Assunto: Critérios apresentados pelo Provedor de Justiça para indemnização dos danos causados pela derrocada da ponte de Entre-os-Rios
I
O nº 3 da Resolução do Conselho de Ministros nº 29-A/2001, de 9 de Março, estabelece o seguinte:
“Acolher a disponibilidade manifestada pelo Provedor de Justiça para colaborar no processo de reparação, solicitando-lhe a fixação dos critérios a utilizar no cálculo das indemnizações a pagar pelo Estado aos herdeiros das vítimas, de acordo com o princípio da equidade.“ |
Venho apresentar ao Governo, fundamentando-os, os critérios solicitados.
Da leitura que fiz da mencionada Resolução, retiro que se pretende, fundamentalmente, o estabelecimento de regras aptas ao cálculo das indemnizações cuja responsabilidade o Estado chamou a si relativamente aos familiares das vítimas. Não se cura, portanto, de apurar, neste procedimento, de possíveis pretensões indemnizatórias por danos invocáveis por outros que não as vítimas e os seus familiares.
Também não se me afigurou que fosse pretendido tratar o Provedor de Justiça de certos possíveis danos muito específicos, como os de natureza patrimonial decorrentes da perda de veículos propriedade de vítimas, ou, até, de perda de bens pessoais que estas transportassem consigo na altura do acidente. Este tipo de danos exige prova individualizada, que seria impossível neste momento, tratando-se, aliás, de matéria onde existem de sobejo critérios legais que poderão ser directamente aplicados pela Comissão instituída pelo nº 5 da supra mencionada Resolução do Conselho de Ministros.
Do mesmo modo, não julguei necessário estimar outras despesas ressarcíveis, como sejam as de socorro das vítimas e as dos respectivos funerais, neste caso por se me afigurar que o Estado ou outras entidades públicas terão assegurado o respectivo custeio.
As demais despesas directamente relacionadas com o evento, e que sejam objecto de prova também não carecem de critérios especiais, razão pela qual omito aqui o seu tratamento.
Uma outra linha de tracejamento da intervenção do Provedor de Justiça sobressai da leitura daquela Resolução do Conselho de Ministros: a de que a fixação dos critérios de indemnização se fará de acordo com o princípio da equidade. Tive presente, assim, ser exigência ética ponderar na minha decisão as particulares e muito dolorosas circunstâncias em que ocorreu a tragédia ocorrida na noite de 4 de Março.
Estamos perante uma situação com contornos sem precedentes, por múltiplas razões: pelas condições horríveis em que teve lugar, pelo elevado número de vítimas causado, pelos problemas, também sociais, que os óbitos provocaram, pelo prolongado processo das operações de recuperação dos corpos das vítimas (infelizmente frustrado em grande parte, como se sabe até ao momento).
E tudo isto ocorreu – não posso deixar de o relevar – sob uma intensa e persistente focagem mediática a que ficaram submetidos também os familiares das vítimas desse modo agravando a sua angústia e sofrimento.
A este conjunto de razões junta-se outra, à qual o Provedor de Justiça igualmente deve ser sensível: o sentimento geral do País – e, particularmente, o dos familiares das vítimas – foi de verdadeira e muito viva indignação face ao que presume ter sido incúria do Estado na fiscalização da ponte de Entre-os-Rios.
Só o sereno e rigoroso apuramento das causas e dos responsáveis da tragédia nos dirá por que aconteceu esta. Certo é, porém, que o Estado, ao chamar a si a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações – ainda que sem invocar o preciso título jurídico dessa assumpção de responsabilidades e sem deixar de se posicionar como credor do direito de regresso face a eventuais terceiros responsáveis – há-de estar consciente de que se lhe impõe uma reparação ajustada. E tanto mais ajustada quanto se terá presente, como acertadamente já se escreveu, que “o reforço da indemnização levará os autores dos danos a tentar preveni-los” (1).
Por isso, a equidade exigirá, também sob esta perspectiva, uma ponderação que responda à confiança dos cidadãos na justiça (sempre falível) da fixação dos montantes do ressarcimento dos danos.
Enfim, o Provedor de Justiça teve ainda presente que a Resolução do Conselho de Ministros nº 29-A/2001 estabeleceu – e bem – um “procedimento extrajudicial célere e alternativo” às vias judiciais, naturalmente mais morosas e custosas para os lesados. Esse procedimento deve, portanto, ser facilitador para estes e os seus resultados concretos potencialmente tão equilibrados que dispensem a petição de justiça através das instâncias próprias. A decisão do Provedor de Justiça visa, nos termos da conformação legislativa vigente em sede de danos indemnizáveis, a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562º do Código Civil, doravante referenciado com a sigla CC). Sendo essa operação impossível, designadamente pela natureza dos danos, há que calcular um sucedâneo pecuniário que, de algum modo, se aproxime da sua medida (artigo 566º, nº 1, do CC), devendo considerar-se não só “o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” (artigo 564º, nº 1, do CC).
A decisão do Provedor de Justiça tem de obedecer também ao comando do artigo 496º, nº 1, do CC, que manda indemnizar os “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
O cotejo destas disposições legais leva a concluir, assim, que a indemnização deverá comportar o ressarcimento de três espécies diversas de danos, a saber:
a) os danos não patrimoniais da vítima, compreendendo a morte e o sofrimento que a antecedeu;
b) os danos não patrimoniais dos familiares da vítima, aos quais se refere o art.º 496.º, n.º 2, do CC;
c) os danos patrimoniais sofridos por terceiros pela morte da vítima. |
Tendo presente o circunstancialismo especial a que acima aludi, procederei, pois, à fixação dos critérios aplicáveis a cada uma desta espécie de danos, para o efeito do que me socorri da experiência anterior do Provedor de Justiça, bem como dos ensinamentos recolhíveis da nossa jurisprudência.
