INFORMAÇÃO 


Sanções contra a UNITA
[Processo R – 3327/00 (A6); Processo apenso R – 3476/00 (A6)]


I. A queixa


1. A Companhia de Seguros Império, integrada no Grupo BCP, exigiu à cidadã angolana XXXX a assinatura de uma declaração, nos termos da qual atestava não ser membro da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), como requisito necessário para o pagamento de cerca de 11 mil escudos, a título de quantia indemnizatória que lhe era devida no âmbito de um contrato de seguro. A propósito de tal conduta foi solicitada, quer pela Rede Anti Racista (R – 3327/00 (A6)), quer pela Comissão de Justiça, Paz e Reconciliação em Angola (R – 3476/00 (A6)), a intervenção do Provedor de Justiça, tendo os reclamantes alegado que se estaria perante um desrespeito pelos princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP), muito em particular pela proibição de discriminações.


 


II. A posição da entidade visada


2. A seguradora visada justificou a bondade do procedimento objecto de queixa na circunstância de o mesmo ter sido estabelecido em cumprimento do disposto na Resolução n.º 1173 (1998), de 12 de Junho de 1998, do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), e no Regulamento (CE) n.º 1705/98 do Conselho, de 28 de Julho de 1998, salientando a respectiva aplicabilidade directa na ordem jurídica interna.


 


III. A Resolução n.º 1173 (1998) e o Regulamento (CE) n.º 1705/98


3. Com efeito, através da Resolução n.º 1173 (1998), relativa à situação em Angola e adoptada por unanimidade, o Conselho de Segurança, no exercício das suas competências em sede de manutenção da paz e da segurança internacionais, determinou a imposição de sanções contra a UNITA, face o não cumprimento por este movimento das suas obrigações decorrentes dos Acordos de Paz (1991), do Protocolo de Lusaka (1994) e das resoluções pertinentes do Conselho de Segurança. Mediante o Aviso n.º 161/98 (1), foi tornado público, no quadro do ordenamento jurídico português, ter o Conselho de Segurança adoptado essa resolução.


Para o que releva nos presentes autos, o órgão onusino com a principal responsabilidade em matéria de paz e segurança internacionais, agindo ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas (CNU), impôs à UNITA as restrições financeiras constantes do 11.º parágrafo operativo da resolução, nos termos do qual decidiu «que todos os Estados, à excepção de Angola, nos quais existam fundos e recursos financeiros, incluindo quaisquer fundos provenientes ou gerados por bens pertencentes à UNITA, enquanto organização, ou a dirigentes superiores da UNITA ou membros adultos das suas famílias mais próximas, designados no parágrafo 11 da Resolução n.º 1127 (1997), deverão exigir que todas as pessoas e entidades que, nos seus próprios territórios, detenham tais fundos e reservas financeiras os congelem e garantam que não serão disponibilizados, directa ou indirectamente, à UNITA, enquanto organização, ou em seu benefício ou a dirigentes superiores da UNITA ou membros adultos das suas famílias mais próximas, designados no parágrafo 11 da Resolução n.º 1127 (1997)».


De referir que, através da Circular n.º 12, de 22 de Julho de 1998, do Conselho Directivo do Instituto de Seguros de Portugal (ISP), a entidade pública com poderes de supervisão da actividade seguradora informou, para os devidos efeitos, que tinham entrado em vigor em 1 de Julho de 1998 as medidas previstas no citado parágrafo da resolução onusina, transcrevendo-o na parte relevante.


 


4. Por outro lado, em virtude da dimensão económico-financeira inerente às sanções impostas contra a UNITA e, por conseguinte, da sua pertinência com as políticas definidas no Tratado que institui a Comunidade Europeia (Tratado CE), afigurou-se necessária uma acção da Comunidade Europeia, concretizada na adopção de legislação comunitária para aplicar as medidas restritivas, decididas pelo Conselho de Segurança, no território dos Estados membros da Comunidade. Nestes termos, foi adoptado o supracitado Regulamento (CE) n.º 1705/98, relativo à interrupção de certas relações económicas com Angola para induzir a UNITA a cumprir as suas obrigações no processo de paz (2).


Em conformidade com o disposto no art.º 2.º, n.º 1, deste regulamento comunitário, determina-se que sejam «congelados todos os fundos e recursos financeiros detidos fora do território de Angola pela União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), por quadros superiores dessa organização ou pelos seus familiares adultos directos enumerados no anexo VII»; nos termos, ainda, do n.º 2 do mesmo art.º, «não podem ser disponibilizados, directa ou indirectamente, quaisquer fundos ou recursos financeiros em benefício da UNITA, dos quadros superiores dessa organização ou dos seus familiares adultos directos».


Acresce que, para efeitos do presente regulamento e de acordo com o preceituado no seu art.º 2.º, n.º 3, al. a), entende-se por fundos e recursos financeiros «os activos e recursos financeiros de qualquer tipo, incluindo numerário, activos líquidos, juros, dividendos, ou outros rendimentos de acções, obrigações, outros títulos de dívida ou quaisquer outros valores mobiliários, assim como outras receitas resultantes de quaisquer desses activos ou fundos geradas por juros relativos a bens pertencentes à UNITA, aos quadros superiores dessa organização ou a qualquer dos seus familiares adultos directos enumerados no anexo VII», entendendo-se, ainda, para os mesmos efeitos, por congelamento de fundos e recursos financeiros «a acção destinada a impedir uma alteração do volume, do montante, da localização, da propriedade, da posse, da natureza, do destino ou de qualquer outra característica desses fundos ou recursos, bem como a impedir qualquer outra alteração que possa permitir a sua utilização» (al. b), do art.º 2.º, n.º 3).


 


IV. Questão da conformidade jurídico-constitucional do procedimento contestado, bem como questão da admissibilidade do mesmo à luz dos preceitos internacionais que impuseram as sanções financeiras contra a UNITA


5. O comportamento da Império, resultante de uma definição autónoma de mecanismos de natureza procedimental destinados a dar cumprimento às sanções financeiras internacionais e que se traduziram na determinação de que a realização de pagamentos a favor de cidadãos angolanos dependia da assinatura de declaração de não pertença à UNITA, levanta, em abstracto, questões quanto à sua conformidade jurídico-constitucional, a saber:


– Em face do universo de pessoas a que se destina, viola ou não a exigência da assinatura dessa declaração o princípio da igualdade, na sua dimensão de proibição de discriminações? 


– Atendendo ao respectivo conteúdo, interfere ou não tal declaração com dimensões dos direitos fundamentais tuteladas jurídico-constitucionalmente, como sejam, a liberdade de opinião e pensamento, a liberdade de opção e de convicções? 


 


 


 


6. Sublinhe-se que a apreciação do comportamento da Império a este nível jurídico-constitucional, e muito especificamente no plano dos direitos fundamentais, é tanto mais relevante, quanto é certo não vincularem os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias apenas as entidades públicas, mas também as entidades privadas (art.º 18.º, n.º 1, da CRP).


 


7. Por outro lado, numa apreciação, em concreto, do comportamento da Império, comportamento esse reportado a meados do ano 2000, levantam-se dúvidas relacionadas com a sua admissibilidade à luz dos próprios preceitos internacionais que impuseram as sanções financeiras contra a UNITA, se atendermos ao âmbito subjectivo e objectivo de incidência destas últimas.


