OUTRAS DECISÕES
Entidade visada: Ministra da Justiça
Assunto: Código de Processo Civil. Alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, e Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro. Citação por via postal simples.
As mais recentes alterações ao Código de Processo Civil, concretizadas por via da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, e da Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro, desencadearam um leque de reacções por parte das entidades que, de algum modo, estão relacionadas com a actividade dos tribunais, algumas delas participando mesmo na produção da mencionada normação.
A verdade é que tal cadeia reactiva não se circunscreveu a esses operadores judiciários, já que foram as preocupações do cidadão comum, face ao sentido da evolução legislativa registada, que motivaram a abertura na Provedoria de Justiça do presente processo. Tal demonstra que as modificações levadas a cabo suscitam alguma perplexidade, não apenas do ponto de vista da sua adequação técnico-jurídica, mas também, diria mesmo sobretudo, na medida em que geram um sentimento generalizado de dúvida quanto à sua eventual compatibilidade com os valores estruturantes de um Estado de Direito Democrático.
Esclareço, desde já, que o âmbito do presente ofício se circunscreve à questão da citação em processo civil, objecto nuclear das queixas que me foram dirigidas e manifestamente a matéria que revela, no quadro dos princípios que regem o nosso ordenamento jurídico, maiores dificuldades.
Ficam, desta feita, de fora desta exposição as modificações operadas no seio das notificações em processo penal, já que entendo que o enquadramento da questão revela aqui contornos substancialmente distintos dos do processo civil, que me levam a considerar não se lhes aplicar o fundamento da presente comunicação.
De facto, no caso do processo penal, o arguido indica, aquando da prestação do termo de identidade e residência (medida de coacção automaticamente aplicada na constituição de arguido), para o efeito de poder ser notificado por via postal simples, a respectiva morada, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha (art.º 196.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro). No mencionado termo de identidade e residência constará que foi dado conhecimento ao arguido de que as notificações posteriores serão feitas por via postal simples para a morada aí indicada, salvo se o mesmo comunicar uma outra, nos termos definidos na lei (n.º 3, alínea c), do artigo citado).
Também é permitida a notificação por via postal simples aos assistentes e às partes civis, para o efeito indicando uns e outras à autoridade judicial, a sua residência, local de trabalho ou outro domicílio. Tal indicação é acompanhada da advertência de que qualquer mudança da morada mencionada deve sempre ser comunicada, nos moldes referidos na lei, à secretaria onde os autos se encontram a correr (cf. art.º 145.º, n.ºs 5 e 6, do mesmo Código, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000).
Assim sendo, a notificação em processo penal por via postal simples acontece em circunstâncias em que, tanto o arguido como o assistente ou a parte civil, têm já conhecimento do decurso de um processo em que são, de uma forma ou outra, intervenientes, não se colocando aqui a questão, afinal objecto da presente análise, do eventual desconhecimento, por parte dos cidadãos colocados numa qualquer posição processual, maxime como arguidos, da existência daquela acção.
Nota preliminar
1. Começo por referir que o presente documento pretende ser, não apenas mais uma reacção às inovações levadas a cabo pelo legislador, mas um contributo para aquilo que penso poder constituir um melhoramento do quadro legal e dos procedimentos em discussão.
De qualquer forma, desde logo, não deixarei de referir a Vossa Excelência que a orientação subjacente às modificações legislativas que aqui me ocupam faz-me comungar de muitas das preocupações já suficientemente trazidas a público por diversos quadrantes da vida jurídica e judiciária do país, colocando-me dúvidas que me atreveria a qualificar como não despiciendas.
2. Antes de mais, ao nível da constitucionalidade da solução que integra, dentro do enquadramento legal vigente, referir-me-ei à possibilidade de a citação poder consolidar-se através de uma comunicação ao respectivo destinatário pela via postal simples, nos moldes estabelecidos pela legislação em causa.
É o próprio Código de Processo Civil, no seu art.º 228.º, n.º 1, que define a citação como “o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender”. O conhecimento efectivo da propositura, contra determinada pessoa, de uma qualquer acção, e dos termos exactos da mesma, num tribunal – órgão com competência constitucional para defender os direitos e interesses legítimos dos cidadãos e dirimir conflitos, sendo as suas decisões apenas sindicáveis por outro órgão jurisdicional -, consubstancia a garantia primeira e incontornável do cumprimento dos princípios do contraditório e da igualdade, enunciados de forma genérica nos art.ºs 3.º e 4.º do referido Código, mas com expressão necessária em todos os momentos do processo civil, constituindo uma sua verdadeira trave-mestra.
Tais princípios encontram inevitável consagração na Constituição da República Portuguesa, mormente nos respectivos art.ºs 20.º e 2.º, este último definidor do conceito de Estado de Direito Democrático.
A propósito do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consubstanciado no primeiro daqueles preceitos, assinala o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 960/96, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Dezembro de 1996, como parte do respectivo conteúdo conceptual a proibição de indefesa, que consistirá na “privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito”. Adianta o mesmo Tribunal que “a violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses”.
Não é a modalidade em si – de citação por via postal simples – que gera as dúvidas com que se defronta este Órgão do Estado. É antes a possibilidade que o mecanismo da citação por via postal simples, tal como concebido na legislação em causa, desencadeia, no sentido de poder inviabilizar o conhecimento por parte do cidadão, pelo menos em tempo útil para efectivação de uma defesa cabal, de que foi contra si proposta uma acção judicial.
Sendo certo que, conforme se lê no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 210/90 (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 1991), o direito em análise não implica a garantia de uma certa forma de citação ou de um certo modo de chamamento do réu a juízo, pelo que “a forma desse conhecimento não haverá de ser sempre idêntica, pois que as complexas situações da vida justificam ou podem justificar um tratamento diversificado por parte do legislador”, também “é manifesto que, pelo lado daqueles contra quem as acções são dirigidas, o direito ao tribunal apenas pode exercer-se se e quando lhe for dado conhecimento da existência do respectivo pedido” (sublinhado meu).
