ANOTAÇÃO


Entidade visada: Câmara Municipal de Albufeira
Proc.º: R-5113/05
Área: A4



Assunto: Câmara Municipal de Albufeira. Chefe de divisão. Chefe de repartição. Reestruturação de serviços. Extinção do cargo. Imposição legal.



Objecto: Decisão da Câmara Municipal de Albufeira de não pagar as quantias devidas pelo exercício de funções de chefe de divisão em regime de gestão corrente.



Decisão: A Câmara Municipal entendeu não dever acatar a posição assumida pelo Provedor de Justiça.




Síntese
:


1. Organizou a Provedoria de Justiça um processo para apreciar a queixa relativamente à questão sobre o pagamento devido pelo exercício de funções dirigentes em “regime precário“, nos termos do Regulamento de Organização dos Serviços Municipais da Câmara Municipal de Albufeira.



2. Com relevância para a análise, foi possível apurar o seguinte:





a) As funcionárias em causa desempenharam, até 7 de Agosto de 2000, as funções correspondentes ao cargo de chefe de repartição do quadro de pessoal da Câmara Municipal de Albufeira.


b) Por força do disposto no artigo 166.º do Regulamento (1)(2), conjugado com o Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 30 de Dezembro (3), foram reclassificadas como técnicas superiores, com efeitos a 8 de Agosto de 2000.


c) A partir dessa data passaram a assegurar “precariamente, relativamente às unidades orgânicas que integram e até ao provimento dos cargos de Chefe de Divisão municipal das unidades de apoio instrumental agora previstas, as tarefas e responsabilidades inerentes às chefias destas divisões” (4).


d) A reclamante A… ficou a assegurar “precariamente” as tarefas e responsabilidades inerentes à Divisão de Apoio Administrativo.


e) Quanto a M…, assegurou, também “precariamente”, as tarefas inerentes à gestão da Divisão Administrativa de Obras Municipais.


f) O exercício efectivo destas funções foi confirmado pelos respectivos directores municipais.


g) O presidente da Câmara de Albufeira reconheceu esta situação.


h) Apenas em 18-04-2006, a situação funcional das reclamantes foi modificada, cessando o exercício de funções inerentes às chefias das divisões municipais em causa.



3. O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 514/99, de 24 de Novembro (5) regulava a forma de recrutamento para os cargos de directores de departamento municipal e chefes de divisão municipal. Genericamente, determinava o n.º 1 do referido artigo, “o recrutamento para os cargos de director de departamento municipal e chefe de divisão municipal é feito nos termos previstos nos n.ºs 1 a 6 e 8 a 11 do artigo 4.º da Lei n.º 49/99, de 22 de Junho“.


4. Mais adiante o n.º 2, al. b), do citado artigo estabelecia que “o recrutamento para os cargos de director de departamento municipal e de Chefe de Divisão municipal dos serviços de apoio instrumental pode ainda ser feito (…) de entre funcionários (…) chefes de repartição com, pelo menos, três anos de serviço na categoria (…)“. Terá sido precisamente esta disposição que permitiu que, em 30 de Junho de 2000, a Assembleia Municipal de Albufeira aprovasse o Regulamento Municipal, onde se estabelecia a criação, entre outras, de duas unidades de apoio instrumental, a ser chefiadas, de modo “precário” pelas ora reclamantes (6)


5. Entendeu este órgão de Estado que as reclamantes apenas não poderiam ser nomeadas em regime de substituição ao abrigo da Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro (8), e do Decreto-Lei n.º 93/2004, de 20 de Abril (7), no caso de o respectivo acto de nomeação ter ocorrido após a entrada em vigor dos referidos diplomas, o que não foi o caso. 


6. O exercício de funções pelas reclamantes em “regime precário” não foi mais que o “exercício efectivo” de todas as tarefas inerentes à chefia de divisão, tal como foram descritas acima, nos pontos 5.d) a 5.f). De facto, reunindo ou não “as condições legais de recrutamento para o cargo a substituir“, inserindo-se ou não “na área de recrutamento para o provimento de cargos de chefe de divisão“, é certo e reconhecido publicamente que as reclamantes exerceram as funções próprias das chefias de divisão em causa, na continuidade das que já vinham desempenhando anteriormente (i.é, sem qualquer interrupção ou modificação substancial de tarefas) e de modo inquestionado. 