É que, com o devido respeito, a perspectiva adoptada no quadro da instrução do presente processo centrou-se fundamentalmente na apreciação da conformidade constitucional do procedimento seguido pela seguradora visada no que toca ao universo subjectivo sobre o qual incidiu, bem como do conteúdo da declaração exigida. No nosso entendimento, porém, e salvo melhor opinião, a resolução do caso em apreço, e no que especificamente toca à exigência feita a Maria Pedro, no interesse de quem foi solicitada a intervenção do Provedor de Justiça, passa, antes de mais, por questionar a própria admissibilidade da exigência que lhe foi feita à luz do disposto na Resolução n.º 1173 (1998) do Conselho de Segurança e no Regulamento (CE) n.º 1705/98 do Conselho.


De acordo com esta perspectiva, e na medida em estamos perante actos que relevam da ordem jurídico-internacional, importa proceder, em primeiro lugar, ao seu enquadramento em termos jus-internacionalistas e, em segundo lugar, determinar a recepção dos mesmos na ordem jurídica interna com referência às normas constitucionais pertinentes. Uma vez delineado o enquadramento jurídico-internacional e jurídico-constitucional daquela resolução e regulamento, analisaremos, então, a questão da legitimidade da exigência que foi feita a XXXX em face de tal dispositivo, bem como, num segundo plano de apreciação, a sua conformidade jurídico-constitucional, em abstracto, na perspectiva do respeito dos direitos fundamentais.


 


V. Enquadramento jurídico-internacional da resolução onusina e regulamento comunitário e relevância dos mesmos na ordem jurídica portuguesa


8. Nos termos do disposto no art.º 24.º, n.º 1, da CNU, os membros das Nações Unidas atribuem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais, regulando o Capítulo VII da mesma Carta a “acção em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e acto de agressão” (art.ºs 39.º a 51.º da CNU).


Em conformidade com as normas desse Capítulo VII, uma vez determinada pelo Conselho de Segurança a existência de situação de ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão, fica o mesmo autorizado, inter alia, a adoptar, de acordo com o disposto nos art.os 41.º e 42.º da CNU, medidas coercitivas com vista à manutenção ou restabelecimento da paz e da segurança internacionais. A adopção dessas medidas coercitivas inclui-se no poder de sanção, de carácter militar ou não, daquele órgão onusino.


De sublinhar que se o recurso ao Capítulo VII da CNU – e, mais especificamente, às medidas que o Conselho de Segurança está, nesse quadro, habilitado a adoptar – se encontra devidamente balizado em termos normativos, esse órgão das Nações Unidas dispõe, todavia, do poder de decidir como manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. No exercício deste poder, o Conselho de Segurança goza, por conseguinte, de margem de discricionaridade, tanto relativamente à decisão de qualificar determinada situação como uma ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão, como no que respeita à escolha do tipo de acção autorizada pelo Capítulo VII.


Não significa isto, note-se, que os poderes do Conselho de Segurança em matéria de manutenção da paz e da segurança internacionais sejam ilimitados. Impõe-se-lhe o respeito do ius cogens (i.e., do direito internacional geral imperativo) e a própria CNU, no seu art.º 24.º, n.º 2, dispõe que a actuação do Conselho de Segurança tem de estar em conformidade com os objectivos e os princípios das Nações Unidas. O direito da Carta constitui, portanto, um limite à actuação do Conselho de Segurança. Já assim é, aliás, na medida em que, sendo a CNU um tratado constitutivo de uma organização internacional, a mesma impõe, enquanto tal, limites à competência da própria ONU e de cada um dos seus órgãos.


Em síntese, não é possível aceitar que o Conselho de Segurança esteja acima do direito, qual princeps legibus solutus, pelo que, mesmo no exercício de poderes amplamente discricionários, impõem-se-lhe limites jurídicos à respectiva actuação, não só limites de competência e procedimento, mas também de conformidade material com o direito da Carta, no sentido de que respeita o que é o húmus das Nações Unidas e de uma verdadeira Comunidade Internacional de Direito.


Neste contexto e no que especificamente concerne à respectiva “legalidade”, a Resolução n.º 1173 (1998) não estará em desconformidade com a CNU, na medida em que cedo determinou o Conselho de Segurança constituir a situação em Angola uma ameaça à paz e à segurança internacionais (3), devendo a base jurídica da imposição de sanções de cariz financeiro, como as que estão em debate, procurar-se no art.º 41.º da CNU, sanções essas admissíveis à luz da natureza exemplificativa da enumeração que nessa disposição é feita de possíveis medidas coercitivas que não envolvam o emprego de forças armadas e que o Conselho de Segurança está habilitado a adoptar.


Deve ainda salientar-se que as sanções impostas contra a UNITA não são absolutas, porquanto o Conselho de Segurança não deixou de franquear, no 13.º parágrafo operativo da resolução em apreço, isenções para fins comprovadamente médicos e humanitários, a autorizar pelo Comité do Conselho de Segurança criado nos termos da Resolução n.º 864 (1993), de 15 de Setembro de 1993 [de agora em diante, Comité de Sanções].


Perante o exposto, não procede, pois, a alegação genérica, avançada pela Comissão de Justiça, Paz e Reconciliação em Angola (no processo apenso R 3476/00 (A6)), de que as sanções contra a UNITA impostas pelo Conselho de Segurança são “ilegais”.


Por fim, importa destacar que, nos termos do art.º 25.º da CNU, as decisões do Conselho de Segurança são obrigatórias para os Estados membros e daí a obrigação destes últimos, no que para o presente caso interessa, de cumprirem integralmente as medidas impostas contra a UNITA, constituindo o incumprimento de tais medidas uma violação da Carta. No nosso entendimento, porém, é relevante frisar que a implementação dessas medidas por cada um dos Estados não poderá deixar de ser sempre feita com observância dos respectivos ordenamentos jurídico-constitucionais.


 


9. Delineado, nas linhas precedentes, o regime, no plano jurídico-internacional, das resoluções do Conselho de Segurança, na sua aplicação concreta à decisão de impor medidas restritivas relativas a fundos e recursos financeiros da UNITA, impõe-se um segundo nível de análise centrado, agora, na dimensão jurídico-constitucional do problema da respectiva incorporação na ordem jurídica portuguesa.


É certo que a questão da incorporação do direito derivado da ONU não tem despertado grande atenção por parte da doutrina portuguesa (entre as excepções, v. CASTRO, Paulo Jorge Canelas de, «Portugal’s World Outlook in the Constitution of 1976», Boletim da Faculdade de Direito, Vol. 71 (1995), p. 469, 535-538), a qual, em termos de direito derivado das organizações internacionais, aparenta reduzir o seu interesse ao direito comunitário derivado ou secundário. Não obstante, esta é uma questão prévia fundamental no caso submetido à apreciação do Provedor de Justiça.


Assim sendo, e devendo a solução do problema apoiar-se na interpretação da CRP, o art.º 8.º, n.º 3, desta última consagra o sistema da incorporação automática das normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal é membro, afirmando a aplicabilidade directa dessas normas na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.


Quando à verificação desta última condição – i.e., a previsão do regime de aplicabilidade directa das normas em questão no próprio tratado que cria a organização internacional em causa – relativamente às resoluções do Conselho de Segurança, pelo menos no que toca aos actos unilaterais emanados deste órgão que constituam verdadeiras decisões (ou seja, actos unilaterais que impõem um determinado comportamento aos seus destinatários, sendo, por conseguinte, juridicamente obrigatórios ou vinculativos), se o disposto no já citado art.º 25.º da CNU, segundo o qual os Estados membros vincularam-se a “aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança” pode ser interpretado como não prescrevendo a aplicabilidade directa desses actos, sendo igualmente compaginável com a consagração da técnica da transformação, sempre esta última solução, não estando expressamente prevista na CRP, chocaria com a abertura constitucional para com o direito internacional, manifestada, desde logo, na consagração da recepção automática de outras normas de direito internacional (nesse sentido, CANELAS DE CASTRO, op. cit., p. 536).