Por seu turno, escreve Carlos Lopes do Rego (“Acesso ao direito e aos tribunais”, in “Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Editorial Notícias, 1993, pp. 43 e ss.) que “embora considerando que a Constituição não impõe um modelo predeterminado para o processo judicial entre particulares, gozando, consequentemente, o legislador ordinário de ampla margem de discricionariedade no delinear da respectiva tramitação, segundo considerações de oportunidade, eficácia e celeridade, deverá esta subordinar-se, no entanto, a um cumprimento minimamente satisfatório daqueles dois princípios fundamentais (o do contraditório e o da igualdade processual ou igualdade de armas)“ (pp. 55 e 56).
Por outro lado, ainda, sintetizando a orientação jurisprudencial sobre a matéria, pode ler-se no aresto do Tribunal Constitucional n.º 960/96, acima já identificado, que o direito de acesso aos tribunais tem vindo a ser caracterizado pela respectiva jurisprudência como o “direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras”.
Não tecendo, por ora, outro tipo de considerações a que mais à frente voltarei, sobre as dificuldades específicas que poderão enquadrar a concretização do novo regime, não será para já difícil elencar um conjunto de situações em que o réu, estando de boa fé, isto é, não estando a furtar-se à citação, poderá ver confessados os factos adiantados na petição inicial ou ver admitido como válido o próprio pedido sem possibilidade de ter apresentado, nos moldes que lhe são garantidos pelo ordenamento constitucional português, a sua defesa. Para tanto, bastará que se tenha ausentado em gozo de férias por um período de tempo mais prolongado, que esteja temporariamente a trabalhar fora do local da sua residência, que esteja a residir, por um período transitório e pelos motivos mais variados (doença, assistência à família, obras), em casa de familiares ou amigos. E o leque de possibilidades reais não comprometerá decerto o que acima fica dito.
Sublinha-se que o único “processo de registo” a que fica submetido o procedimento em causa – conforme se lê no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 183/2000, “para se assegurar a correcta expedição e entrega da citação por via postal simples exige-se que o oficial de justiça lavre uma cota no processo com a indicação expressa da data e do endereço postal morada para o qual expediu a carta e que o distribuidor postal lavre uma declaração da qual conste a data e o local de depósito da mesma ou das razões que impossibilitaram esse depósito, ficando assim consagrado um sistema de duplo controlo da realização desta modalidade de citação” – não assegura de forma alguma que a carta chegue efectivamente ao destinatário e que este tome conhecimento do teor da mesma.
Poderá aduzir-se ser sempre possível arguir, nos termos previstos no art.º 195.º, alínea e), do Código de Processo Civil, a falta de citação. Se tal proposição se configura verdadeira, não obstante acarretar dificuldades que se prendem, não só com a produção da prova negativa mas igualmente com o enquadramento que a norma em causa passou a ter com a publicação da nova legislação (assunto que adiante retomarei), também não deixa de ser verdade que, no campo dos princípios de que nesta fase nos ocupamos, não se revelará fácil, mesmo assim, justificar uma condenação ou a tramitação de um processo contra uma pessoa, decorrente de uma não-prestação, ou de uma prestação condicionada, por esta pessoa, dos argumentos da sua defesa.
Assim, não serão provavelmente desprezíveis os danos que poderão causar uma condenação ou mesmo uma simples tramitação de um processo judicial contra um cidadão em termos injustos ou apenas incorrectos. No domínio dos princípios, a defesa permitida ab initio será sempre substancialmente distinta da defesa conseguida a posteriori, mesmo levando esta à anulação de todo o processado, como se nada se tivesse passado.
Este “como nada se tivesse passado” só ocorrerá, como é bom de ver, no plano jurídico – formal e material do ponto de vista do desfecho da acção -, não apagando no entanto o que entretanto ocorreu em virtude de uma condenação ou da concretização de actos judiciais, a saber aqueles que nunca teriam ocorrido se o réu tivesse tido conhecimento da propositura da acção ao tempo em que esta se verificou.
Chamando à colação a doutrina do Prof. José Lebre de Freitas, adianta Carlos Lopes do Rego, no estudo acima identificado, que, na perspectiva daquele autor, o princípio do contraditório deve “ser entendido como o «princípio da participação efectiva (das partes) no desenvolvimento do litígio»: às partes deve ser fornecida, ao longo do processo, a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em efectiva ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo se pressintam como potencialmente relevantes para a decisão” (ob. cit., p. 58).
Não parece adequado basear a bondade da actual solução legislativa na ideia, porventura correcta, de que as situações acima mencionadas, como potencialmente não permitindo o conhecimento, pelo réu, da propositura contra si de uma acção e dos termos do pedido, serão residuais. No domínio igualmente dos princípios, o Estado de Direito Democrático não se compadecerá com tal argumentação.
Conforme referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, 1993, p. 65), “ao Estado incumbe não apenas «respeitar» os direitos e liberdades fundamentais mas também «garantir a sua efectivação». Daqui resulta o afastamento de uma concepção puramente formal, ou liberal, dos direitos fundamentais, que os restringisse às liberdades pessoais, civis e políticas, e que reduzisse estas a meros direitos, a simples abstenções do Estado. Com efeito, por um lado, importa defender os direitos de liberdade não só perante o Estado mas também perante terceiros, sucedendo que, muitas vezes, é aquele que está em condições de os garantir perante os segundos”.