7. Não existindo um despacho de nomeação formal nos moldes habituais, verificou-se a prática de acto administrativo sob a forma de norma, ou seja a designação por força de deliberação da Assembleia Municipal (que aprovou o Regulamento Municipal) para o exercício de funções. Estas foram asseguradas em regime de gestão corrente (9)(10), não sendo relevante, para o efeito, o respectivo título. Com efeito, as reclamantes foram mantidas, sem mais, no exercício das funções que vinham desempenhando, modificando-se tão somente a designação do serviço que chefiavam. Fica assim afastada a objecção relativa ao exercício de funções em regime de substituição. 


8. Ainda assim, e caso não se entendesse desta forma, afigura-se legítimo sustentar que as reclamantes reuniam as condições legalmente exigidas para o provimento em regime de substituição. Com efeito, dispunha o artigo 9.º do citado Decreto-Lei n.º 514/99, que a substituição se defere primeiro a “titular de cargo dirigente de nível imediatamente inferior na escala hierárquica” e depois a “funcionário que reuna as condições legais para recrutamento para o cargo dirigente a substituir, independentemente dos módulos de experiência profissional possuídos“. Em rigor, as reclamantes detinham as condições legais para recrutamento, nos termos do que já foi visto a propósito do artigo 6.º, n.º 2, do diploma em apreço. 


9. Pode então afirmar-se que as funcionárias se mantiveram no exercício corrente de funções, ainda que de modo automático (11) e transitório (12)


10. Ao longo de quase seis anos, as reclamantes procederam nas suas tarefas quotidianas como verdadeiras titulares dos cargos em causa, praticando os actos inerentes às funções. Nunca a legitimidade da “nomeação” ou dos actos praticados pelas funcionárias em causa foi questionado pelos respectivos superiores hierárquicos ou pelos órgãos camarários. Tudo se passou dentro da normalidade e legalidade de funcionamento da instituição. 


11. Como referiu a câmara municipal, é um facto que existem situações na Administração Pública de “nomeações” para funções de coordenação, que mais não são que a incumbência de um funcionário específico para a prática de determinados actos, sem um estatuto remuneratório especial associado (maxime, o de chefia ou direcção). Porém, nessas circunstâncias também não existe associada ao desempenho de funções a prática de actos próprios e específicos da competência de uma chefia. Havendo que praticar estes actos, eles são-no pelo dirigente com competência para o efeito. 


12. Coisa diversa, são as numerosas leis orgânicas que estabelecem funções de coordenação sem correspondência orgânica a uma estrutura de chefia ou cargo dirigente tradicional, mas fixando a remuneração correspondente a cargo dirigente. Nestes casos, existe o estatuto remuneratório, mas não a competência para a prática dos actos inerentes a um cargo de direcção. 


13. Contudo, no caso em apreciação verificou-se uma designação formal (14), em sede de Regulamento, das reclamantes para o exercício de funções dirigentes (chefes de divisão) sem que se verificasse qualquer limitação à prática de actos inerentes ao cargo que ocuparam. Tal decorre das declarações dos directores municipais e do próprio presidente da câmara, além de ser corroborada pela própria realidade dos factos ao longo do tempo. De outro modo, poderia estar em causa (e tal não foi sequer questionado pela câmara) a validade dos actos praticados pelas ora reclamantes entre 08-08-2000 e 18-04-2006. 


14. Invocou também a câmara municipal o artigo 178.º do Regulamento para obviar ao pagamento pretendido. Dispõe este artigo que “nas situações previstas nos n.os 6 do artigo 8.º (15) e 3 do artigo 9.º (16) do presente Regulamento, e em todas as demais em que não seja legal ou objectivamente possível o recurso ao regime de substituição, a designação dos responsáveis deve ter a anuência do funcionário em causa e não confere qualquer acréscimo remuneratório“. 


15. Este preceito afigura-se, desde logo, questionável do ponto de vista da legalidade. Efectivamente, procura dar cobertura a possíveis actos de gestão do presidente da câmara, designando funcionários para funções de coordenação, com acréscimo de responsabilidades e alteração das respectivas funções, mas sem a respectiva contrapartida remuneratória. 


16. Mesmo que, por hipótese, se admitisse que o exercício de funções em substituição, ainda que informal, não devesse ou não pudesse ser remunerado – como é o caso de doença temporária do substituído – a lei estabelece um prazo limite de 60 dias findo o qual terá a Administração de designar um substituto (17). Vale isto por dizer que o “jus variandi” laboral não remunerado apenas é legalmente admissível dentro do prazo assinalado e, no caso concreto, pelos 60 dias que se seguiram à entrada em vigor do Regulamento. Após esta data é devido o pagamento. 


