titular do bem em causa, ou seja, o Estado.
De facto, não se vê de que forma poderão as Regiões Autónomas atribuir direitos de usos privativos sobre bens do domínio estadual marítimo, sem estarem os órgãos regionais competentes habilitados com uma autorização que permita a atribuição desses direitos, autorização essa a conceder naturalmente pelo Estado, titular do bem, e competente para decidir do tipo de utilização a dar ao mesmo.
Dito por outras palavras, não fará sentido que, assente a impossibilidade de transferência, designadamente para as Regiões Autónomas, dos bens do domínio público marítimo, fosse por sua vez possível, através do exercício de poderes associados à atribuição, mediante concessão ou licença, de direitos de usos privativos sobre esses terrenos, que as Regiões Autónomas decidissem – sozinhas – efectivamente sobre a utilização a dar aos referidos bens, na prática pondo e dispondo sobre os mesmos, com o risco de comprometimento dos fins a que aqueles estão afectos, definidos numa lógica de gestão centralizada da soberania do Estado.
Conforme se pode ler no acima identificado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003 “é, assim, possível afirmar, como o fazem Gomes Canotilho e Vital Moreira (…), que existe uma “reserva de governo da República”, nomeadamente em matéria de “relações externas, defesa […], gestão do espaço aéreo e marítimo”, e que não podem ser transferidas para as Regiões funções como as de “defesa nacional […] do controlo do espaço aéreo e do domínio público marítimo”. Torna-se, portanto, claro que a autonomia das Regiões não afecta a soberania do Estado, devendo, para tal, ser “reservados ao aparelho de Estado todos os poderes tidos por constitucionalmente necessários para que o sistema funcione unitariamente”.
Acrescenta-se no mesmo aresto:
“É corolário necessário da não transferibilidade dos bens do domínio público marítimo do Estado a impossibilidade de transferência dos poderes que sejam inerentes à dominialidade, isto é, os necessários à sua conservação, delimitação e defesa, de modo que tais bens se mantenham aptos a satisfazer os fins de utilidade pública que justificaram a sua afectação”.
7. Nos termos do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro, que estabelece o regime da utilização do domínio hídrico sob jurisdição do Instituto da Água (INAG), as licenças de utilização dos bens em causa são atribuídas pelas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (v. art.º 4.º, alínea v), do Decreto-Lei n.º 104/2003, de 23 de Maio) – inexistentes nas Regiões Autónomas – e os contratos de concessão autorizados pelo Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional. Esta competência do membro do Governo pode ser delegada no presidente do INAG (cf. art.ºs 5.º, n.º 2, e 9.º, n.º 2, do diploma).
Por seu turno, é da competência do INAG, concretamente da sua Divisão de Ordenamento e Protecção, “coordenar, a nível nacional, a administração do domínio hídrico e apoiar as direcções regionais do ambiente e recursos naturais (hoje, Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional) no processo de licenciamento e concessão das utilizações, assegurando directamente o próprio licenciamento sempre que este não possa ser assegurado por aquelas entidades” (v. art.º 8.º, n.º 3, alínea g), do Decreto-Lei n.º 191/93, de 24 de Maio).
Ao que creio, às áreas sob jurisdição portuária continuarão a aplicar-se, nesta matéria, os art.ºs 17.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 468/71.
8. Como se disse, não parecendo ocorrer impedimento para que os poderes das Regiões Autónomas associados ao domínio marítimo estadual incluam a possibilidade de atribuição, pelas mesmas, de direitos de uso privativos sobre os bens em causa, já não me parece no entanto que esses poderes possam ser exercidos sem que para o efeito seja obtida, pelos órgãos próprios das Regiões, a necessária autorização por parte do Estado, titular dos bens em causa (20).
Perante tudo o que fica dito, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a Vossa Excelência, Senhor Primeiro-Ministro,
A promoção, pelo Governo, de medida legislativa que expressamente consagre a obrigatoriedade de as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira obterem autorização prévia do Estado – através do Governo ou de outra entidade do Estado à qual seja conferida essa competência – para a atribuição, a terceiros, de direitos de usos privativos sobre bens do domínio público marítimo.
Agradecendo desde já a atenção que Vossa Excelência queira dispensar ao teor desta Recomendação, aguardarei pela comunicação sobre a posição que o Governo venha a tomar sobre o mesmo, nos termos do art.º 38.º, n.º 2, da Lei 9/91, de 9 de Abril.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues
Notas de rodapé:
(1) In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 412.
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(2) Ob. cit., p. 413.
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(3) Publicado no Diário da República, I Série-A, de 4 de Abril de 2003.
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(4) “O n.º 2 do artigo 84.º da Constituição remete para a lei – desde logo, para os estatutos regionais – a definição dos bens que integram o domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais. Essa definição, bem como o regime de quaisquer bens que integram o domínio público, cabe no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (…)”. In Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003, acima identificado.
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(5) Acórdão n.º 131/2003 do Tribunal Constitucional.