Na esteira deste mesmo entendimento, conclui-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 467/91 (publicado no Diário da República, II Série, de 02 de Abril de 1992) que “a compreensão do sentido e alcance da norma do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, haverá de ter em conta esta dupla dimensão da garantia do acesso à justiça – a dimensão de defesa e a dimensão de prestação – e ainda a necessária articulação de tal garantia com o princípio fundamental da igualdade (CRP, artigo 13.º). (…) Desde logo, porque o “direito ao tribunal”, nesta sua pluridimensionalidade, não significa para o Estado aquele dever de abstenção que, em regra, vai ligado aos direitos de defesa: significa antes a incumbência de o Estado realizar a tarefa qualificada de proporcionar aos cidadãos a tutela jurisdicional dos seus direitos”.
Conforme se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Maio de 1996 (in Boletim do Ministério da Justiça n.º 457, pp. 288 e ss.) a citação “é simplesmente o acto mais relevante para efeitos de realização do princípio do contraditório, sem o qual não há transparência nem garantias de defesa”, sendo que “os tribunais não podem deixar de ser exigentes na averiguação do condicionalismo de uma citação, não em termos de formalismo por formalismo, mas na perspectiva essencial da sua causa final, a saber, a dação de conhecimento efectivo, a uma pessoa, de que está accionada judicialmente, para que possa exercer, em plenitude, o seu direito de defesa. (…) Trata-se de uma problemática jurídica e ética a respeitar, designadamente por quem intervém no acto de citação”.
A citação por via postal simples constitui uma opção. A verdade – e não se pode escamotear a questão -, é que tal opção acarretará sempre a possibilidade, mesmo que esta seja residual, de um cidadão ser condenado sem poder apresentar a sua defesa, ainda que possa anular todo o procedimento conducente à decisão judicial, ou de ser condenado sem ter tido oportunidade de contestar ab initio aquilo de que vinha acusado. A diferença é importante e faz todo o sentido no campo dos princípios. A opção por uma ou outra solução é também ela determinante e deve ser rigorosamente ponderada.
Não se pode de resto afirmar que a decisão legislativa tenha sido pacífica, no quadro parlamentar. Não obstante o reconhecimento unânime da necessidade de mudanças no sistema de aplicação da Justiça em Portugal, o debate parlamentar, na reunião plenária da Assembleia da República de 20 de Outubro de 2000, em sede de apreciação do Decreto-Lei n.º 183/2000, prova a ausência de consenso na orientação escolhida (cf. Diário da Assembleia da República de 21 de Outubro de 2000).
3. Ainda no domínio da constitucionalidade, ultrapassada a questão mais específica acima explicitada, importará sempre apurar se as alterações legislativas de que nos ocupamos trouxeram ou não ao processo civil uma diminuição global das garantias de defesa do cidadão, insustentável daquele ponto de vista.
E, por isso, as sugestões contidas no presente ofício, formuladas nos termos mais à frente explicitados, partem da minha convicção de que o actual regime consubstancia um desequilíbrio relevante e mesmo inadmissível no campo dos princípios do contraditório e da igualdade, reclamando uma reapreciação com vista à salvaguarda dos direitos do cidadão réu, tal como decorrem da Lei Fundamental, e ao reajustamento da igualdade de posições das partes no processo civil. É a este assunto que voltarei mais tarde, em sede, conforme já adiantado, de formulação de propostas.
4. Refiro ainda que alguns pontos mais específicos do novo regime geram igualmente dúvidas sobre a respectiva conformidade à Constituição. É o caso da eventual desigualdade decorrente da circunstância de a citação feita em pessoa diversa da citanda se mostrar ilidível, nos termos legais (cf. art.º 238.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil), ao contrário do que sucederá com a eventual não entrega da carta ao destinatário no âmbito das situações que caem na alçada da citação por vai postal simples (seja nas acções para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, nos moldes consubstanciados no art.º 236.º-A, n.º 2, do Código, seja nos restantes casos, quando sai frustrada a citação por via postal, conforme decorre do disposto no art.º 238.º da legislação).
5. Tecidos os comentários decorrentes da apreciação do novo regime, face à orientação sobre a matéria expressa no texto constitucional, importa agora explicitar que, não obstante a viabilidade da arguição da violação do direito de acesso à justiça, consagrado no art.º 20.º da Constituição, na sua vertente de direito de defesa e de garantia do princípio do contraditório, e da possibilidade de invocação do desrespeito do princípio da igualdade, plasmado de forma genérica no art.º 13.º, ambos com expressão mais ampla no art.º 2.º da Lei Fundamental, sempre se refere que um pedido de fiscalização abstracta, qualquer que fosse a posição a final assumida pelo Tribunal Constitucional, revelar-se-ía inevitavelmente uma decisão tardia, designadamente face a prováveis iniciativas em sede de fiscalização concreta.
É que esses hipotéticos recursos, ao serem providos, sempre conduziriam a uma eventual alteração legislativa ou à aplicação do mecanismo previsto no art.º 281.º, n.º 3, da Constituição (passagem da fiscalização concreta à abstracta), com a consequente inutilidade de uma iniciativa do Provedor de Justiça. Por seu turno, uma série de decisões de não provimento levaria com toda a probabilidade a uma negação desse pedido em sede abstracta.
Julguei desta feita pouco adequado enveredar pela via da fiscalização da constitucionalidade.
6. Antes de entrar na fase das sugestões, nos termos já atrás explicitados, entendo ainda adequado referir que o regime legal em vigor sobre a citação em processo civil me suscita dúvidas sérias sobre a oportunidade, conveniência e necessidade das medidas tomadas.
Não valerá a pena insistir aqui na ideia da morosidade da justiça. Será todavia o processo civil uma das principais causas deste fenómeno, em particular o regime anterior da citação? A verdade é que não creio terem resultado, da discussão tida sobre o assunto, suficientemente claras as respostas a tais perguntas e tão-pouco direccionadas, de molde a justificarem uma alteração do regime da citação, tal como veio a ser concebido, atendendo sobretudo aos riscos, designadamente em matéria constitucional, que a solução em si mesma comporta.