17. Ademais, a aplicação deste artigo requer a anuência dos funcionários à prestação de trabalho naquelas condições de remuneração, o que não se encontra demonstrado em nenhuma peça processual. Aliás, como regra e em termos gerais, todas as prestações de trabalho e suas alterações carecem da anuência do funcionário. 


18. Esta alteração em concreto não se subsume, sequer, ao admissível em sede de “jus variandi” laboral. Efectivamente, como bem reconhece a jurisprudência (18), “no regime jurídico do funcionalismo público , o instituto que mais se assemelha ao jus variandi encontra-se consagrado no art.º 9º – análise de funções – do DL n.º 248/85, 13-07, ao admitir a atribuição ao funcionário de funções diferentes daquelas a que corresponde a sua carreira , em razão das exigências do interesse público, embora as tarefas a exercer devam ser de complexidade e responsabilidade equiparáveis“. Tal não se verifica no presente caso. Efectivamente, resulta claro que uma coisa é o exercício de funções próprias da carreira técnica superior e outra, bem diferente, é o exercício de funções próprias de um lugar dirigente. Não pode colher, portanto, tal argumento. 


19. Não é lícito ou sustentável que a câmara municipal se prevaleça agora da hipotética ausência de suporte legal e de uma pretensa irregularidade da actividade profissional exercida pelas ora reclamantes (19), para recusar o pagamento às queixosas da compensação remuneratória devida pelo trabalho prestado, qualquer que fosse a forma encontrada para designar o exercício de funções: substituição, gestão corrente ou nomeação em comissão de serviço. 


20. Foi comprovado que as particulares reclamantes mantiveram a sua colaboração profissional com a autarquia em causa nos termos do enquadramento formal dado pelo Regulamento Municipal, com a autorização das respectivas chefias directas e demais responsáveis camarários, continuando a assegurar, com toda a normalidade e de forma amplamente conhecida do público e demais colaboradores da instituição, a prestação dos serviços que lhes cabiam, o que permitiu o funcionamento eficaz e regular das divisões que tutelavam. 


21. Isto revela óbvio aproveitamento injustificado por parte da câmara municipal obtido à custa das funcionárias, que continuaram a desempenhar a sua actividade profissional, porquanto só aquela retira benefícios do exercício gratuito destas funções, ao rejeitar a contrapartida salarial do trabalho de chefia que as mesmas executaram. 


22. Não é curial que a Administração exceda os limites da boa fé e do não locupletamento à custa alheia, consentindo e aproveitando o exercício destas funções, mas recusando a correspondente remuneração, o que se afigura injusto e desproporcionado, para além de ofender o princípio da igualdade consagrado na lei fundamental (cfr. artigos 13º e 266º da Constituição, com a configuração específica plasmada no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da mesma lei). 


23. Por esta razão, foi entendido que à luz dos postulados básicos que orientam a actividade administrativa em geral e o respectivo relacionamento com os particulares, maxime os princípios da boa fé e da proibição do enriquecimento sem causa (este último, um princípio geral de direito decorrente do disposto no artigo 473º do Código Civil, transposto pela doutrina e jurisprudência para o contexto da relação administrativa, enquanto factor autónomo de obrigações para a Administração (20)), a par dos princípios da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade, as reclamantes devessem ser remuneradas pelas funções que exerceram como chefes de divisão ao serviço da autarquia desde Agosto de 2000.


 


 





Notas de rodapé:


(1) Aprovado em sessão da Assembleia Municipal de Albufeira, em 6 de Junho de 2000 e publicado no Apêndice n.º 112 à II série do Diário da República de 7 de Agosto de 2000. Adiante designado “Regulamento” ou “Regulamento Municipal”.
voltar atrás


(2) O Regulamento foi alterado por via de deliberação da Assembleia Municipal de Albufeira, em 27 de Abril de 2004 e publicada no Apêndice n.º 75 à II Série do Diário da República de 7 de Junho de 2004. O artigo 166.º foi renumerado como 182.º
voltar atrás


(3) Aplicável aos municípios por via do Decreto-Lei n.º 412-A/98, de 30 de Dezembro.
voltar atrás


