Reparo / Censura
Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso.
Proc.º: R-3212/05
Área: A4
Assunto: Requerimento de 15 de Julho de 2005 de xxxxx. Direito à informação. Direito de acesso aos registos e arquivos administrativos.
1. Em 21 de Setembro de 2006, recomendei a V. Ex.ª que disponibilizasse ao Senhor J. (…) a informação que lhe requereu, em 15 de Julho de 2005, no exercício do direito à informação.
O Senhor J (…) requereu a V. Ex.ª, recorde-se, a seguinte informação, relativa ao funcionário da autarquia engenheiro técnico C (…): i) se o mesmo exercia, em 15 de Julho de 2005, o cargo de chefe da Divisão de Estudos, Projectos e Planeamento, como em 2002, ou não; ii) quais as funções que exercia, nessa data; iii) e qual o vencimento que auferia em 2002 e em 15 de Julho de 2005.
2. V. Ex.ª comunicou-me, em 16 de Janeiro de 2007, o não acolhimento da recomendação. Fundamenta a sua decisão no invocado carácter pessoal da informação requerida pelo Senhor J (…). Afirma V. Ex.ª, no essencial, o seguinte:
a) “as informações pretendidas pelo requerente são da reserva da vida privada do funcionário eng. C (…)o e contêm dados pessoais, enquadrando-se, como tal, na disposição contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto”;
b) as “informações profissionais” de uma pessoa devem ser “preservad[as], em nome de um princípio fundamental da tranquilidade da vida de cada um, seja ou não funcionário da câmara municipal. Daí que entenda tratar-se de matéria reservada e, portanto, de acesso condicionado”.
Da argumentação de V. Ex.ª, resulta, de forma patente, o seguinte:
a) V. Ex.ª tem plena consciência de que estão em causa “informações profissionais”, afirmando que as informações requeridas pelo Senhor J (…) são “informações profissionais”;
b) Inclui na “vida privada” a “vida profissional”, dizendo que as “informações profissionais” se incluem na “vida privada”;
c) Invoca, pela sua mera menção, a alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 65/93, de 2 de Agosto, não fazendo da norma qualquer aplicação;
d) Invoca um princípio que não tem enunciação no direito positivo, quer em geral, quer quanto à matéria do acesso à informação administrativa, o, gizado por V. Ex.ª, “princípio fundamental da tranquilidade da vida de cada um”;
e) De tal forma que, não indica a norma jurídica que o enuncie ou do qual resulte.
f) Alude ao seu entendimento ou valoração pessoal, decidindo, não de acordo com o direito vigente ou constituído, mas em substituição das valorações constitucionais e legais, que posterga.
3. O pedido de informação que o Senhor J (…) apresentou nenhuma dificuldade levanta do ponto de vista do seu enquadramento jurídico, sendo linear o apuramento da decisão juridicamente correcta, que é a do fornecimento, na totalidade, da informação pelo mesmo requerida.
Recordemos as premissas da decisão juridicamente correcta. A primeira premissa reside nos princípios parametrizadores do direito de acesso à informação administrativa, fundamentalmente, os seguintes:
i. O princípio da legalidade, de acordo com o qual os órgãos e agentes administrativos devem agir e não devem senão agir com fundamento e nos limites da lei (artigo 266.º, n.º 2, da CRP e artigo 3.º do CPA);
ii. O princípio da prossecução do interesse público, segundo o qual as decisões e, em geral, a actuação administrativas devem ser determinadas pelos concretos fins públicos indicados pela lei (artigo 266.º, n.º 1, e artigo 4.º do CPA);
iii. O princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos das pessoas (artigo 266.º, n.º 1, da CRP e artigo 4.º do CPA);
iv. O princípio da imparcialidade, que postula, designadamente, que os órgãos e agentes administrativos se abstenham de atender e decidir por interesses e motivos juridicamente irrelevantes e não deixem de ponderar aqueles que, no recorte da lei, são tutelados (artigo 266.º, n.º 2, da CRP, artigo 6.º do CPA e artigo 1.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto (1)).
v. O princípio da boa fé, que postula lealdade e cooperação no relacionamento e a ponderação dos “valores fundamentais do direito” (artigo 266.º, n.º 2, da CRP e artigo 6.º-A do CPA).
vi. O princípio da transparência (artigo 1.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto), que impõe que a actividade e a organização administrativa (designadamente, quanto aos recursos materiais e humanos que envolve) sejam claras, visíveis, perceptíveis, conhecidas pelos cidadãos. As funções da transparência são, designadamente, as de “controlo da legitimidade da actividade administrativa e a da redução da conflitualidade” (itálico nosso) (2).
