ANOTAÇÃO
Entidade visada: Câmara Municipal de Portimão
Proc.º: R-1604/07
Área: A1
Assunto: obras promovidas sob responsabilidade do município – danos no aviamento comercial de particular – actividade de hospedagem – responsabilidade civil extracontratual do município.
1. ……………….., suscitou a intervenção do Provedor de Justiça junto da Câmara Municipal de Portimão, imputando às obras de restauro e alteração do edifício ……….. municipal – Palácio Sárrea – prejuízos para a exploração do estabelecimento de hospedagem ………… afirmando que a implantação do estaleiro e o corte das vias envolventes dificultaram o trânsito de veículos e peões transtornando o acesso da clientela, do que derivaram prejuízos de facturação de tal sorte que aconselharam ao encerramento daquele estabelecimento.
2. Ouvida a Câmara Municipal de Portimão, veio informar que os trabalhos relativos à primeira fase se encontram concluídos desde Dezembro de 2006, tendo a demora na sua conclusão ficado a dever-se à necessidade da reformulação do projecto, por forma a melhor garantir a satisfação do interesse público.
3. Acrescentou, ter sido em 10.07.2007, assinado o contrato de adjudicação relativo à 2ª fase, mantendo-se os respectivos trabalhos suspensos até ao próximo dia 24 de Setembro, isto porquanto, a enorme afluência de transeuntes na zona, durante a época estival desaconselhou, por motivos de segurança, a montagem do equipamento pesado necessário à execução desta fase da obra.
4. Foram juntos aos autos registos fotográficos do local e sua envolvente, revelando a existência de condições de circulação viária e pedonal na zona, mantendo-se, todavia, sacrificado o passeio existente frente ao Palácio Sárrea e diminuído o espaço útil da via.
5. Dispõe o nº 1 do art. 9º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21.11.1967 (1) que “O Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais“.
6. Da leitura do citado preceito legal resulta, desde logo, que esta responsabilidade não existe sempre que a Administração, dentro da legalidade, imponha sacrifícios ou prejuízos aos particulares.
7. A regra, aliás, é a de que a actuação legítima dos órgãos administrativos, não pode, nem deve (por razões de defesa do erário público), conferir direito à reparação, pelo que, na generalidade destes casos, os particulares nenhuma indemnização podem reclamar.
8. Significa isto que a responsabilidade de que trata este artigo 9º tem carácter excepcional, só existindo nas hipóteses em que, como ele próprio estabelece, se verifique que o acto causou prejuízo especial e anormal.
9. Isto porquanto se entendeu dever assegurar-se o princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos.
10. Considerou-se que exercendo-se a actividade administrativa no interesse de todos, se ela for causadora de danos apenas para alguns, está quebrado o equilíbrio e aberto o caminho à desigualdade e à discriminação: nestes casos a reparação visará o restabelecimento desse equilíbrio.
11. Recorde-se, o art. 9º do acima citado diploma legal exige que os prejuízos a indemnizar sejam especiais e anormais, pelo que, deverá em presença de cada caso em concreto dever ajuizar-se se estão preenchidas essas duas condições cumulativas (estando subjacente a conclusão de que o acto reclamado terá sido causa adequada do prejuízo)
12. Por prejuízo anormal deve entender-se aquele que se revista de certo peso ou gravidade, em termos de ultrapassar os limites daquilo que o cidadão tem de suportar enquanto membro da comunidade, isto é, que extravase dos encargos sociais normais, exigíveis como contrapartida da existência e funcionamento dos serviços públicos. Prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas que incide desigualmente sobre um indivíduo ou grupo determinado (2).
13. Surgem as maiores dificuldades em concluir pela verificação da especialidade e anormalidade do prejuízo reclamado, na situação relatada nos autos, pelos motivos que passamos a expor.
14. Aparece suficientemente indiciado ter havido uma diminuição das condições de acesso ao estabelecimento de hospedagem identificado o qual nunca ficou, todavia, absolutamente privado de ligação à via pública.
15. Por outro lado, as obras reclamadas, implicaram também alterações na circulação em outras vias envolventes, causando, por isso, incómodos e prejuízos de natureza variada, não só para aquele estabelecimento, como também para a restante vizinhança próxima.
16. Não pode, pois, concluir-se, que as limitações decorrentes dos trabalhos reclamados posicionaram o reclamante numa situação de desigualdade – e de verdadeira especialidade – relativamente aos outros moradores, comerciantes ou não, bem como às muitas pessoas e empresas que por motivos pessoais ou profissionais se relacionaram com elas, os quais, durante o tempo em que os trabalhos decorreram, também sofreram incómodos e prejuízos de vária ordem susceptíveis de avaliação (pense-se nos desvios de percurso a que foi obrigado o pessoal ao serviço dos diversos estabelecimentos instalados na zona e suas redondezas, com sobrecarga de recursos humanos e desperdício de horas de trabalho, ou nos transtornos causados na vida pessoal e familiar dos moradores, com especial relevo para os mais dependentes, como crianças, idosos e deficientes).