Por exemplo, num estudo sobre bloqueios ao andamento dos processos, levado a cabo em 1995 pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, foi possível concluir pelo seguinte elenco de causas de morosidade da justiça: “más condições e ambiente de trabalho; irracionalidade na distribuição de magistrados e de funcionários judiciais, impreparação ou negligência de magistrados e funcionários, volume de trabalho, recursos a peritos e outros técnicos cujo trabalho não é controlado pelos tribunais, cumprimento das cartas precatórias e rogatórias” (in “Os Tribunais na Sociedade Portuguesa”, Conclusões, Volume V, pp. 10.10 e 10.11).
Em nenhum momento do mencionado estudo é extraída a conclusão, e de resto nenhuma conjugação de dados expressa no mesmo documento permite chegar a tal tipo de consideração, de que a inviabilização da citação dos réus em processo civil constitua o nó górdio do sistema.
Refere-se, no entanto, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 183/2000 ser “unânime que uma das fases mais demoradas no processo civil é a da citação, não sendo raro esperar-se meses ou mais de um ano até à sua realização”. Admitindo que assim seja, será por seu turno a verdadeira causa de tal morosidade a que aparece seguidamente expressa no mesmo preâmbulo? É realmente o processo civil que não se adapta aos dias de hoje ou é a estruturação dos serviços judiciários, com todos os problemas inerentes ao seu (des)funcionamento actual – realidade que desempenha de resto o papel principal no estudo atrás mencionado -, que se encontra inapta a concretizar esse processo civil? As citações são goradas por culpa dos particulares, que se esquivam à sua recepção, ou por culpa do Estado que não dispõe de meios adequados e suficientes para que as mesmas conheçam uma taxa de sucesso bem diferente?
São a este propósito pertinentes as palavras do Prof. José Lebre de Freitas no seu artigo “A Crise e o Processo Civil” (in “Justiça em Crise? Crises da Justiça”, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 275): “Em tempo de crise da justiça, é normal que se questione o papel nela desempenhado pelo direito processual civil. Menos natural é a tendência para ver na lei de processo a origem, ou o mais importante factor de agravamento dessa crise. Esta imputação é, porém, quer em Portugal quer em outros países, um hábito. O processo civil aparece assim, com frequência, como bode expiatório de deficiências na orgânica judiciária, na preparação de magistrados, advogados e funcionários judiciais e no controlo do funcionamento do sistema de justiça”.
Expressivo é igualmente o aviso feito na mesma obra, desta vez pelo meu antecessor, Conselheiro Menéres Pimentel, num artigo intitulado “Algumas Reformas Necessárias”: “Julgo (…) importante estabelecer-se, ao contrário do que tem sido prática, provavelmente inconscientemente determinada, uma política estruturada de contenção legislativa. É inadequado solicitar-se aos agentes judiciários um esforço contínuo de apreensão de novas regras processuais, muitas vezes de mais-valia duvidosa face ao statu quo ante, tendo em conta os custos da adaptação de procedimentos e de digestão das reformas pela máquina judicial” (p. 302).
Dando como válida a elevada percentagem de devoluções de cartas registadas, invocada sistematicamente como fundamento da nova legislação, a que ficam a dever-se, afinal, tais números? À fuga dos cidadãos à citação ou à ausência de um sistema global, integrado e actualizado de informações sobre o domicílio dos cidadãos no nosso país, a que se junta, conforme já referido, uma máquina judiciária incapaz de dar resposta cabal às actuais exigências em matéria de justiça? Não estará, neste caso, o legislador a remeter para o cidadão culpas que ao Estado devem em primeira linha ser atribuídas? Não estará o legislador a desresponsabilizar o Estado, e a sacrificar ilegitimamente os cidadãos, com reflexo numa intolerável diminuição das garantias de defesa destes?
Conforme se pode ler num outro aresto do Tribunal Constitucional (o Acórdão n.º 678/98, publicado no Diário da República, II Série, de 04 de Março de 1999) “a celeridade processual, conquanto sendo um valor que deve presidir à administração da justiça, não poderá, claramente, ser erigida a um tal ponto que, em seu nome, vá sacrificar aqueloutros valores que, afinal, são componentes de direitos fundamentais tais como os do acesso aos tribunais em condições de igualdade e de uma efectividade de defesa”.
Gomes Canotilho adianta, por seu turno (in “Manual de Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 3.ª edição, Almedina, 1999), que “a exigência de um processo sem dilações indevidas, ou seja, de uma protecção judicial em tempo adequado, não significa necessariamente “justiça acelerada”. A “aceleração” da protecção jurídica que se traduza em diminuição de garantias processuais e materiais (…) pode conduzir a uma justiça pronta mas materialmente injusta” (p. 467).
7. Sempre se dirá, por fim, para além dos reparos acima feitos, que tenho fundadas dúvidas sobre se a solução legal encontrada trará, afinal, benefícios com tradução na aceleração da Justiça.
Apenas se deixa como exemplo – muitos outros poderiam ser aqui referidos – o procedimento de consulta às entidades detentoras das bases de dados dos Serviços de Identificação Civil, da Segurança Social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral de Viação, o qual, nos moldes em que se encontra concebido e a ser aplicado (implicando uma troca de correspondência nem sempre eficaz entre os tribunais e aqueles organismos), poderá vir a revelar-se, na prática, um factor tendencial de indução da morosidade processual.
8. Concluída, desta feita, a nota preliminar a propósito das dúvidas suscitadas a este Órgão do Estado no que toca, por um lado, à constitucionalidade da legislação reformuladora do instituto da citação e, por outro, à oportunidade, conveniência e necessidade da intervenção do legislador que culminou na publicação do Decreto-Lei n.º 183/2000, importa agora direccionar o presente ofício para a análise da citação no quadro global decorrente da actual lei processual civil.