Em consentaneidade com estes princípios:
i. “No nosso sistema jurídico vigora o princípio do arquivo aberto (open file), devendo as normas relativas do direito à informação ser interpretadas de acordo com o texto constitucional, maxime, com o disposto no artigo 268º da C.R.P” (Acórdão TCA Sul de 13-07-2005, R. 00880/2005).
ii. Princípio que é contrário ao “secretismo do modelo tradicional da Administração dita burocrática [, que] tem uma das suas manifestações mais vincadas na tendência para alargar a classificação dos documentos como secretos, confidenciais ou reservados” (Acórdão do STA de 6-12-2000, R. 046605).
iii. O direito à informação administrativa consiste no direito de aceder ao conhecimento, de ter a disponibilidade, dos documentos administrativos. Este direito de obter informação administrativa não existe apenas por parte de quem tenha um interesse protegido no âmbito de um procedimento administrativo em curso (artigo 268.º, n.º 1, da CRP, e artigos 61.º a 64.º do CPA). Existe, igualmente, num quadro extra-procedimental, por parte de qualquer cidadão, independentemente do interesse que tenha na informação que requer e independentemente, este o aspecto a destacar, da triagem ou controlo do respectivo interesse por parte dos órgãos e agentes administrativos (artigo 268.º, n.º 2, da CRP, artigo 65.º do CPA e Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto).
As restrições ao exercício do direito à informação (procedimental ou extra-procedimental) não são aquelas que os órgãos e agentes administrativos em cada momento entendam por adequadas mas, antes, são as definidas por lei, no quadro da Constituição (artigo 268.º, n.ºs 1 e 2, e artigos 17.º e 18.º). Os órgãos e agentes administrativos não só não podem substituir-se à Constituição e à lei, como a directriz interpretativa fundamental das normas legais restritivas de direitos fundamentais é a de que devem ser interpretadas restritivamente, isto é, no sentido da maximização do respectivo exercício.
No presente caso, o apelo a esta directriz não se torna sequer necessário, porque nenhuma restrição legal é aplicável relativamente ao exercício, por parte do Senhor J (…), do seu direito fundamental de acesso a informação administrativa da câmara municipal que requereu a V. Ex.ª.
A informação por aquele requerida não se reporta a “documentos nominativos”, contrariamente ao que pretende V. Ex.ª. Os documentos nominativos são aqueles que contêm dados pessoais (alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto). São dados pessoais, para a lei, as informações que, relativamente a uma pessoa, contenham: i) “apreciações”, ii) “juízos de valor”; iii) ou que “sejam abrangidos pela reserva da intimidade ou da vida privada” (alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º).
Sobre esta alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, são juridicamente seguros os seguintes pontos:
a) “Os dados excluídos do direito à informação são apenas os que, inequivocamente, se revelem como dados do foro íntimo, ou interior, de um indivíduo, como por exemplo os seus dados genéticos, de saúde ou que se prendam com a sua vida sexual, bem como os relativos às suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas, que possam traduzir-se numa invasão da reserva da vida privada (cfr. Ac. STA de 17.12.91, P. 30031, in ‘B.M.J.’, 412, p. 67; Ac. T.C.A. de 13.11.03, Rec. n.º 12850, in “Antologia de Acórdãos do STA e do TCA”, Ano VII, n.º 1, p. 241 e seguintes; Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 3ª ed. Almedina, pp. 197 e seguintes).” – Acórdão do TCA Sul, de 03-06-2004, processo 00154/04, in www.dgsi.pt/jtca. b) “O direito à intimidade da vida privada inclui a reserva da vida familiar, sexual e também da saúde, podendo compreender outros tipos de intimidade pessoal” (Acórdão do STJ, de 9-04-2003, R. n.º 3513/20002, in http://dgsi.pt/jstj). c) “Os vencimentos que decorram do exercício de funções públicas – e que são, portanto, pagos em obediência a critérios legais – não têm carácter reservado. Os vencimentos ilíquidos, os valores recebidos a título de horas extraordinárias e mesmo os vencimentos líquidos sobre os quais incidam apenas os documentos gerais a que a lei obriga (Caixa Geral de Aposentações, ADSE e retenção de determinado montante para efeitos do IRS) têm natureza pública, podendo ser livre e generalizadamente conhecidos” (Parecer n.º 272/2006, de 12.06.2006, Processo n.º 495/2006, da CADA; Parecer n.º 92/2006, de 18.04.2006, processos n.ºs 155/2006 e 162/2006). |
Sobre o carácter não nominativo da informação relativa aos vencimentos, foi V. Ex.ª, especificamente, esclarecido pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, no Parecer n.º 118/2003, de 10.09.2003, processo n.º 2478, relativo à câmara municipal a que preside; concretamente, nos seguintes termos: “Estando em causa vencimentos e outros abonos a qualquer título, esclareça-se que … tem a CADA entendido que a indicação dos vencimentos, das remunerações auferidas pela prestação de trabalho extraordinário e das pensões de aposentação, de outros, bem como dos descontos e retenções feitos ope legis, são necessariamente públicos por decorrerem da lei, sendo, por isso, de acesso generalizado, seja por consulta ou de outra forma legalmente prevista” (in http://www.cada.pt).
