PARECER
Entidade visada: Ministério dos Negócios Estrangeiros. Presidente do Júri do Concurso Externo de Ingresso na Categoria de Adido de Embaixada da Carreira Diplomática.
Processo: R-4160/06
Área: A4
Data: 12 de Setembro de 2006
Assunto: Protecção da maternidade e da gravidez. Concurso. Realização da prova oral de conhecimentos através de teleconferência.
Síntese:
1. Uma candidata ao Concurso Externo de Ingresso na Categoria de Adido de Embaixada da Carreira Diplomática, aberto por despacho do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de 16.12.2005, requereu a intervenção do Provedor de Justiça, invocando, em síntese, o seguinte:
a) No âmbito do aludido concurso, a reclamante foi aprovada nas provas escritas (de língua portuguesa, língua inglesa e de conhecimentos) e no exame psicológico, pelo que foi admitida a prestar a prova oral de conhecimentos;
b) Assim que teve conhecimento da aludida lista, a reclamante requereu ao Júri do concurso a realização da prova oral de conhecimentos por intermédio de teleconferência, em virtude de se encontrar em Macau e ter sido desaconselhada a viajar de avião pelos seus médicos assistentes, por se encontrar grávida e possuir um problema de “edemia” nas duas pernas; a candidata apenas teve conhecimento deste problema clínico após a divulgação da aludida lista, pelo que não lhe foi possível prever, em momento anterior, a sua impossibilidade de se deslocar por avião;
c) Para a realização do exame, sugeriu a candidata a utilização das instalações e a intermediação do Consulado-Geral de Portugal em Macau;
d) Cerca de duas semanas antes da realização da prova, a candidata tomou conhecimento por via informal de que o seu requerimento iria ser indeferido, desconhecendo, ainda, no momento da reclamação, os respectivos fundamentos;
e) o Júri do concurso comunicou posteriormente à candidata o indeferimento da sua pretensão, invocando, em síntese, que a legislação em vigor não reconhece os procedimentos sugeridos pela interessada “como modalidades de concretização dos métodos de selecção discriminados na lei” e que a prova oral exige “uma relação de interface pessoal entre os responsáveis avaliadores e candidato avaliado, relação essa que deve desenrolar-se em condições de igualdade entre todos os candidatos (locais de prova, tempo de prova, etc.)“, a qual está igualmente subjacente à entrevista profissional.
2. Instruído o processo com urgência, foi entendido que se justificava suscitar a reapreciação do assunto por parte do Júri, com base nos fundamentos constantes do parecer que segue.
PARECER:
1. A apreciação da questão impõe que se analise, com detalhe, o parecer do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) que se pronunciou sobre a pretensão da interessada, assim como os fundamentos que, na sequência deste, lhe foram transmitidos em apoio da decisão de indeferimento.
2. Assim, o Departamento de Assuntos Jurídicos começa por afirmar a “inexistência de viabilidade legal de dar acolhimento à pretensão formulada pela requerente”, com base nos seguintes argumentos:
a) resulta do disposto no art. 21º do Regulamento do Concurso que, na realização da prova oral de conhecimentos, os candidatos devem estar fisicamente presentes nas instalações do MNE para realizar a prova perante o Júri do concurso;
b) a realização da prova deve respeitar, por força da aplicação ao concurso do regime contido no Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho, o princípio da igualdade de condições e oportunidades para todos os candidatos;
c) ambas as sugestões apresentadas pela candidata afastam-se “em grande medida das condições regulamentares em que a generalidade dos candidatos deve realizar a prova oral de conhecimentos, em especial a relativa à prestação da prova mediante entrevista telefónica“, hipótese que a candidata havia igualmente adiantado no seu requerimento.
3. Não obstante, o aludido parecer prossegue, notando que, quanto à teleconferência, desconhece-se não só se o Consulado-Geral de Portugal em Macau dispõe de meios técnicos adequados para tanto, como se a sua utilização “permite garantir e assegurar o cumprimento integral do acima citado princípio da igualdade“, aspectos sobre os quais, “dada a respectiva competência e com mais propriedade“, se deveriam pronunciar quer o Departamento Geral de Administração do MNE, quer o Júri do Concurso.