Seja como for, a prática governamental relativamente a determinadas resoluções do Conselho de Segurança – prática essa que se tem consubstanciado na publicação no jornal oficial de avisos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) como único acto interno (não normativo, note-se) que acompanha a publicitação, entre nós, das resoluções pertinentes do Conselho de Segurança – evidencia, de facto, a opção pela incorporação automática ou, pelo menos, a pressuposição da aplicabilidade directa de algumas resoluções onusinas (assim, CANELAS DE CASTRO, op. cit., p. 536).


Com efeito, tal prática revela que o órgão responsável pela condução da política externa portuguesa actua na suposição de que Portugal tem a obrigação de incorporar as resoluções do Conselho de Segurança, pelo menos algumas dessas resoluções, na ordem jurídica interna. Esta obrigação é tanto mais relevante, quanto é certo que a imposição de sanções de índole económico-financeira, conforme ocorreu relativamente à UNITA, contende com a actividade de entidades privadas, como o objecto da presente queixa bem patenteia.


Nesta perspectiva, torna-se indubitável que, uma vez tornada pública entre nós a adopção das resoluções pertinentes do Conselho de Segurança, as mesmas passam a vigorar na ordem jurídica interna vinculando os sujeitos de direito. Em relação à Resolução n.º 1173 (1998) (cuja adopção, como referido supra, foi tornada pública entre nós pelo Aviso n.º 161/98), pode, por conseguinte, afirmar-se ser o regime jurídico nela contido directamente aplicável, inter alia, às entidades financeiras, entre as quais as seguradoras.


 


10. Conclusão similar procede no que tange ao modo como a questão das sanções contra a UNITA foi tratada no quadro da União Europeia.


O Conselho começou por definir, no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), uma Posição Comum relativa a medidas restritivas contra a UNITA (Posição Comum 98/425/PESC, de 3 de Julho de 1998) (4), a qual, tendo em linha de conta as Resoluções n.os 1173 (1998) e 1176 (1998) do Conselho de Segurança (5), determinou, no seu art.º 1.º, que as relações económicas e financeiras com Angola seriam reduzidas nos termos daquela primeira resolução. Note-se que, de acordo com o art.º 15.º (cf. ex-art.º J.2, n.º 2) do Tratado da União Europeia, uma posição comum define a abordagem global de uma questão específica de natureza geográfica ou temática pela União Europeia, devendo os Estados membros zelar pela coerência correspectiva das suas políticas nacionais.


Como já referido, atendendo ao cariz económico-financeiro de algumas daquelas medidas restritivas decididas pelo Conselho de Segurança, foi depois adoptado, ao abrigo do Tratado CE, o Regulamento (CE) n.º 1705/98 para as aplicar no território dos Estados membros da Comunidade Europeia.


Dispõe o art.º 249.º do Tratado CE que o regulamento tem carácter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados membros. No que toca à sua recepção na ordem nacional, retira-se do art.º 8.º, n.º 3, da CRP a opção pelo sistema da sua incorporação automática na ordem jurídica portuguesa, não sendo, por conseguinte, exigida qualquer formalidade interna para que possa adquirir relevância no nosso ordenamento.


Significa isto que uma vez publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias e entrado em vigor o Regulamento (CE) n.º 1705/98, o respectivo regime jurídico passou a constituir uma componente da ordem jurídica interna, vinculando imediatamente o Estados, os seus cidadãos e demais entidades.


 


VI. Admissibilidade do procedimento contestado à luz do âmbito subjectivo e objectivo das sanções financeiras contra a UNITA


11. De tudo quanto precede resulta que a Império está obrigada a respeitar as sanções financeiras internacionalmente impostas contra a UNITA. Todavia, e como previamente avançado, a questão que se coloca é a de saber se o comportamento adoptado vis-à-vis a interessada no presente processo encontra fundamento bastante nos preceitos que determinaram aquelas medidas restritivas, por forma a poder considerar-se legítimo.


Neste contexto, cabe, pois, colocar as seguintes interrogações:


– Que entidade ou pessoas foram visadas pelas sanções? XXXX é uma dessas pessoas?
– Que proibições decorrem das medidas restritivas impostas? O pagamento de determinada quantia a título de regularização de sinistro releva para efeito de tais proibições?


 


 


A resposta a estas interrogações implicam delimitar o âmbito subjectivo e objectivo das sanções financeiras em questão.


 


12. Assim, e no que respeita ao respectivo âmbito subjectivo, as presentes sanções constituem um exemplo paradigmático das chamadas “sanções-alvo” ou “sanções inteligentes” (“targeted sanctions” ou “smart sanctions”), isto é, de sanções dirigidas, como o próprio nome indica, a um grupo bem identificado de sujeitos. Como sanções-alvo que são, têm um destinatário bem identificado, no caso: a UNITA, enquanto organização, os seus dirigentes superiores e membros adultos da sua família mais próxima.


A delimitação, nestes termos, do âmbito subjectivo de incidência das sanções financeiras não suscita quaisquer dúvidas face o preceituado quer no 11.º parágrafo operativo da Resolução n.º 1173 (1998), quer no art.º 2.º do Regulamento (CE) n.º 1705/98, este último, como vimos, adoptado para aplicar no território da Comunidade Europeia as decisões de cariz económico-financeiro do Conselho de Segurança vertidas naquela resolução.


Tal delimitação é ainda corroborada por uma leitura sistemática dos documentos elaborados em correlação com a Resolução n.º 1173 (1998), muito especialmente dos sucessivos relatórios elaborados pelo Comité de Sanções (6), bem como pelo Órgão de Observação das Sanções contra a UNITA (7), este último criado nos termos da Resolução n.º 1295 (2000) do Conselho de Segurança, de 18 de Abril de 2000 (8).


Com efeito, à luz desses relatórios, as obrigações que perpassam as sanções financeiras impostas pelo Conselho de Segurança traduzem-se no dever de congelar os fundos e recursos financeiros da UNITA existentes fora do território de Angola e de assegurar que tais fundos e recursos não serão colocados à disposição da UNITA, enquanto organização, ou dos seus altos dirigentes ou dos membros adultos das suas famílias mais próximas, com o objectivo último de evitar a movimentação desses fundos e, por essa via, atalhar à capacidade operacional da UNITA, porquanto, como nesses mesmos relatórios se reconhece, são essas pessoas os elementos essenciais para a efectivação das transacções financeiras que as resoluções do Conselho de Segurança visam justamente impedir.


A intenção do Conselho de Segurança, ao impor as sanções em causa, de delimitar, com precisão, os destinatários das mesmas é tanto mais clara, quanto é certo que não basta ser um alto quadro da UNITA ou um membro adulto da sua família mais próxima. É necessário, ainda, que a pessoa, à partida elegível para ser visada pelas sanções financeiras impostas internacionalmente, veja o seu nome elencado na Lista dos dirigentes da UNITA e dos membros adultos das suas famílias,elaborada pelo Comité de Sanções, ao abrigo do disposto no 11.º parágrafo operativo da Resolução n.º 1127 (1997) do Conselho de Segurança, de 28 de Agosto de 1997 (9).


No que à Resolução n.º 1173 (1998) respeita, é o próprio 11.º parágrafo operativo que se refere a «dirigentes superiores da UNITA ou membros adultos das suas famílias mais próximas, designados no parágrafo 11 da Resolução n.º 1127 (1997)», fazendo, por conseguinte, uma remissão expressa para a lista elaborada pelo Comité de Sanções. De igual modo, em relação ao Regulamento (CE) n.º 1705/98, é feita, no seu art.º 2.º, remissão para o Anexo VII do mesmo regulamento, relativo à Lista dos membros da UNITA, estabelecida nos termos do n.º 11 da Resolução n.º 1127 (1997) do Conselho de Segurança das Nações Unidas.