Citação por via postal simples
9. Prescreve o actual art.º 236.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil que “nas acções para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, a citação será efectuada mediante o envio de carta simples, dirigida ao citando e endereçada para o domicílio ou sede que tenha sido inscrito naquele contrato para identificação da parte, excepto se esta tiver expressamente convencionado um outro local onde se deva considerar domiciliada ou sediada para efeitos de realização da citação em caso de litígio”.
Não obstante ter estado, ao que parece, no espírito do legislador, circunscrever o meio excepcional consagrado por tal dispositivo apenas aos contratos de que resultem obrigações periódicas – até atendendo ao teor do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 183/2000, que obrigou as “entidades prestadoras de serviços vinculadas a contratos de execução continuada” (sublinhado meu) a informarem os seus clientes sobre as novas regras da citação em caso de litígio emergente daqueles contratos -, a verdade é que isso mesmo não resulta líquido da redacção da mesma norma.
De facto, conforme se pode ler na anotação ao artigo feita por Abílio Neto (in “Código de Processo Civil Anotado”, 16.ª edição actualizada, Coimbra Editora, Fevereiro de 2001, p. 349), “na reforma empreendida pelo DL n.º 183/2000, o legislador, a par de manter a regra da citação por via postal registada (…), abriu a possibilidade da citação por via postal simples (designadamente) nas acções judiciais destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, quando neste se tenha inscrito o domicílio ou a sede para identificação da parte, excepto se esta tiver expressamente convencionado um outro local onde se deva considerar domiciliada ou sediada para efeitos de citação em caso de litígio (art. 236.º-A, n.º 1)” (sublinhado meu).
Ora, não resulta claro da leitura da norma em apreço que esta não se aplique, por exemplo, aos contratos reduzidos a escrito de que resultem obrigações de prestação pecuniária única ou com carácter não periódico, revelando-se desta feita importante que o legislador explicite na lei, de forma adequada e inequívoca, aquele que parece ser o seu objectivo, qual seja o de circunscrever tal mecanismo precisamente aos contratos de execução continuada.
De resto, não se pode dizer que o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 183/2000 já conhecia como que um afloramento no âmbito da regulamentação enquadrada pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro – diploma que aprova o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância -, mais propriamente na sequência das alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 383/99, de 23 de Setembro.
Aqui, o princípio não é o da citação por via postal simples, mas antes o da citação mediante carta registada com aviso de recepção, sendo que, quando a primeira carta vem devolvida, se verifica nova insistência, também através de carta postal registada com aviso de recepção. O que sucede é que, nos casos de não levantamento, no prazo legal e no estabelecimento postal indicado, da segunda carta, de recusa de assinatura do respectivo aviso de recepção ou de recebimento da mesma por pessoa diversa do citando, a segunda carta é depositada na caixa do correio, nos moldes preceituados na lei, considerando-se feita a citação na data deste depósito.
Assim sendo, nem o citando é destinatário de qualquer comunicação por via postal simples, nem a presunção que se institui nesta legislação especial – a de que na data certificada pelo distribuidor do serviço postal, nos termos referidos, o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados -, é uma presunção estabelecida à partida, já que a via postal registada com aviso de recepção é sempre tentada duas vezes. Nestes termos, o passo que é dado de um para outro dos regimes em causa é substancial, o que levou de resto à alteração, por via do Decreto-Lei n.º 183/2000, da própria legislação especial (cf. art.º 4.º do diploma de 2000).
Também o mesmo dispositivo legal, o art.º 236.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, acaba por possibilitar a inclusão, na mesma previsão, dos contratos que, à data da propositura da acção, possam ter sido já denunciados. Tal traduz-se numa ausência de garantia óbvia para o eventual citando, o qual, ciente de que nada mais tem a pagar no âmbito daquele e considerando o mesmo denunciado, não terá a preocupação de comunicar, à outra parte, qualquer eventual alteração de morada que entretanto ocorra.
Assim sendo, deverá ficar claramente estabelecido que a utilização do mecanismo aí previsto se circunscreva aos contratos em vigor à data da propositura da acção, ou que tenham sido denunciados apenas nos trinta dias anteriores à mesma (prazo encontrado por analogia ao prazo estabelecido, no n.º 2 da mesma norma, para o contraente comunicar à outra parte a sua alteração de residência).
Nestes termos,
A) Proponho a Vossa Excelência que ao art.º 236.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil seja dada uma redacção compatível com aquele que parece ser o espírito da lei, a saber, o de circunscrever o mecanismo aí estabelecido aos contratos de execução continuada. B) Sugiro, ainda, que se adite à mesma norma a limitação da possibilidade de utilização do mecanismo aí previsto aos contratos em vigor à data da propositura da acção, ou que tenham sido denunciados apenas nos últimos trinta dias anteriores a esta data. |
10. A questão nuclear das sugestões constantes do presente ofício reconduz-se, conforme acima devidamente explicitado, ao reforço das garantias do réu e ao reequilíbrio das posições das partes no processo civil.
É que as modificações operadas pela entrada em vigor da nova legislação não foram acompanhadas das necessárias alterações ao nível da tramitação subsequente do processo civil, não se verificando qualquer compensação pela inevitável diminuição das garantias com que se sacrificou uma das partes, o réu, na fase da citação.
Importa assim verificar que possibilidades de defesa são concedidas ao réu no âmbito da questão que aqui nos ocupa, e do quadro legal actualmente vigente.