4. Defende-se, ainda, no mesmo parecer, que tal posição não invalida que “atendendo à fase do concurso que a interessada já atingiu e, principalmente, à circunstância de se encontrar grávida, sendo que a maternidade constitui um valor social eminente legalmente protegido (cfr. Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), que não se deva ponderar a busca duma solução que, acautelando essa situação, logre harmonizar, por um lado, os interesses da candidata e, por outro, quer o cumprimento dos princípios enformadores do concurso, v.g. o da igualdade de condições da prestação da prova, sob pena de posteriores e eventuais impugnações por parte dos outros candidatos, quer o prosseguimento do interesse público, por tal se entendendo, na circunstância e desde logo, a necessidade do rápido provimento das vagas, celeridade que parece resultar dos considerandos enunciados na Portaria n.º 238-A/2005, de 4 de Abril, que criou os vinte lugares cujo provimento, através do concurso, se pretende efectuar” (sublinhado nosso). Termina com a enunciação dos demais aspectos que, em sede da prossecução do interesse público subjacente ao concurso, devem ser ponderados na solução a dar ao caso.
5. Do cotejo entre os fundamentos invocados perante a interessada por parte do Júri e os constantes do parecer jurídico que o precedeu parece resultar não se encontrar demonstrado que o Júri tenha averiguado da possibilidade da realização da teleconferência no Consulado-Geral de Portugal em Macau, como se sugeria no parecer, e, desta forma, não buscou uma solução harmonizadora dos interesses em presença, conforme defendeu o Departamento dos Assuntos Jurídicos. Na verdade, o Júri, ao invés, afastou o recurso à teleconferência em abstracto – por não se encontrar expressamente prevista na lei e não permitir a mencionada relação de interface pessoal em condições de igualdade – e não em concreto, como ali se sugeria.
6. O certo é que a questão não se pode dirimir nos termos em que o Júri procedeu e comunicou à candidata. Impõe-se, na verdade, encontrar o melhor equilíbrio possível entre os interesses – público e privado – que, no caso, se apresentam como colidentes: assim o exigem os princípios da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e da proporcionalidade, previstos no art. 266º da Constituição e nos arts. 4º e 5º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo. E isto porque, como adiante se demonstrará, o recurso à teleconferência não é solução absolutamente postergada pelo regime legal dos concursos, em termos que não permitam uma apreciação mais aprofundada da questão. Assim o entendeu também, como referido, o Departamento dos Assuntos Jurídicos.
7. Na verdade, sobre a Administração não impende tão só o dever de orientar a sua actuação com vista à realização do interesse público, antes deve fazê-lo com respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Como expressivamente explicam ESTEVES DE OLIVEIRA e outros (1), “a prossecução do interesse público seria, digamos assim, o ‘volante (ou o ‘acelerador’) da Administração Pública: os direitos e interesses protegidos são as barreiras da estrada em que ela circula, levando-a a fazer, aqui e ali, ‘curvas’ e desvios mais pronunciados, a optar por medidas menos radicalmente viradas para a satisfação do interesse público do que aquelas que se tomariam, se este fosse o único critério de determinação“.
8. Por outro lado, o princípio da proporcionalidade postula que a decisão administrativa que seja colidente com posições jurídicas dos administrados deve ser não só adequada, como necessária – no sentido de que “a lesão daquelas posições jurídicas tem que se mostrar necessária ou exigível (por qualquer outro meio não satisfazer o interesse público visado)” (2) – e proporcional, ou seja, que “a lesão sofrida pelos administrados deve ser proporcional e justa em relação ao benefício alcançado para o interesse público (proporcionalidade custo/benefício)” (3).
9. Ora, neste juízo não é despiciendo o facto de a posição jurídica da interessada beneficiar de um expresso reconhecimento por parte da Lei Fundamental – os “desvios” à estrita prossecução do interesse público deverão ser tanto mais pronunciados quanto maior for a relevância dos direitos dos particulares. Ou, visto sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade, se o que está em causa é a posição relativa entre o interesse público e as posições subjectivas dos particulares, o equilíbrio entre ambos não pode dissociar-se, naturalmente, do respectivo “peso relativo”: se, do lado do interesse público, é forçoso reconhecer que haverá fins da Administração de maior relevância do que outros, também as posições jurídicas subjectivas dos particulares poderão apresentar, à partida, graus de relevância muito diferentes, o que se afere naturalmente pela protecção que a lei lhes confere.