Nestes termos, entre a possibilidade de listas abertas, i.e., listas relativamente às quais os Estados poderiam acrescentar nomes de pessoas visadas pelas sanções, e listas fechadas, ou seja, listas cuja alteração é da única e exclusiva competência do comité de sanções pertinente do Conselho de Segurança, a opção foi feita por estas últimas no tocante às sanções contra a UNITA. Neste caso, é, por conseguinte, apenas ao Comité de Sanções que compete elaborar e actualizar a lista em questão. Mesmo em relação ao Regulamento (CE) n.º 1705/98, cujo já referido Anexo VII pode ser complementado e/ou alterado pela Comissão, refira-se que esta instituição comunitária apenas ficou habilitada a fazê-lo com base nas notificações pertinentes do Comité de Sanções onusino (cf. 11.º parágrafo preambular e art.º 9.º daquele regulamento) (10).


Em suma, resulta do exposto uma manifesta intenção de limitar o âmbito subjectivo das sanções em causa, resultado este alcançado por via não só da indicação expressa da entidade e das pessoas visadas, mas também, quanto a estas últimas, da sua identificação individualizada exaustiva em lista a cargo do referido Comité de Sanções.


Assim sendo, apenas as pessoas elencadas na lista do Comité de Sanções podem ser visadas pelas medidas restritas de índole financeira impostas. Ora, o nome da cidadã XXXX não constava, nem consta dessa lista.


 


13. Quanto à delimitação do âmbito objectivo das sanções financeiras contra a UNITA, a Resolução n.º 1173 (1998) do Conselho de Segurança – e, na sua senda, o Regulamento (CE) n.º 1705/98 – consagrou, por um lado, o dever de congelamento de fundos e recursos financeiros e, por outro, o dever de não os disponibilizar, directa ou indirectamente, à UNITA ou às pessoas que constem da lista do Comité de Sanções.


A interrogação que, nesta sede, se coloca é, naturalmente, saber que fundos e recursos financeiros são objecto dos referidos deveres de congelamento e de não disponibilização, por forma a saber se, mesmo não constando o seu nome da lista do Comité de Sanções, a regularização de sinistro em benefício da cidadã XXXX relevava para efeito das proibições determinadas no quadro das sanções impostas contra a UNITA.


Neste quadro, importa indagar se está em causa o congelamento e/ou a não disponibilização de todos e quaisquer fundos ou recursos financeiros, ou apenas dos fundos e recursos financeiros da UNITA, dos seus altos dirigentes e membros adultos das suas famílias próximas.


A interpretação da resolução onusina conduz-nos a concluir pela segunda solução. Com efeito, o 11.º parágrafo operativo da Resolução n.º 1173 (1998) alude a “fundos e recursos financeiros, incluindo quaisquer fundos provenientes ou gerados por bens pertencentes à UNITA, enquanto organização, ou a dirigentes superiores da UNITA ou membros adultos das suas famílias mais próximas, designados no parágrafo 11 da Resolução n.º 1127 (1997)”, sendo certo que é relativamente aos fundos e recursos financeiros referidos nos termos acabados de citar que incide quer o dever de congelamento, quer o dever de não disponibilização.


A menos que todo e qualquer fundo e recurso financeiro existente nos Estados ficasse desde logo sujeito a medida de congelamento – o que seria manifestamente um resultado não razoável e atentatório dos direitos dos cidadãos -, uma interpretação que procure reconstituir a intenção do Conselho de Segurança ao impor sanções contra a UNITA, que atenda às circunstâncias que estiveram na sua base e que assegure o efeito útil do preceito em questão conduz à asserção de que os fundos e recursos financeiros em causa são apenas os fundos e recursos da UNITA, no sentido de abranger fundos e recursos financeirosnão apenas da própria UNITA enquanto organização, dos seus altos dirigentes e dos membros da sua família próxima, mas também provenientes ou gerados por bens pertencentes a este movimento e a estas pessoas, ou, ainda, os existentes em benefício ou no interesse dos mesmos, na condição, no que toca aos altos dirigentes e membros adultos da sua família próxima, de que os respectivos nomes constem da lista do Comité de Sanções.


Já o Regulamento (CE) n.º 1705/98, diferentemente da resolução onusina, definiu o que são “fundos e recursos financeiros”. No nossa opinião, contudo, o âmbito objectivo do art.º 2.º desse regulamento não difere daquele que resulta da interpretação do 11.º parágrafo operativo da Resolução n.º 1173 (1998), o que bem se compreende dado o primeiro ter sido adoptado, como decorre expressamente do respectivo preâmbulo, para aplicar em relação ao território da Comunidade Europeia as decisões do Conselho de Segurança constantes nas Resoluções n.os 864 (1993), 1127 (1997) e 1173 (1998).


Com efeito, entende-se, para efeitos do Regulamento (CE) n.º 1705/98, por “fundos e recursos financeiro”’, nos termos do seu art.º 2.º, n.º 3, al. a), «os activos e recursos financeiros de qualquer tipo, incluindo numerário, activos líquidos, juros, dividendos, ou outros rendimentos de acções, obrigações, outros títulos de dívida ou quaisquer outros valores mobiliários, assim como outras receitas resultantes de quaisquer desses activos ou fundos geradas por juros relativos a bens pertencentes à UNITA, aos quadros superiores dessa organização ou a qualquer dos seus familiares adultos directos enumerados no anexo VII [i.e., na “Lista dos membros da UNITA, estabelecida nos termos do n.º 11 da Resolução n.º 1127 (1997) do Conselho de Segurança das Nações Unidas”]».


Não sendo a versão portuguesa da norma em questão particularmente feliz, quando comparada com versões noutras línguas dos Estados-membros da União Europeia (11), uma sua interpretação contextualizada no conjunto das normas em questão e que não perca de vista o fim das mesmas leva-nos a concluir que o que já ficou expresso em relação à delimitação do âmbito objectivo de incidência das sanções financeiras impostas pela resolução do Conselho de Segurança valerá igualmente em sede de regulamento comunitário.


Nesta perspectiva, na medida em que na situação concreta que esteve na base dos presentes autos não estava em causa um fundo ou recurso financeiro de pessoa listada, proveniente ou gerado por bem de pessoa listada, ou, ainda, existente em benefício ou no interesse de pessoa listada, o comportamento da Império em relação à interessada nos presentes autos não se afigura de todo legítimo à luz dos preceitos internacionais que determinaram a imposição de sanções contra a UNITA. E não se afigura legítimo para efeitos do cumprimento seja do dever de congelamento, seja da garantia de não disponibilização, porquanto mesmo a noção de fundos e recursos financeiros avançada no regulamento comunitário releva, manifestamente, para ambas as proibições.


No limite, a exemplo do procedimento adoptado pela Império em relação à cidadã Maria Pedro, uma interpretação tão lata dos preceitos que determinaram a imposição de sanções financeiras contra a UNITA autorizaria que, por hipótese, uma instituição bancária congelasse, sem mais, o vencimento nela depositado a favor de cidadão angolano ou só autorizasse o seu levantamento, por débito, mediante a assinatura de declaração de não pertença à UNITA. Não é este seguramente o resultado visado pela letra e espírito da resolução onusina e do regulamento comunitário adoptado para a fazer aplicar no território dos Estados membros da Comunidade Europeia, nem o mesmo seria aceitável à luz dos princípios e regras constitucionais e da obrigação de conformidade constitucional de que não estão isentos inclusive os actos normativos de organização internacional que Portugal integre.