(4) Artigo 166.º, n.º 2 do Regulamento.
voltar atrás


(5) Diploma que procedeu à adaptação da Lei n.º 49/99, de 22 de Junho, às autarquias locais e vigorava à data da transição de carreira (2000) e do concurso a que as reclamantes foram opositoras (2002).
voltar atrás


(6) Com a natureza de divisão face à extinção do cargo de chefe de repartição operada pelo DL nº 404-A/99.
voltar atrás


(7) Artigo 166.º do Regulamento, na versão original, de 2000: “Os funcionários que, à data da entrada em vigor do presente Regulamento, sejam titulares de cargos de chefe de repartição, os quais, por força do disposto no artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 404-A/98, de 18 de Dezembro, na redacção da Lei n.º 44/99, de 11 de Junho, aplicável à administração local pelo Decreto-Lei n.º 412-A/98, de 30 de Dezembro, transitam para a carreira técnica superior, assegurarão, precariamente, relativamente às unidades orgânicas que integram e até ao provimento dos cargos de Chefe de Divisão municipal das unidades de apoio instrumental agora previstas, as tarefas e responsabilidades inerentes às chefias destas divisões“.
voltar atrás


(8) Estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central. Revogou a Lei n.º 49/99.
voltar atrás


(9) Adapta a Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro, às autarquias locais.
voltar atrás


(10) Afigura-se que o quadro da “precariedade” do exercício de funções das reclamantes, se bem que não seja relevante para o fundo da questão, foi para assegurar funções em regime de “gestão corrente“, na sequência das funções que já vinham assegurando como chefes de repartição. Nem se poderá entender que tenham sido designadas a título normal, já que esta situação pressupunha um concurso, nem em regime de substituição.
voltar atrás


(11) Refira-se também que o exercício destas funções se processou no âmbito da continuidade orgânica verificada com a reestruturação operada, tendo as repartições existentes dado lugar, genericamente, a divisões. As diferenças residem no grau orgânico das unidades em que se integravam e passaram depois a integrar – Repartição e Divisão – e na respectiva categoria, uma vez que as funções desempenhadas se mantiveram essencialmente as mesmas.
voltar atrás


(12) Por força de uma deliberação da Assembleia Municipal nesse sentido, com expressão no n.º 2 do artigo 166.º do Regulamento, versão inicial.
voltar atrás


(13) “Até ao provimento dos cargos de Chefe de Divisão municipal das unidades de apoio instrumental“, como dispunha o referido artigo 166.º do Regulamento Municipal.
voltar atrás


(14) Não pode deixar de se salientar que o Regulamento Municipal estabelece especificamente este modo de proceder, não constituindo propriamente uma designação informal. Muito embora fosse a título transitório, foi também por tempo indeterminado (até à abertura de concurso para cargo dirigente e, como se veio a verificar, durante quase seis anos).
voltar atrás


(15) Artigo 8, n.º 6: “Para cada um dos gabinetes municipais, e sempre que o entenda como desejável, o presidente da Câmara designará um coordenador“.
voltar atrás


(16) Que determina que “nas situações em que não se mostre possível a aplicação do previsto na alínea b) do número anterior” (que estabelece que “os responsáveis pelas restantes subunidades serão os de maior categoria, preferindo, em caso de igualdade categorial, os mais antigos“) “ou em que o presidente da Câmara entenda dever alterar a regra ali consignada, a designação dos responsáveis será feita por despacho daquele“.
voltar atrás


(17) A título de exemplo, o artigo 21.º da Lei n.º 49/99, em vigor à data dos factos: “2 – A substituição só poderá ser autorizada quando se preveja que os condicionalismos referidos no número anterior persistam por mais de 60 dias, sem prejuízo de, em todos os casos, deverem ser asseguradas as funções atribuídas aos dirigentes ausentes“.
Esta disposição manteve-se no diploma que lhe sucedeu (Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro, art. 27.º) e existia já no que a antecedeu (Decreto Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, artigo 8.º).
voltar atrás


(18) Acórdão de 16-06-2005 do Tribunal Central Administrativo Sul, Secção de Contencioso Administrativo – 1º Juízo Liquidatário, Processo 12888/03.
voltar atrás


(19) Desde que iniciaram funções, em 08-08-2000, até ao seu termo, em 18-04-2006, nunca se verificou, por parte da Autarquia, a interrupção das mesmas.
voltar atrás


(20) Alexandra Leitão in “O Enriquecimento Sem Causa na Administração Pública”, págs. 38 e seguintes.
voltar atrás