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(6) Refere Ana Raquel Moniz que “independentemente do reconhecimento (constitucionalmente consagrado) do domínio público regional (enquanto “corolário da autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas”) (…), torna-se imprescindível acentuar o facto de que certos bens, atenta a função que desempenham ou a sua inerência à própria identidade (soberania) do Estado português (face à sociedade internacional), hão-de impreterivelmente constituir domínio público estadual”. Relativamente aos preceitos dos Estatutos das Regiões Autónomas acima identificados, adianta ainda que “em obediência à ideia segundo a qual algumas coisas públicas, atentas as funções que desempenham e o significado que revestem inclusivamente para a própria identidade e soberania nacional, não podem deixar de se encontrar na titularidade do Estado, aqueles preceitos determinam a exclusão do domínio público regional dos bens afectos à defesa nacional (em plena consonância com a ideia de “concorrência instrumental de defesa nacional para as tarefas fundamentais do Estado” e com o carácter e objectivos da defesa nacional, talqualmente foram concebidos pelo ponto 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 9/94, de 11 de Dezembro) (…)” (in “O Domínio Público – o Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade”, Almedina, Janeiro de 2005, pp. 123, 124 e 125).
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(7) “Pertencem ao “domínio público necessário” os bens que não podem pertencer senão ao Estado, e o seu estatuto jurídico não pode ser outro senão o da dominialidade (domínio marítimo, domínio hídrico, domínio aéreo, domínio militar)”: Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 412.
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(8) Esta orientação esteve, de resto, subjacente à minha Recomendação n.º 2/A/02, que pode ser consultada em http://www.provedor-jus.pt/
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(9) “A repartição de competências entre o Estado e as regiões autónomas em matéria de permissões administrativas para a utilização dos recursos hídricos decorre da respectiva titularidade do domínio hídrico. Assim, no domínio hídrico do Estado, cabe ao Estado exercer poderes de disposição e licenciamento; no domínio hídrico das regiões, tais poderes poderão ser exercidos pelas autoridades regionais. (…) Mas existe, todavia, uma “zona cinzenta” que tem sido um foco de conflitualidade entre a administração do Estado e a administração das regiões: o denominado domínio público marítimo-terrestre, correspondente à zona onde o mar entra em contacto com a terra firme. (…) As pretensões regionais sobre zonas do seu próprio território afectas ao domínio público marítimo – por exemplo, no respeitante ao licenciamento da actividade de extracção de inertes – são recorrentes”: Pedro Lomba, num artigo intitulado “Regiões Autónomas e Transferência de Competências sobre o Domínio Natural”, numa anotação precisamente ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003 a que acima se faz referência, in “Jurisprudência Constitucional” n.º 2, Abril-Junho 2004, pp. 57 e segs.
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(10) V. art.º 3.º, alínea h), do Decreto Regulamentar Regional n.º 38-A/2004/A, de 11 de Dezembro.
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(11) Publicado no Diário da República, I-Série-A, de 1 de Julho de 1999.
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(12) Loc. cit.
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(13) Esta norma não foi objecto de pedido de apreciação da constitucionalidade no processo que deu origem ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003. Assim sendo, apenas foi declarada inconstitucional a norma contida no art.º 1.º do decreto n.º 30/IX da Assembleia da República, na parte em que pretendia introduzir um n.º 1 no referido art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 468/71, com o seguinte teor: “Os poderes conferidos pelo presente diploma ao Estado cabem nas Regiões Autónomas aos respectivos órgãos de governo próprio”.
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(14) De qualquer forma, o teor desta norma contida actualmente no art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 468/71 não deixa de suscitar dificuldades. Conforme refere, a propósito da mesma, Pedro Lomba “face ao teor do art. 36.º do regime jurídico dos terrenos do domínio hídrico (…), o intérprete depara-se com essa mesma dúvida: será admissível a transferência de competências sobre bens do domínio público marítimo estadual para as regiões autónomas?” (loc. cit.).
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(15) “A questão tem larga importância no domínio público hídrico (…) porquanto a actividade humana neste domínio é naturalmente uma actividade condicionada. Embora existam formas de utilização livre dos recursos hídricos, as utilizações mais relevantes e com maior impacto na estrutura física da água estão sujeitas a licenças e autorizações de autoridades administrativas”: Pedro Lomba, loc. cit..
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(16) Loc. cit.
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(17) N.º 5945, de 18 de Janeiro de 2002.
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(18) De 9 de Março de 2000.
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(19) V. nota de rodapé n.º 8.
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(20) “O uso privativo, visto não equivaler à utilização “normal” (i.e., correspondente à destinação ordinária da coisa ou à sua afectação) do bem do domínio público, pressupõe a outorga de um título jurídico-administrativo nesse sentido que defina com rigor os poderes do respectivo titular (o qual apenas pode retirar certas utilidades da coisa) relativamente a um bem dominial determinado e, em regra, a uma porção delimitada desse bem. Por outra banda, a utilização privativa dos bens em causa não pode prejudicar o exercício da função pública determinante da decisão legislativa de dominialização da coisa e à qual esta permanece adstrita, pelo que também ao respeito dessa função está vinculado o particular que beneficia da utilização privativa”: Ana Raquel Moniz, ob. cit., p. 454.
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