 


14. Não obstante, no que especificamente respeita ao regulamento comunitário, sem condescender na interpretação acabada de perfilhar, mas sempre numa tentativa de esgotamento de vias argumentativas possíveis, por mais lato que fosse o conceito de fundos e recursos financeiros ao abrigo do mesmo regulamento e atendendo à separação mais categórica nele feita entre dever de congelamento – que respeita a «todos os fundos e recursos financeiros detidos fora do território de Angola pela União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), por quadros superiores dessa organização ou pelos seus familiares adultos directos enumerados no anexo VII» (art.º 2.º, n.º 1) – e o dever de não disponibilização – já que, nos termos do art.º 2.º, n.º 2, «não podem ser disponibilizados, directa ou indirectamente, quaisquer fundos ou recursos financeiros em benefício da UNITA, dos quadros superiores dessa organização ou dos seus familiares adultos directos» – não colhe arrimo neste regulamento a admissibilidade da assinatura de uma declaração de não pertença à UNITA para efeitos de regularização de um sinistro, como ocorreu relativamente a Maria Pedro, como procedimento destinado a dar cumprimento à garantia de não disponibilizar indirectamente (indirectamente, porquanto, como vimos já, nada relaciona XXXX com a UNITA para efeitos de aplicação das sanções, na medida em que nunca o seu nome constou da lista do Comité de Sanções) quaisquer fundos ou recursos financeiros em benefício UNITA, dos seus altos dirigentes ou dos familiares adultos directos destes.


E não procede tal raciocínio, pelas razões que passamos a expor.


 


15. Com efeito, por muito amplo que o conceito de fundos ou recursos financeiros possa ser, a regularização de sinistros, a nosso ver e salvo melhor opinião, não cabe sequer nesse conceito.


A este propósito sublinhe-se, antes de mais, que o princípio da indemnização pelos actos lesivos de direitos e pelos danos causados a outrem é um princípio geral que informa o nosso sistema jurídico. No caso em apreço, a cidadã XXXX limitou-se a exercer o seu direito de ser ressarcida na sequência de danos sofridos (que implicaram cuidados médicos) num acidente de viação em transporte colectivo rodoviário de passageiros, direito esse a ser efectivado através de regularização de sinistro no quadro do pertinente contrato de seguro, de cuja apólice era titular o operador do transporte. Da parte da seguradora, impunha-se cumprir as obrigações assumidas no âmbito desse contrato e liquidar a quantia indemnizatória, com referência ao risco por ele coberto. Neste contexto, não se vê, com efeito, que no caso de XXXX possa ser considerado como um fundo ou recurso financeiro algo que em si corresponde a um ressarcimento, a uma reposição do status quo ante, que não é possível em espécie. De acordo com esta perspectiva, não estava, pois, em causa um fundo ou recurso financeiro a cuja não disponibilização a seguradora Império estivesse obrigada.


Aliás, a favor do entendimento segundo o qual a regularização de sinistros não cabe na noção de fundos e recursos financeiros, no quadro das sanções financeiras contra a UNITA, podem ser chamados à colação os preceitos internacionais que, na sequência do 11 de Setembro, impuseram medidas restritivas de combate ao terrorismo, a saber, a Resolução n.º 1373 (2001), de 28 de Setembro de 2001, do Conselho de Segurança, relativa à ameaça à paz e à segurança internacionais decorrente de actos terroristas, e, muito especialmente, o Regulamento (CE) n.º 2580/2001 do Conselho, de 27 de Dezembro de 2001, sobre medidas restritivas específicas de combate ao terrorismo dirigidas contra determinadas pessoas e entidades (12).


Na verdade, e com referência ao regulamento comunitário acabado de citar, a par do congelamento e não disponibilização, directa ou indirectamente, de “fundos”, “outros activos financeiros” e “recursos económicos”, foi especificada a proibição de prestação de “serviços financeiros” e de “outros serviços conexos” às pessoas e entidades visadas pelas medidas restritivas ou em seu benefício (13). Ora, quanto a esta última proibição, especifica o Regulamento (CE) n.º 2580/2001 que a noção de “serviços financeiros” abrange, inter alia e para o que agora releva, todos os serviços de seguros, incluindo regularização de sinistros. Assim sendo, a menção expressa, em sede de combate ao terrorismo, da proibição de prestação de serviços financeiros às pessoas que pratiquem ou tentem praticar actos terroristas, neles participem ou facilitem a sua prática, não pode deixar de ser interpretada como correspondendo a uma necessidade de especificar situações abrangidas pelas medidas restritivas em causa, que de outra forma não estariam abrangidas no âmbito objectivo da norma. Nesta perspectiva, o silêncio, em sede do regime jurídico que enquadra às sanções financeiras contra a UNITA quanto à prestação de serviços financeiros que inclua a regularização de sinistros, não pode deixar de ser interpretado, num argumento a contrario, como significando a sua exclusão do respectivo âmbito objectivo de incidência.


Acresce que, se dúvidas ainda houvesse quanto à inclusão ou não da regularização de sinistros na noção de fundos e recursos financeiros, para efeitos de observância das sanções financeiras impostas contra a UNITA, sempre cumpre sublinhar que a proibição de prestação de serviços financeiros estabelecida no regulamento da União Europeia relativo às medidas de combate ao terrorismo compreende apenas os serviços a serem prestados às, ou em benefício das, entidades ou indivíduos expressamente identificados naquele regulamento e nunca serviços a serem prestados a pessoas que são terceiros em relação aos destinatários das sanções, na medida em que o seu nome não consta da lista pertinente.


Transpondo este raciocínio para o caso concreto de Maria Pedro, ainda que a regularização de sinistros pudesse incluir-se na noção de fundos ou recursos financeiros, nunca estaria aí abrangida a situação de uma regularização de sinistro a favor de pessoa não listada pelo Comité de Sanções.


16. Por fim, como última via argumentativa a esgotar, no pressuposto de que a regularização de sinistros pudesse estar abrangida na noção de fundos ou recursos financeiros, importa aferir se o comportamento da Império poder-se-ia considerar justificado como forma de atalhar à disponibilização de quaisquer fundos ou recursos financeiros à UNITA, por via indirecta, i.e., através de intermediário que, no caso, seria alegadamente Maria Pedro.


A nosso ver, não procede igualmente semelhante argumentação. Com efeito, a proibição de disponibilização, indirectamente, de fundos e recursos financeiros em benefício da UNITA, enquanto organização, dos seus dirigentes superiores ou membros adultos da respectiva família mais próxima, tal como identificados na lista pertinente, visará interditar comportamentos – desde logo por parte das entidades financeiras detentoras dos fundos ou recursos financeiros visados – cujo resultado seja ficarem estes fundos e recursos financeiros à disposição da UNITA, quer, nomeadamente, através da permissão da sua retirada do âmbito da jurisdição nacional (ou seja, da movimentação dos fundos e recursos financeiros para fora do país), quer por via da sua transferência para pessoa que se sabe ou fundadamente se suspeita ser mero intermediário de determinada operação financeira em benefício da UNITA.


Nesta perspectiva, ou existe conduta dolosa por parte da instituição financeira ou esta última omite o dever objectivo de cuidado ou diligência, com referência ao que seria razoavelmente de esperar, dever esse cujo cumprimento seria adequado a evitar a produção do evento, in casu, a disposição de fundos e recursos financeiros à UNITA.


Perante o exposto e o circunstancialismo da situação concreta contestada, não se afigura existirem indícios que relacionem decisivamente XXXX com a UNITA, não constituindo a nacionalidade angolana, per se, fundamento bastante de uma suspeita fundada em torno de determinado movimento de fundo ou recurso financeiro, que se desconfie ser destinado à UNITA.