Antes de mais, atente-se nos casos em que a lei entende ocorrer falta de citação, consubstanciados no art.º 195.º do Código de Processo Civil, situações essas que podem levar à anulação do processado posterior à petição inicial [(v. anterior art.º 194.º, alínea a)], podendo a nulidade em apreço ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (art.º 204.º, n.º 2, do Código).
Não creio que o mencionado art.º 195.º permita a defesa do réu que, embora citado por via postal simples nos termos previstos na lei, não teve efectivo conhecimento dos elementos objecto da citação.
Se, por exemplo, a alínea e) do referido preceito – e igualmente as possibilidades conferidas, em sede de revisão de sentença e de oposição à execução baseada em sentença, respectivamente decorrentes dos art.ºs 771.º, alínea f), e 813.º, alínea d) -, possibilitarão, conforme abaixo explicitado, tal defesa nos casos em que o réu não foi citado por facto que não lhe pode ser imputável, por exemplo quando se ausentou da sua residência por um período razoável de tempo (em gozo de férias, por motivos de saúde, trabalho, assistência à família, etc.), pese embora se coloque sempre a questão da dificuldade inerente à produção da denominada prova negativa, o mesmo não acontecerá nas restantes situações.
É que a alínea e) do art.º 195.º do Código permite a arguição da falta de citação “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável“ (sublinhado meu).
Quando o réu, por exemplo, não comunicou à contraparte, no âmbito de um contrato reduzido a escrito e do qual resultam obrigações pecuniárias, a alteração da morada, tal facto ser-lhe-á imputável, porque estava obrigado a fazê-lo, nos termos do preceituado no art.º 236.º-A, n.º 2, da legislação. Em anotação ao preceito, adianta Abílio Neto (ob. cit., p. 305) que “se, por força de cláusula contratual, as partes se obrigaram reciprocamente, ou alguma delas, a informar a outra da eventual alteração de domicílio – cláusula, aliás, assaz frequente no comércio jurídico -, e omitiu o cumprimento desse dever, não poderá a faltosa socorrer-se da nulidade da citação para acção emergente do contrato, quando a carta de citação foi dirigida para a anterior morada, constante do contrato”.
O mesmo sucederá se o citando não regularizou os dados sobre a sua residência nas diferentes bases de dados agora utilizados pelo tribunal ao abrigo do disposto, desta feita, no art.º 238.º.
Por seu turno, o art.º 198.º, n.º 1, do Código, prevê a nulidade de citação “quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”, o que, pelas razões acima aduzidas, igualmente não servirá ao citando colocado na situação em análise.
A falta ou nulidade da citação, conforme atrás aflorado, são ainda susceptíveis de fundamentar o recurso de revisão e a oposição à execução baseada em sentença. Assim, o art.º 771.º, alínea f), do Código de Processo Civil admite a revisão da decisão transitada em julgado “quando, tendo corrido a acção e a execução à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que faltou a sua citação ou é nula a citação feita”. Por seu turno, um dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença é, nos termos do art.º 813.º, alínea d), da legislação, “a falta ou nulidade da citação para a acção declarativa quando o réu não tenha intervindo no processo”.
Só que a conclusão acima tecida a propósito da falta ou nulidade da citação aplicada à situação aqui em análise compromete, desde logo e pelas mesmas razões, a possibilidade de revisão da sentença nos termos previstos no art.º 771.º, alínea f), do Código, ou a oposição à execução, com o fundamento estabelecido no art.º 813.º, alínea d), da mesma legislação.
Também não serve ao interessado a possibilidade de se opor à execução baseada em sentença com fundamento em qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, tal como definido pelo mesmo art.º 813.º, desta feita alínea g), já que tal facto, a provar por documento, terá que ser “posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração”.
Por outro lado, não obstante ser possível utilizar, já no âmbito da revisão de sentença, o mecanismo previsto no art.º 771.º, agora alínea c), que permite a utilização desse recurso extraordinário “quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”, a verdade é que, conforme refere Abílio Neto (ob. cit., p. 1144), conclui-se de tal disposição que “a revisão não pode constituir meio de o litigante que interpõe esse recurso suprir as omissões por ele cometidas quando litigou no anterior processo, ou seja, é essencial que não seja imputável à parte vencida a não-produção do documento no processo anterior”.
Tal significa que, nas situações em que a citação se considera regularmente feita mas em que o citando não teve conhecimento efectivo da mesma, embora por facto que lhe será imputável, deixa aquele de ter meios subsequentes para se poder defender. Acresce a circunstância que envolve as conhecidas dificuldades da produção da denominada prova negativa.
É a esta situação, manifestamente preclusiva da possibilidade de defesa do réu e contrária aos princípios estruturantes do processo civil – o do contraditório e o da igualdade -, que se pretende seja obviado com o que acima fica sugerido.
Assim sendo, deve o legislador ponderar a inclusão, na lei processual civil, da possibilidade de, a todo o tempo na acção declarativa e até ao trânsito em julgado da eventual sentença condenatória, poder surgir no processo o réu revel, declarando o seu paradeiro e oferecendo desde logo as provas que possam em alguma medida contrariar o pedido.
De qualquer forma, com vista a salvaguardar igualmente a posição do autor, sempre se poderia estabelecer que, no caso de improcedência da argumentação do réu colocado naquela situação, os eventuais juros vincendos peticionados pelo autor seriam sempre contados desde a data da citação inicial, regularmente feita.
Num afloramento da questão colocada, explicita Carlos Lopes do Rego, no artigo acima mencionado (ob. cit., p. 57) a perspectiva do Prof. José Lebre de Freitas, ainda no âmbito do regime legal anterior à reforma de 1995, segundo a qual, perante a tendência legislativa para simplificar o mecanismo da citação pessoal e como forma de compensar a perda de garantias formais do acto, deveria admitir-se “depois dele praticado, que o réu seja reposto no estado anterior e admitido a defender-se quando se apresenta, fora do prazo para contestar, a ilidir a presunção de que teve conhecimento efectivo do processo, demonstrando, por esta via, que o acto citação, embora obedecendo ao formalismo legal, foi, no caso concreto, inidóneo para tutelar o direito (de defesa) do interessado (…)”.