17. Parece, assim, que os encargos e incómodos infligidos pela obra foram relativamente generalizados o que afastará a legalmente exigida condição de especialidade – que só se verificaria se pudesse concluir-se que teria o reclamante sido obrigando a contribuir de modo desigual para os encargos públicos, a ponto de só através do arbitramento de uma indemnização a seu favor poder ser reposta a equidade e a justiça.
18. Haveria, ainda, de provar, que por via da obra reclamada foram provocados prejuízos anormais e inusitados (segunda condição legalmente exigida pela acima citada norma legal) não inerentes aos riscos normais da vida em sociedade, por ultrapassarem os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da administração.
19. Parece certo ter a clientela visto o seu direito de acesso ser objecto de compressão. Todavia, não resulta da instrução ter-lhe sido totalmente suprimida essa faculdade.
20. Importaria, pois, saber, para averiguar da anormalidade do prejuízo, se o facto danoso impediu o “gozo-standard” (gozo médio) do imóvel para a função a que vinha sendo destinado, conceito acolhido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, enunciado nos seguintes termos por GOMES CANOTILHO (3):
“Perante a acção dos poderes públicos (…) é garantido o gozo médio ou standard dos bens pertencentes ao particular de modo que quando este gozo é tolhido por um acto normativo ou administrativo, estamos em presença de um acto ablatório gerador de indemnização.
O princípio segundo o qual a propriedade privada em sentido lato, no nosso actual sistema jurídico, orientado por determinadas finalidades sociais, é obrigada a admitir limites e vínculos, encontra um critério limite no conceito de gozo standard dos bens privados, como conceito atributivo de um significado à garantia constitucional da propriedade. Nestes termos, o critério indicado poderá constituir um índice de individualização das intervenções ablatórias que, embora feitas com instrumentos diversos da expropriação formal, dão lugar a uma diminuição ou subtracção do gozo standard da coisa“ (4).
21. No caso sub judice, relevará a circunstância de o prédio não ter ficado em encrave absoluto, por via dos constrangimentos à circulação rodoviária e pedonal, ou ter sido posta em causa a sua adequação à função de hospedagem. Não resulta, assim, evidente, dos elementos trazidos à instrução, que com a realização das obras tivesse o estabelecimento ficado privado das condições e das utilidades que medianamente se associam a um local com aquelas características (5).
22. Pelos motivos expostos, encontramos redobrada dificuldade em formular um juízo de valor quanto à imputada responsabilidade ao município de Portimão pelos reclamados danos no aviamento comercial, por falta de melhor prova quanto à especialidade e anormalidade dos prejuízos.
23. Julgamos, pois, que melhor seria ponderar o impetrante o recurso às instâncias judiciais próprias, junto das quais, e através dos meios de prova admitidos em juízo, poderá tentar fazer valer a sua pretensão.
24. Sugere-se, por consequência, o arquivamento dos autos ao abrigo da previsão contida no art. 31º, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril
(1) Que regula a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública.
(2) Em jurisprudência que julgamos unânime sublinham-se, entre muitos outros: Acórdão do STA, 3ª Sub. do CA, de 20.02.2002, proc.º 044443; Acórdão do STA, 1ª Sub. do CA, de 20.05.2000, proc.º 041420; Acórdão do STA, 2ª Sub. do CA, de 27.06.2000, proc.º 044214; Acórdão do STA, 1ª Sub. do CA, de 16.05.2002, proc.º 0509/02; Acórdão do STA, 1ª Sub. do CA, de 10.10.2002, proc.º 048404.
(3) Acórdão do STA, 1ª Sub. do CA, de 16.05.1991, proc.º 029227; Acórdão do STA, 2ª Sub. do CA, de 13.01.2004, proc.º 040581; Acórdão do STA, 1ª Sub. do CA, de 02.12.2004, proc.º 0670/04; ; Acórdão do STA, 2ª Sub. do CA, de 24.04.2007, proc.º 024/07.
(4) GOMES CANOTILHO, O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, Almedina, 1974, pp. 280/281.
(5) com especial interesse nesta matéria sublinham-se ainda os Acórdão do STA, 2ª Sub. do CA, de 09.02.2005, proc.º 01348/03; Acórdão do STA, 2ª Sub. do CA, de 13.01.2004, proc.º 040581; Acórdão do STA, 3ª Sub. do CA, de 05.11.2003, proc.º 01100/02.