VII. Conclusões preliminares


17. Em suma, da análise do caso em concreto, somos de parecer:


– que a situação de regularização de sinistro em benefício de XXXX não se enquadra no objecto e nos destinatários das sanções financeiras impostas internacionalmente contra a UNITA, pelo que se nos afigura digno de reparo a exigência que lhe foi feita no sentido de fazer depender o direito de recebimento de determinada quantia indemnizatória da assinatura de declaração de não pertença à UNITA;


– que o dever de congelamento e de não disponibilização de fundos e recursos financeiros se impõem relativamente a fundos e recursos atribuíveis à UNITA ou às pessoas elencadas na lista do Comité de Sanções. Não deve, por conseguinte, contender com fundos e recursos financeiros do cidadão comum, de nacionalidade angolana ou outra.


 


 


 


VIII. Questão da conformidade jurídico-constitucional da exigência a cidadãos angolanos de assinatura de declaração de não pertença à UNITA


18. Se a análise dos presentes autos se centrou, até ao momento, na situação concreta de Maria Pedro, a mesma não fica completa sem uma apreciação, em abstracto, do procedimento autonomamente definido pela Império para fazer face ao dispositivo relativo às sanções financeiras contra a UNITA.


Trata-se, agora, de recuperar as interrogações formuladas supra, no parágrafo 5., atinentes à conformidade jurídico-constitucional desse procedimento, na perspectiva dos direitos fundamentais. A questão não é despicienda porquanto os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias vinculam as entidades privadas (art.º 18.º, n.º 1, da CRP).


Assim, no que toca ao universo restrito de pessoas destinatárias, a exigência aos cidadãos angolanos da assinatura de uma declaração com o conteúdo apontado viola, antes de mais, o princípio da igualdade, na dimensão tutelada no art.º 13.º, n.º 2, da CRP, i.e., da proibição de discriminações, na medida em que consubstancia um tratamento diferenciado daquela categoria de pessoas relativamente ao restante universo de cidadãos, fundado, justamente, num dos factores de discriminação ilegítimos – a nacionalidade -, cuja tutela decorre da densificação do factor “território de origem” elencado naquele preceito constitucional.


Não duvidamos que a proibição de discriminações não expressa uma obrigação de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento, entendimento este bem sedimentado pela doutrina e jurisprudências constitucionais. A existirem diferenciações, porém, estas têm de obedecer à regra de razoabilidade ou, por outras palavras, não poderão estar desprovidas de fundamento ou justificação racional, sob pena de arbitrariedade. Com efeito, para que sejam legítimas, as diferenciações de tratamento têm de ser «materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade» (cf. GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. rev., Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 128).


Neste contexto, não sendo legítimas as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas – como são as categorias indicadas exemplificativamente no art.º 13.º, n.º 2, da CRP -, razões de peso têm de ser avançadas para que uma diferença de tratamento exclusivamente fundada na nacionalidade possa ser considerada compatível com a Constituição.


Ora, a explicação avançada pela Império para justificar a bondade do procedimento adoptado não é convincente.


Na verdade, a asserção por parte da Império de que aquele procedimento não fora adoptado intuitu personae, mas antes em cumprimento de obrigações que lhe foram impostas e que são dotadas de generalidade e abstracção no que aos cidadãos angolanos respeita (cf. ofício a fls. 93), redunda, antes de mais, numa desvirtuação da letra e do espírito dos instrumentos de direito internacional que determinaram as sanções contra a UNITA e que a seguradora visada invocou para justificar a instituição do procedimento agora contestado.


Nada nesses instrumentos aponta para obrigações dotadas de generalidade e abstracção que relevem apenas relativamente a cidadãos angolanos. Os destinatários das sanções estão bem identificados e, sendo o objectivo das mesmas atalhar à capacidade operacional da UNITA, para além do dever de congelamento dos respectivos fundos e recursos financeiros e da garantia da sua não disponibilização directa, as instituições financeiras devem estar alertadas para situações de intermediação na movimentação dos fundos e recursos financeiros em questão, para efeitos de assegurar a garantia de não disponibilização indirecta, em que pode intervir qualquer pessoa, singular ou colectiva, não necessariamente angolana, originária de ou com sede em Angola.


Neste contexto, para além de a diferença de tratamento contestada não colher justificação nos preceitos internacionais que determinaram a imposição de sanções financeiras contra a UNITA, a limitação do universo de pessoas a quem seria exigida a assinatura da declaração em análise não se revela adequada à satisfação do objectivo de impedir a transferência de fundos e recursos financeiros para a UNITA.


Assim sendo, entendemos estar-se perante um tratamento discriminatório, atentando o procedimento contestado contra o princípio constitucional da igualdade. Este princípio, enquanto princípio objectivo da ordem constitucional, informador de toda a ordem jurídica, tem também como destinatárias as próprias entidades privadas. Sem colocar em causa o devido respeito pelo princípio da autonomia privada, sempre cumprirá registar que a proibição de discriminações, tutelada no art.º 13.º, n.º 2, da CRP, releva no comércio jurídico-privado como limite externo e que o dever de tratamento igual se impõe aos titulares de posições de poder social (os chamados poderes privados), entre os quais as empresas, vinculando desde logo os seus procedimentos internos.


 


19. Igualmente merecedor de reparo se nos afigura o conteúdo da declaração em apreço. Com efeito, não é aceitável na presente situação, do ponto de vista jurídico-constitucional, a obrigação de assinatura de declaração em que se expressa a não associação a, ou filiação em, dado movimento político.


Com efeito, a exigência de uma declaração nos termos referidos, na medida em que leva em si uma devassa intolerável do foro íntimo materializada num acto positivo de asserção de não pertença a determinado movimento político, viola, em nosso entender, liberdades jurídico-constitucionalmente protegidas, como sejam a liberdade de opinião e pensamento, bem como a liberdade de opção e de convicções.


Tais liberdades tutelam a singularidade própria de cada pessoa (no quadro, obviamente, da salvaguarda de outros direitos ou bens jurídico-constitucionais protegidos) e, por conseguinte, do seu direito de livremente optar, de não ser prejudicada em virtude das respectivas convicções políticas ou ideológicas, bem como de reserva quanto à esfera de convicções e opções políticas ou ideológicas.


A intromissão é tanto mais impertinente quanto é certo que as sanções impostas contra a UNITA não visaram afectar a actividade desta última enquanto movimento político, o qual não foi em si mesmo considerado ilegal.


Acresce que a qualidade de simpatizante ou de membro de um determinado movimento político não implica a afectação de fundos ou recursos financeiros a tal movimento e, inversamente, a inexistência de qualquer filiação não impede que determinada pessoa destine fundos ou recursos financeiros a dada força política. Nesta perspectiva, o conteúdo da declaração, para além de interferir com direitos e liberdades fundamentais, não se revela de todo adequada a dar execução ao dispositivo sancionatório decorrente da resolução onusina e do regulamento comunitário relativos a Angola.


 


20. Idêntico juízo procede relativamente ao procedimento entretanto adoptado por parte da Império, com vista a dar cumprimento às sanções financeiras impostas internacionalmente contra a UNITA.


Na verdade, segundo informação prestada pela Império no decurso da instrução dos presentes autos (a fls. 96), a declaração de não pertença à UNITA passou entretanto a ser exigida apenas às pessoas elencadas nas listas das Nações Unidas e nos casos em que, em função da sensibilidade dos funcionários, haja fundadas suspeitas de ligação à UNITA, por um lado, não sendo tal procedimento aplicável nos casos em que o montante em pagamento seja de valor reduzido, por outro.