10. Nesta sede, importa salientar que a maternidade e, em especial, a protecção da mulher grávida são objecto de uma particular atenção por parte do legislador constitucional e ordinário. Nos termos do art. 68º, n.º 2, da Constituição, a maternidade constitui um valor social eminente. Por seu turno, o n.º 3 do mesmo preceito estabelece que as mulheres têm direito a especial protecção durante a gravidez, em consonância, aliás, com a incumbência cometida ao Estado no art. 59º, n.º 2, alínea c), de assegurar a especial protecção do trabalho das mulheres durante a gravidez. Por seu turno, a lei ordinária tem vindo, essencialmente desde a publicação da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, a aprofundar progressivamente a concretização deste valores.
11. Não se afigura, aliás, desajustado considerar, na esteira do que defendem JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS (4) que, “em face da maior determinação constitucional do conteúdo dos direitos enunciados no artigo 68º, n.º 3, é possível que, para efeitos do disposto nos artigos 17º e 18º, n.º 2, se esteja perante um direito fundamental que, em algumas das duas dimensões, apresenta uma natureza análoga à dos direitos, liberdade e garantias“. De todo o modo, do princípio da subordinação da Administração à Constituição (art. 266º, n.º 2) resulta que esta deve conformar a sua actuação administrativa (e não só a de natureza normativa) à Lei Fundamental, devendo nos seus actos procurar soluções que melhor garantam o exercício dos direitos a que esta confere especial dignidade.
12. Do exposto resulta, pois, que, no caso, se torna imperioso encontrar o melhor equilíbrio possível entre o interesse público (para o que serão relevantes os aspectos referidos no parecer do Departamento de Assuntos Jurídicos) e a protecção da posição jurídica da interessada como candidata no concurso, em virtude de esta se encontrar numa situação que a Constituição quer ver especialmente protegida. Ora, a posição que o Júri adoptou e comunicou à interessada não demonstra, como se referiu, ter sido ponderada devidamente a situação de gravidez, confinado-se tão somente a argumentos de ordem geral, aplicáveis, em rigor, a idênticas pretensões formuladas por quem não se encontre naquela situação.
13. Acresce que os argumentos invocados também não são procedentes. Em primeiro lugar e como atrás já se adiantou, a circunstância de a teleconferência não se encontrar expressamente prevista no regime legal dos concursos como meio de realização da prova oral de conhecimentos não é suficiente, por si só, para afastar a pretensão da interessada. É que o facto de este meio não se encontrar expressamente referido não significa que o mesmo não possa, em absoluto, ser adoptado: o Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho, limita-se a dispor que as provas de conhecimentos poderão revestir a forma escrita ou oral, nada mais definindo quanto à forma da sua realização. O que se impõe, por isso, aferir é se o uso de tal meio compromete a natureza e os fins que se pretendem prosseguir por via de tal método de selecção.
14. Por outro lado, à ausência de referência expressa por parte do legislador dos concursos não pode atribuir-se a virtualidade de significar que este considerou não se tratar de meio adequado de concretização da prova oral ou da entrevista profissional de selecção: pelo contrário, presentes os interesses que subjazem aos concursos de recrutamento e selecção de pessoal não será difícil concluir que a falta de referência à teleconferência resulta somente de um juízo de oportunidade ou de custo/benefício, porquanto, na generalidade das situações não há motivos que, na lógica dos concursos, se apresentem como suficientemente preponderantes que justifiquem prever a utilização, por via de regra, de um meio oneroso como é a teleconferência.
15. Importa, notar, do mesmo passo, que, pese embora a teleconferência não se encontrar expressamente prevista no regime legal dos concursos, nem nas normas de natureza regulamentar específicas do concurso em questão, o certo é que essa via não se encontra arredada do procedimento administrativo, cuja disciplina rege supletivamente os procedimentos concursais de recrutamento e selecção de pessoal. Na verdade, nos termos do art. 87º do Código do Procedimento Administrativo, o órgão instrutor do procedimento “pode recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito“. Ora, com a entrada em vigor dos Decretos-Leis nº. 183/2000, de 10 de Agosto, e nº 320-C/2000, de 15 de Dezembro, a teleconferência passou a ser aceite como meio normal de obtenção de prova testemunhal e pericial nos processos civil e penal, respectivamente. Donde resulta necessariamente a sua admissibilidade no âmbito do procedimento administrativo.