Da mesma forma, deveria alargar-se o âmbito do fundamento do recurso de revisão da sentença, consolidado na alínea c) do art.º 771.º do Código, permitindo-se sempre a apresentação do documento, nos termos aí mencionados, ao réu revel que tenha sido citado por via postal simples.
Com idêntica solução poderia ser contemplada a alínea g) do art.º 813.º do Código, alargando-se o âmbito do fundamento de oposição à execução baseada em sentença, permitindo-se, aqui, que o facto extintivo ou modificativo da obrigação de que fala o preceito possa ser, para o réu revel, anterior ao encerramento da discussão no processo de declaração.
Face ao que fica exposto,
C) Sugiro a Vossa Excelência a inclusão, na lei processual civil, da possibilidade de a todo o tempo na acção declarativa, e até ao trânsito em julgado da eventual sentença condenatória, poder surgir no processo o réu revel, declarando o seu paradeiro e oferecendo desde logo as provas que possam de alguma forma contrariar o pedido.
D) Mais sugiro que, com vista a salvaguardar igualmente a posição do autor, se preveja que, no caso de improcedência da argumentação do réu colocado naquela situação, os eventuais juros vincendos peticionados pelo autor sejam sempre contados desde a data da citação inicial, regularmente feita.
E) Proponho igualmente o alargamento do âmbito do fundamento do recurso de revisão de sentença consolidado na alínea c) do art.º 771.º do Código, permitindo-se sempre a apresentação do documento, nos termos aí mencionados, ao réu revel que tenha sido citado por via postal simples.
F) Proponho também o alargamento do âmbito do fundamento de oposição à execução baseada em sentença, contemplado na alínea g) do art.º 813.º do Código, permitindo-se, aqui, que o facto extintivo ou modificativo da obrigação de que fala o preceito possa ser, para o réu revel, anterior ao encerramento da discussão no processo de declaração.
11. A diminuição das garantias do réu em processo civil leva à inevitável ponderação dos danos eventualmente sofridos por aquele no âmbito do quadro legal actualmente vigente.
Conforme mencionado logo na nota preliminar do presente documento, os danos que poderão decorrer de uma condenação ou mesmo da tramitação de um processo judicial contra um cidadão em termos injustos ou já sequer incorrectos, não possibilitando a este uma defesa ab initio, deverão ser considerados por um Estado que assuma, em última instância, as responsabilidades inerentes ao conceito de Estado de direito democrático consagrado no texto constitucional.
Desta feita, seria sensato que o legislador ponderasse a concepção de uma solução legal que permitisse a atribuição de uma indemnização pecuniária aos cidadãos que sofram danos, já acima devidamente referidos, resultantes do eventual desconhecimento da propositura, contra si, de uma acção judicial, por facto que lhes não seja imputável.
Simultaneamente, deveria promover-se o agravamento dos montantes das multas, pelo menos no que toca aos respectivos limites superiores, em sede de condenação por litigância de má fé (cf. art.º 102.º, alínea a), do Código das Custas Judiciais).
Atenuar-se-íam, com esta última medida, não só a susceptibilidade de os réus fazerem uso indevido do mecanismo sugerido no ponto anterior, como a possibilidade de os litigantes economicamente mais poderosos, normalmente na posição de autores e com um mecanismo à sua disposição, o recurso à via judicial, financeiramente considerado bastante acessível, poderem utilizar de forma abusiva as potencialidades nocivas que envolvem o actual instituto da citação.
Conforme se refere no estudo coordenado pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos (acima identificado), num quadro que se manterá actualmente, “a explosão das acções de dívidas (…) traz consigo a acentuação da concentração da procura efectiva da tutela judicial na medida em que os autores das acções e, portanto, os mobilizadores da actividade judicial e seus consumidores, são litigantes frequentes e institucionais, basicamente sociedades comerciais: bancos, companhias de seguro e empresas de crédito ao consumo. (…) Acresce que um grupo restrito de empresas, e quase sempre as mesmas, são responsáveis pela grande maioria das acções. O sistema judicial cível, sobretudo em Lisboa e Porto, está “colonizado” pela cobrança de dívidas e, de facto, ao serviço de apenas algumas empresas, designadamente as grandes empresas do sector financeiro” (ob. cit., pp. 10.4 e 10.5). E, mais à frente, “nas acções de dívidas, dado o modo como está organizada institucionalmente a procura da tutela judicial (os serviços de contencioso, os advogados avençados), a relação custo/benefício no accionamento do tribunal é muito favorável ao mobilizador” (p. 10.9).
Desta feita,
G) Sugiro a Vossa Excelência que o Governo promova a aprovação de uma solução legal que permita a atribuição de uma indemnização pecuniária aos cidadãos que sofram danos resultantes do eventual desconhecimento da propositura, contra si, de uma acção judicial, por facto que lhes não seja imputável.
H) Sugiro igualmente a alteração da lei com vista ao agravamento dos montantes das multas, pelo menos no que toca aos respectivos limites superiores, em sede de condenação por litigância de má fé.
12. Finalmente, e agora em sede de melhoramento dos procedimentos postais – os CTT desenvolvem, na cabal concretização do regime ora em vigor, um papel indiscutivelmente proeminente -, sempre se sugere que seja promovido, pelo Governo, através desse Ministério, um programa que permita a efectiva formação dos funcionários daquela empresa incumbidos de procederem à citação por via postal, com explicitação de procedimentos uniformes a desenvolver no âmbito da matéria aqui em discussão, designadamente de concretização da Portaria n.º 1178-A/2000, de 15 de Dezembro.