Foi igualmente V. Ex.ª esclarecido, pela CADA, relativamente ao carácter público das informações relativas à acumulações de funções de funcionários dessa autarquia e, em geral, referentes a aspectos relativos à respectiva prestação de trabalho (Parecer n.º 74/2006, de 18.04.2006, processo n.º 65/2006, e Parecer n.º 99/2003, de 30.04.2003, processo n.º 2256, in http://cada.pt)
Quanto à incorrecta interpretação jurídica, feita pela Câmara Municipal da Póvoa do Lanhoso, do conceito de documentos nominativos e dados pessoais foi V. Ex.ª já, por várias vezes, também interpelado, pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (Parecer n.º 99/2003, de 30.04.2004, processo n.º 2256; Parecer n.º 74 de 2006.04.18, processo n.º 65/2006, Parecer n.º 188, de 10.09.2003, processo n.º 2478).
4. Duas últimas notas se impõem: a) a nota quanto ao adicional desajustamento do chamamento à colação, por V. Ex.ª, da figura dos documentos nominativos, porque o que está em causa são informações cuja publicidade é devida (artigo 34.º, maxime, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro (3)); b) a chamada de atenção para a eventual relevância, no plano da responsabilidade civil e disciplinar, que pode ter relativamente aos órgão e/ou agentes administrativos, a recusa ou negação ilegal do acesso a informação administrativa (artigos 266.º e 269.º, n.º 1, da CRP) (4).
5. Em suma, em face de reiterados esclarecimentos, não pode V. Ex.ª já ignorar que a Constituição e a lei não sustentam a decisão de V. Ex.ª, a decisão de recusa de prestação de informação requerida pelo Senhor J (…), informação que, pela sua simplicidade, importa novamente enunciar: trata-se de saber se o funcionário da autarquia xxx engenheiro técnico C (…): i) exercia, em 15 de Julho de 2005, o cargo de chefe da Divisão de Estudos, Projectos e Planeamento, como em 2002 ou não; ii) quais as funções que exercia, nessa data; iii) e qual o vencimento que tal funcionário auferia em 2002 e em 15 de Julho de 2005.
6. Assim sendo, renovo a censura pública que merece a decisão de V. Ex.ª de recusar ilegalmente o acesso a tal informação, que lhe requereu o Senhor J (…), em 15 de Julho de 2005.
Com os melhores cumprimentos
H. Nascimento Rodrigues
(1) Alterada pela Lei n.º 8/95, de 29 de Março, pela Lei n.º 94/99, de 16 de Julho, e pela Lei n.º 19/2006, de 12 de Junho (artigo 19.º desta última).
(2) Alberto de Roberto, citado por Raquel Carvalho, O Direito à Informação Administrativa Procedimental, Porto, 1999, p. 74.
(3) Ver, também, artigos 11.º e 15.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 116-C/2006, de 16 de Junho, artigo 2.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 391/93, de 23 de Novembro, e n.º 4.1., alínea l) do Despacho Normativo n.º 38/2006, de 30 de Junho, artigo 21.º, n.º 5, da Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro, artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 93/2004, de 20 de Abril, e artigo 21.º, n.º 10, na versão da Lei n.º 51/2005, de 30 de Agosto, e artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 104/2006, de 7 de Junho.
(4) Raquel Carvalho, O Direito à Informação Procedimental, citado, pp. 309 a 322.