Esta rectificação do procedimento em causa não se revela, porém, ainda de todo adequada a dar cumprimento ao dispositivo sobre as sanções financeiras contra a UNITA.


Com efeito, não se compreende que se continue a exigir a assinatura de declaração com o conteúdo referido, ainda que apenas às pessoas identificadas na lista do Comité de Sanções e nos casos de fundadas suspeitas de ligação à UNITA.


Quanto às primeiras, estando em causa os fundos ou recursos financeiros visados pelas sanções impostas internacionalmente, os mesmos devem ser, pura e simplesmente, independentemente do seu valor, congelados e não disponibilizados, a menos que exista autorização do Comité de Sanções para fins comprovadamente médicos e humanitários.


Quanto aos casos de fundadas suspeitas de ligação à UNITA, não estando as pessoas em causa identificadas na lista do Comité de Sanções, entendemos deverem relevar os mesmos relativamente à movimentação de fundos ou recursos financeiros e, por conseguinte, com vista a assegurar o cumprimento do dever de não disponibilização de fundos ou recursos financeiros em benefício da UNITA, seus altos dirigentes ou membros adultos da sua família directa.


Neste contexto, e perante as reservas suscitadas quanto ao conteúdo da declaração contestada, permitimo-nos chamar a atenção para outros procedimentos internos possíveis, adequados à prossecução do propósito visado pela resolução onusina e regulamento comunitário relativos às sanções contra a UNITA.


Assim, a prevenção das situações de disponibilização de fundos ou recursos financeiros à UNITA poderia passar antes:


– pela identificação, por parte das entidades financeiras, do cliente, de quem o represente ou de quem actue por conta de outra pessoa, sempre que exista uma suspeita fundada de que é em benefício da UNITA que se pretende efectuar a realização de determinada operação financeira;


– bem como pela recusa de realização de operações financeiras com quem não forneça a respectiva identificação ou a identificação da pessoa por conta da qual efectivamente actua;


– ou, ainda, pelo cumprimento de deveres especiais de diligência, analisando-se com especial cuidado as operações que pela sua natureza, montantes envolvidos e excepcionalidade, suscitem dúvidas, obtendo-se, inclusivamente, informação escrita sobre a origem e o destino dos fundos, a identidade dos beneficiários e a razão de ser da operação em questão.


 


 


 


 


 


Este tipo de procedimentos está já previsto em sede de mecanismos preventivos da utilização do sistema financeiro português para efeitos de branqueamento de capitais (cf. Decreto-Lei n.º 313/93, de 15 de Setembro de 1993, e Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro, quanto a este último se destacando a última alteração nele operada pela Lei n.º 10/2002, de 11 de Fevereiro), matéria, aliás, sobre a qual o ISP emitiu recentemente norma regulamentar (Regulamento n.º 37/2002 (Norma n.º 16/2002 – Branqueamento de capitais), de 29 de Junho de 2002) (14). Acresce que, tendo o legislador português, no início do corrente ano, aprovado lei que define o regime penal do incumprimento das sanções financeiras ou comerciais impostas por resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou regulamento da União Europeia (Lei n.º 11/2002, de 16 de Fevereiro) (15), a mesma dispõe, no art. 6.º, que na prevenção e repressão das infracções previstas nessa lei se aplicam as disposições especiais relativas ao branqueamento de capitais.


 


IX. O comportamento do ISP


21. Em suma, a situação concreta que esteve na base dos presentes autos ilustra bem a ausência, no âmbito da ordem jurídica portuguesa, de um quadro jurídico adequado a assegurar o cumprimento das sanções internacionalmente impostas contra a UNITA.


A este propósito, não será despiciendo fazer notar que, nos termos do 21.º parágrafo operativo da Resolução n.º 1295 (2000), o Conselho de Segurança apelara já a todos os Estados para trabalharem com instituições financeiras sediadas nos respectivos territórios com vista ao desenvolvimento de procedimentos que facilitassem a identificação de fundos e bens financeiros que pudessem ficar sujeitos às medidas constantes da Resolução n.º 1173 (1998) e o congelamento de tais bens.


Dando seguimento ao apelo do Conselho de Segurança, e não obstante a vigência na ordem jurídica portuguesa das resoluções onusinas e dos regulamentos comunitários oportunamente citados, e no quadro dos mesmos, teria sido, por conseguinte, desejável que o Estado português tivesse desenvolvido, num trabalho que envolvesse, desde logo, as entidades que supervisionam a actividade das instituições financeiras pertinentes (como seja o ISP, no caso das empresas de seguros e de resseguro e das sociedades gestoras de fundos de pensões, mas também o Banco de Portugal, relativamente às instituições de crédito, sociedades financeiras e outras entidades que lhe estão legalmente sujeitas), tais procedimentos.


Este apelo é tanto mais importante quanto é certo que a resposta ao mesmo teria contribuído para uma maior determinabilidade, precisão e clareza do regime jurídico das sanções financeiras contra a UNITA, determinabilidade, precisão e clareza estas que constituem exigências fundamentais de uma dimensão estruturante do nosso ordenamento jurídico, a saber, o princípio da protecção da segurança jurídica enquanto subprincípio concretizador do princípio do Estado de Direito.


 


22. No que respeita especificamente às empresas de seguros, resulta da instrução do presente processo que o ISP limitou-se à mera comunicação às seguradoras da resolução pertinente do Conselho de Segurança (cf. a já referida Circular n.º 12, de 22 de Julho de 1998, do Conselho Directivo do ISP, a fls. 95).


Ora, na linha da referência acima mencionada da necessidade de desenvolver determinados procedimentos, teria sido pertinente que, pelo menos, o próprio ISP tivesse dado indicações, às empresas sujeitas à sua supervisão, quanto ao tipo de fundos e recursos financeiros, bem como quanto à entidade e pessoas, visados pelas sanções financeiras impostas contra a UNITA, deste modo se prevenindo a determinação autónoma, por parte de cada seguradora, de procedimentos destinados a assegurar o cumprimento daquelas sanções, como aquele em apreço no presente caso, que consideramos, pelas razões aduzidas, ser desadequado à prossecução do propósito que presidiu à imposição daquelas sanções. Seriam, portanto, claros os benefícios em termos de segurança jurídica e protecção da confiança dos cidadãos que uma tal indicação teria acarretado.


Aliás, o comportamento do Estado português, ao tornar público, no quadro da ordem jurídica portuguesa, através do Aviso n.º 2/2002 (16), que o Comité de Sanções publicara, no dia 11 de Outubro de 2001, através da comunicação SCA/1/01(15), o que então era a mais recente lista dos dirigentes da UNITA e dos membros adultos das suas famílias para efeitos de restrições, no que releva para o presente caso, à titularidade, posse, detenção e movimentação de fundos e bens financeiros, nos termos do disposto nas Resoluções n.os 1127 (1997) e 1173 (1998), denota bem o reconhecimento implícito por parte das autoridades portuguesas da necessidade de dar a conhecer o conteúdo da mesma, uma vez que delimitam, em termos exclusivos, as pessoas visadas pelas sanções financeiras impostas contra a UNITA. A publicitação, ainda que tardia, desta lista no jornal oficial é tanto mais expressiva em termos de fiabilidade da ordem jurídica, quanto é certo que o conteúdo dessa lista já releva na ordem jurídica portuguesa na medida em que consta em anexo ao Regulamento (CE) n.º 1705/98 e por via das sucessivas modificações a este último.