Uma questão específica que não posso deixar de assinalar é a que se prende com a verificação de que o sistema de reencaminhamento da correspondência não abrangerá a citação via postal. Assim sendo, deparando-se o distribuidor postal com uma situação de reexpedição de correio requerida e paga pelo respectivo destinatário, na medida em que não lhe será possível colocar a carta no receptáculo correspondente à morada indicada pelo tribunal, devolverá aquele agente a carta ao órgão judicial, com a mencionada indicação.
Tal facto, salvo melhor opinião, parece não fazer sentido. De facto, se o objectivo fundamental é a localização do citando e se tal localização é passível de ser feita através do mecanismo da reexpedição do correio, nenhuma razão parece justificar que a pessoa que a requereu não possa ser citada precisamente no local que indicou como correspondendo à sua morada, expressamente declarando tal pretensão à data de efectivação do pedido de reencaminhamento.
Não parece ser procedente a argumentação de que tal possibilitaria uma eventual postura de má fé por parte daqueles que requerem esse serviço dos CTT, com vista a furtarem-se à citação, na medida em que tais pessoas comprometeriam, daquela forma, a recepção de toda a restante correspondência. Mais a mais, tudo se passaria de acordo com uma manifestação de vontade necessariamente muito próxima no tempo (o prazo máximo admitido pelos CTT é de doze meses) do próprio interessado, que assim veria vedada a hipótese de arguir a alteração de morada.
Assim sendo,
I) Proponho a Vossa Excelência que o Ministério de que é titular promova um programa que permita a efectiva formação dos funcionários dos CTT incumbidos de procederem à citação por via postal, com explicitação de procedimentos uniformes a desenvolver no âmbito da matéria aqui em discussão, designadamente de concretização da Portaria n.º 1178-A/2000, de 15 de Dezembro.
J) Proponho, por último, que seja expressamente admitida a possibilidade de aplicação da citação por via postal ao mecanismo de reexpedição ou reencaminhamento da correspondência, resultante de pedido explícito do destinatário nesse sentido.
Outras soluções
13. As observações atrás formuladas inserem-se, quanto à matéria que aqui nos ocupa, no esquema processual civil gizado pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, e pela Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro, actualmente em vigor, constituindo, dentro do contexto mencionado e na minha perspectiva, um contributo que visa de alguma forma atenuar as dificuldades que se antevê que o sistema, tal como concebido hoje em dia, possa vir concretamente a desencadear. Pressupõem, além do mais, a manutenção do esquema fundamental da solução contida nos referidos diplomas legais, sendo certo que a comunicação social veiculou já a informação da qual parece inferir-se ser intenção do Governo, no que diz respeito à citação por via postal simples em todo o processo civil, recuperar o regime legal anterior ao visado na presente análise.
A este respeito, permito-me ponderar a Vossa Excelência que a constante modificação dos parâmetros legais que enformam o fundo do sistema não se revela favorável à fluidez dos procedimentos dos agentes judiciários. Por outro lado, não se pode também esquecer que a solução em vigor anteriormente à presente normação padecia de efeitos perniciosos que não convém repristinar.
No entanto, se o Executivo enveredar por soluções menos pontuais e de ordem mais estrutural, algumas alternativas poderiam ser ponderadas por Vossa Excelências. É o caso da possibilidade de recurso a entidades não inseridas no aparelho estadual para a satisfação das necessidades geradas à volta do instituto da citação. De resto, tal tipo de solução será a breve prazo concretizada através da criação dos denominados solicitadores de execução, com autorização parlamentar já aprovada através da Lei n.º 23/2002, de 21 de Agosto.
Assim sendo, sempre se sugere a Vossa Excelência que pondere o Governo a hipótese de recorrer a meios privados, à semelhança de sistemas processuais civis tais como o francês, que possam assegurar integralmente a realização das citações em processo declarativo, mediante a cobrança de um valor fixo por cada acto, a ser pago inicialmente pelo autor da acção, mas constituindo encargo final da parte que decaísse na acção, na proporção desse decaimento.
Tal intervenção, no âmbito de uma profissão liberal mas controlada por associação pública, poderia constituir uma poderosa poupança de recursos, humanos e materiais, para o Estado, podendo-os aplicar naquela fracção irrenunciável da actividade dos Tribunais, que envolve, aí sim, um verdadeiro jus imperii e a parte mais nobre da função de julgar.
O estabelecimento de regras quanto ao custo de tais modos de citação, um correcto esquema fixado na Lei para o modo de desempenho dessa missão, não bastando a mera declaração da impossibilidade de citação mas discriminando as actividades desenvolvidas para tal, bem como garantias em sede disciplinar e de incompatibilidades de quem optasse pela prestação de tais serviços, permitiria, possivelmente, um mecanismo de citação bastante mais seguro, rápido e económico, em suma, mais eficiente, que os até agora experimentados no nosso ordenamento jurídico.
Deste modo, permito-me ainda
L) Sugerir a Vossa Excelência que o Governo estude a possibilidade de viabilização de uma solução legal que permita que o acto da citação em processo declarativo civil possa ser integralmente assegurado por entidades privadas vocacionadas para o efeito, as quais cobrariam um valor fixo para a efectivação de cada tipo de citação, a ser pago inicialmente pelo autor da acção, que por sua iniciativa e para o fim descrito recorreria obrigatoriamente a essas entidades, e a final pela parte que decaísse na acção, na medida desse decaimento.
14. Face a tudo o que acima fica dito, na expectativa de que o teor do presente ofício mereça de Vossa Excelência a melhor das atenções, e aguardando igualmente a comunicação sobre a posição que o Governo assumirá perante o mesmo, apresento a Vossa Excelência os meus melhores cumprimentos,
H. Nascimento Rodrigues