16. Retomando a questão atrás enunciada – a de saber se a aplicação da teleconferência à prova oral de conhecimentos compromete, de forma substancial, os fins deste método de selecção –, não se perfilha o entendimento subjacente à resposta dada à interessada, segundo o qual aquele meio não garante a “relação de interface pessoal” própria da natureza da prova oral de conhecimentos e da entrevista profissional de selecção. Para tanto, basta notar que se esta “relação de interface pessoal” é importante numa prova oral, ela surge como imprescindível num depoimento testemunhal e tal não inibiu o legislador processual penal e civil de admitir, como se viu, a teleconferência como meio (não necessariamente excepcional) para a prestação de depoimentos. Donde se extrai o entendimento legal de que o uso da teleconferência não prejudica uma “relação de interface pessoal”.
17. Acrescenta-se na aludida resposta que a relação de interface pessoal deve desenrolar-se em exactas condições de igualdade, que não estariam asseguradas no caso de um dos candidatos prestar a sua prova através daquela via. É forçoso admitir que, se à candidata for possível realizar a sua prova através de teleconferência, a mesma não estará numa situação de absoluta igualdade relativamente aos demais concorrentes, mas é igualmente imperioso concluir que as desvantagens serão de maior peso para si. Senão vejamos.
18. Se se reconhece que a tensão provocada pela realização da prova oral possa ser atenuada pela mediação dos meios tecnológicos de conversação à distância, por o candidato não estar fisicamente perante o Júri, do mesmo passo não se pode ignorar, em sentido inverso, que a falta desta presença física pode igualmente atenuar o “brilho” e mesmo a inteligibilidade absoluta da exposição oral. Mas, o que parece preponderante é que a candidata em questão estará em condições globalmente menos vantajosas, desde logo por não poder aceder, no período compreendido entre o sorteio do tema e a apresentação da exposição oral, à bibliografia que se encontra ao dispor dos demais candidatos. Condições menos vantajosas a que a candidata aceitou submeter-se, naturalmente em face da alternativa de vir a ser excluída do concurso por falta de comparência à prova.
19. O exposto não prejudica que, em qualquer caso, a realização da prova à distância imponha que seja assegurado o cumprimento das demais regras previstas no art. 21º do Regulamento do Concurso para a realização da prova oral de conhecimentos, em especial a que impede o candidato de, no período que medeia entre o sorteio do tema e a realização da prova, contactar com pessoas estranhas ao concurso e bem assim as que definem os elementos que o candidato pode consultar durante a realização da exposição. De todo o modo, dispondo o MNE de um Consulado-Geral em Macau, não se vê razão para, à partida, excluir a colaboração de um funcionário diplomático para garantir o cumprimento de tais normas.
CONCLUSÃO:
O Provedor de Justiça comunicou ao Presidente do Júri a sua posição sobre a questão, no sentido de vir a ser procurada a solução que melhor representasse o equilíbrio entre os interesses em presença – de um lado, o interesse público e, de outro, a especial protecção que a situação de gravidez da interessada requer – e, desse modo, ser aferida a possibilidade de a prova oral de conhecimentos da candidatada vir a ser realizada por teleconferência, mediante a colaboração do Consulado-Geral de Portugal em Macau.
Em resposta, o Presidente do Júri informou não ter sido satisfeita a pretensão da reclamante, em virtude de o Consulado-Geral de Portugal em Macau não dispor das condições tidas por necessárias à realização da prova por teleconferência.
Pese embora lamentando não ter sido possível encontrar, para o caso, uma solução que representasse o melhor equilíbrio entre os valores em conflito, tendo em conta, por um lado, que se tratava de uma situação de estado avançado de gravidez, qualificada como de alto risco, e considerando, por outro lado, o momento presente, em que a comunicação à distância com imagem beneficia de uma multiplicidade de soluções tecnológicas de fácil acesso, foi determinado o arquivamento do processo aberto com base na reclamação da candidata, por se considerar encontrarem-se esgotadas as possibilidades de intervenção sobre o assunto.
(1) Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª edição, Coimbra, 1999, comentário III ao art. 4º.
(2) Autores e loc. citados, comentário VI ao art. 5º.
(3) Ibidem.
(4) Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, pag. 704.