 


X. Dúvidas quanto à conformidade constitucional de normas da Lei n.º 11/2002, de 16 de Fevereiro


23. Por último, importa, a nosso ver – não obstante a questão não relevar directamente para a resolução dos presentes autos, estando, todavia relacionada com a matéria das sanções financeiras ou comerciais impostas internacionalmente – delinear, em termos muito sucintos, dúvidas quanto à conformidade com a Constituição de lei publicada já no corrente ano e que «define o regime penal do incumprimento das sanções financeiras ou comerciais impostas por resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou regulamento da União Europeia, que determinem restrições ao estabelecimento ou à manutenção de relações financeiras ou comerciais com os Estados, outras entidades ou indivíduos expressamente identificados no respectivo âmbito subjectivo de incidência» (art.º 1.º da Lei n.º 11/2002, de 16 de Fevereiro) (17).


Em síntese:


– as dúvidas referidas respeitam à conformidade deste diploma com o regime constitucional da lei penal (art.º 29.º da CRP) e, mais especificamente, com os princípios da legalidade e da tipicidade;


– em relação ao princípio da legalidade, essas dúvidas decorrem do facto do regime penal em questão estar arvorado numa remissão para actos unilaterais de direito internacional, em violação da reserva de lei da Assembleia da República;


– com efeito, a relevância penal das condutas, tal como definidas agora pelo legislador português, fica em certa medida na dependência da intervenção normativa do direito internacional, acabando este ramo do Direito por ser fonte da definição dos crimes em causa ou, dito de outro modo, acabando por autorizar-se, directa e antecipadamente, que o Conselho de Segurança das Nações Unidas e as instituições pertinentes da União Europeia “legislem” sobre matéria penal;


– na verdade, determinando o legislador português que uma vez impostas, pelo Conselho de Segurança, através resolução, ou pela União Europeia, por via de regulamento, sanções financeiras ou comerciais, o incumprimento das mesmas, consubstanciado quer na violação do dever de congelamento de fundos e recursos financeiros (art.º 2.º), quer na violação de outros deveres (art.º 3.º), prescindiu o mesmo legislador de uma definição completa ou caso a caso das infracções em causa, como que passando um “cheque em branco” àqueles órgãos internacionais;


– assim, e no caso mais duvidoso, determina o art.º 3.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2002 que «quem estabeleça ou mantenha relação jurídica objecto das sanções com qualquer dos sujeitos identificados nas resoluções ou regulamentos referidos no art.º 1.º (…) é punido com pena de prisão de três a cinco anos»; trata-se, como aí é referido, de relações financeiras ou comerciais, mas, tal como o caso concreto que esteve na base dos presentes autos bem ilustra, não é líquido que em face de cada uma das resoluções onusinas ou regulamentos comunitários pertinentes se possa determinar, com precisão, o conteúdo relevante dessas relações para efeitos penais, o que, por seu turno, suscita dúvidas no plano do respeito pelo princípio da tipicidade, ao nível de uma suficiente especificação e delimitação do tipo de crime.


 


 


 


 


 


 


24. Perante o exposto, e em cumprimento do despacho de S.Ex.ª o Provedor de Justiça a fls. 96 vs.º, proponho:


– o arquivamento dos presentes autos (processo principal e apenso), com assinatura de ofício de chamada de atenção dirigido à Império, bem como de ofício a endereçar ao ISP;


– a assinatura de ofícios de elucidação final a endereçar aos reclamantes, anexando cópia das diligências efectuadas;


– a apreciação da pertinência das dúvidas que, muito sucintamente, delineámos quanto à conformidade com a CRP das normas contidas na Lei n.º 11/2002.


 


 


 


 


 


H. Nascimento Rodrigues


 


 


 


 


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Notas de rodapé 


1 – DR, n.º 219, Série I-A, de 22 de Setembro de 1998, p. 4888-4891.
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2 – JO n.º L 215, de 1 de Agosto de 1998, p. 1-11. Modificado pelos Regulamentos (CE) n.º 753/1999 da Comissão, de 12 de Abril de 1999 (JO n.º L 98, de 13 de Abril de 1999, p. 3-6), n.º 2231/2001 da Comissão, de 16 de Novembro de 2001 (JO n.º L 301, de 17 de Novembro de 2001, p. 17-22), n.º 2536/2001 da Comissão, de 21 de Dezembro de 2001 (JO n.º L 341, de 22 de Dezembro de 2001, p. 70), n.º 271/2002 da Comissão, de 14 de Fevereiro de 2002 (JO n.º L 45, de 15 de Fevereiro de 2002, p. 16) e n.º 689/2002 da Comissão, de 22 de Abril de 2002 (JO n.º L 106, de 23 de Abril de 2002, p. 8).
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3 – Cf. Resoluções n.ºs 864 (1993) e 1127 (1997), bem como a própria Resolução n.º 1173 (1998), todas do Conselho de Segurança e relativas à situação em Angola.
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4 – JO n.º L 190, de 4 de Julho de 1998, p.1-2.
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5 – Na segunda resolução, de 24 de Junho de 1998, ficou determinado que as medidas restritivas deviam entrar em vigor em 1 de Julho de 1998.
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6 – Cf. Rapport du Comité du Conseil de securité créé par la résolution 864 (1993) concernant la situation en Angola (Doc. NU S/1998/1227, de 28 de Dezembro de 1998; Doc. NU S/1999/147, de 12 de Fevereiro de 1999; Doc. NU S/2000/83, de 3 de Fevereiro de 2000; Doc. NU S/2000/1255, de 21 de Janeiro de 2001; Doc. NU S/2002/243, de 7 de Março de 2002).
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7 – Cf. Rapport final de l’Instance de Surveillance des sanctions en Angola (Doc. NU S/2000/1225, de 31 de Dezembro de 2000).
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8 – A adopção desta resolução foi igualmente tornada pública no quadro da ordem jurídica portuguesa através do Aviso n.º 125/2000 (DR, n.º 142, I Série-A, de 21 de Junho de 2000, p. 2690-2695).
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9 – Tornada pública no ordenamento jurídico interno mediante o Aviso n.º 268-A/97 (DR, n.º 222, I Série-A, 2.º Suplemento, de 25 de Setembro de 1997, p. 5310-(4)-5310-(7)).
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10 – V. Regulamentos (CE) n.os 753/99, 2231/2001, 2536/2001 e 689/2002 (supra nota 2), todos da Comissão, que, precisamente, modificam o Regulamento (CE) n.º 1705/98 no que respeita, inter alia, à lista dos membros da UNITA, estabelecida nos termos do 11.º parágrafo operativo da Resolução n.º 1127 (1997) do Conselho de Segurança.
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11 – A título comparatístico, transcrevem-se as versões castelhana, francesa, italiana e inglesa do art.º 2.º, n.º 3, al. a) do Regulamento (CE) n.º 1705/98:


– «A efectos del presente Reglamento, se entenderá por: a) «fondos y recursos financieros»: cualquier tipo de fondos y activos financieros, dinero en efectivo, activos líquidos, intereses, dividendos, otros ingresos por valores, bonos, obligaciones y otros valores, o beneficios obtenidos de estos activos o fondos, derivados o generados por intereses sobre propiedades de UNITA o de altos funcionarios de dicha organización o afiliados adultos y de su familia directa, enumerados en el anexo VII;(…)»;


– «Aux fins du présent règlement, on entend par: a) «capitaux et ressources financières»: les capitaux et actifs financiers de quelque nature que ce soit, notamment les numéraires, les liquidités, les intérêts, les dividendes, les autres revenus d’actions, les obligations ou autres titres de créance, ainsi que toute plus-value s’ajoutant à tous actifs et capitaux provenant ou générés par les droits de propriété détenus soit par l’UNITA, soit par les dirigeants de cette organisation, soit encore par les membres adultes de leur famille proche énumérés à l’annexe VII; (…)»;


– «Ai fini del presente regolamento: a) per «fondi e risorse finanziarie» si intend