I I
Começarei por recordar os três casos em que o Provedor de Justiça teve já ocasião de propor ao Governo o pagamento de indemnizações concretamente determinadas, de acordo com critérios perfilhados como justos. Refiro-me aos casos seguintes:
a) da morte de cidadão em posto da GNR, com posterior decapitação e ocultação do cadáver;
b) da morte de cidadão emigrante em acidente durante colaboração graciosa com a representação consular portuguesa;
c) da morte de guarda florestal no exercício das suas funções. |
No primeiro caso, o Provedor de Justiça instou o Governo a indemnizar sem demora a viúva e o filho da vítima, Recomendação que foi aceite, tendo o Conselho de Ministros solicitado ao Provedor a fixação do valor a pagar, através da Resolução do Conselho de Ministros nº 90/96, de 29 de Maio.
Nos dois casos restantes, foi do próprio Governo que partiu a iniciativa de solicitar o auxílio do Provedor de Justiça na fixação do valor indemnizatório [Resoluções do Conselho de Ministros nº 19/98 (2.ª série), de 12 de Fevereiro, e nº 27/97 (2.ª série), de 30 de Maio], tendo este sido posteriormente aceite em ambos.
O critério utilizado na fixação desses montantes, seguido de modo uniforme nestes três casos, consistiu em:
a) atribuir uma quantia fixa, de cinco milhões de escudos, pelo dano morte, em obediência ao princípio da idêntica dignidade de toda e qualquer vida humana, irrelevantes que são as circunstâncias pessoais face ao valor em presença (2);
b) não considerar hipotéticos danos próprios não patrimoniais da vítima, por se não provar a consciência do evento;
c) especificar, de acordo com a Lei, que a devolução da quantia alcançada em a) operaria pela via sucessória;
d) atender, em matéria de averiguação de elementos de facto, para efeitos do cálculo da indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais, próprios das pessoas elencadas no art.º 496.º, n.º 2, do CC – aliás na sua primeira classe, por sobreviverem sempre cônjuge e filho(s) – , aos seguintes factores:
– perda do rendimento auferido pela vítima, – idade da vítima, – idade dos descendentes aos quais fossem devidos alimentos, – existência de relacionamento social correspondente aos laços familiares com a vítima, – alguma outra especialidade que manifestamente exigisse tratamento diferenciado; |
e) fixar os danos não patrimoniais próprios do cônjuge e de cada filho em três milhões de escudos;
f) fixar os danos patrimoniais dos lesados, considerando que a obrigação de alimentos perduraria, no caso dos filhos, até à respectiva maioridade e, no caso dos cônjuges, até à idade de reforma/aposentação, segundo o país de residência da vítima;
g) estabelecer, para indemnização desses danos, o pagamento, por uma só vez, de um capital que, por si mesmo e pelos frutos produzidos, permitisse a fruição de rendimento semelhante ao perdido em consequência do óbito, com esgotamento previsível no momento final da obrigação alimentar, tal como delimitado em f) (3);
h) calcular separadamente para cada lesado esse capital, com base na última remuneração conhecida da vítima, prevendo-se a sua actualização com base na inflação registada nos últimos doze meses, e tendo em conta a média das taxas de juro vigentes nessa data para operações passivas entre 180 dias e um ano;
i) proceder ao cumprimento, no caso de indemnização paga a filhos menores, por meio de certificados de aforro, mobilizáveis pelo próprio na maioridade ou, antes desse momento, pela mãe, mediante autorização judicial prévia. |
Da análise desta experiência do Provedor de Justiça resulta, em síntese, o seguinte:
1º ter considerado a perda do direito à vida como indemnizável em quantia fixa e não em montante variável (por exemplo, com a idade da vítima, o seu apego à vida, a sua situação sócio-económica específica);
2º ter fixado o valor dessa indemnização em cinco milhões de escudo (5.000.000$), a dividir pelos beneficiários;
3º não ter determinado os valores para os danos morais próprios da vítima, por não ter sido possível comprová-los;
4º ter atribuído a cada um dos beneficiários da vítima indemnização por danos morais próprios, no valor de três milhões de escudos (3.000.000$);
5º ter calculado, através da atribuição de um capital, os danos patrimoniais dos titulares do direito, referenciados no artº 496º, nº 2, do CC, segundo fórmula que teve em conta os vectores indicados nas alíneas f), g) e h) do ponto 13. |
Permito-me sublinhar duas notas salientes nesta orientação. Por um lado, a defesa consistente do entendimento de que o prejuízo pela perda da vida deve ser valorizado de igual forma para todos, ao contrário da concepção que procede a essa avaliação segundo juízos que se conexionam com vectores tais como o “valor social” da vida ou o “apego da vítima à vida” e que conduzem, portanto, a quantitativos variáveis de caso para caso. Por outro lado, o atendimento da necessidade de se actualizar ao longo do tempo as prestações a atribuir aos familiares com direito a elas, de modo a salvaguardá-los da corrosão inflacionista.
I I I
Considero como globalmente correcta a metodologia adoptada pelo Provedor de Justiça nos casos anteriores a que aludi. Contudo, devo ter presente que, nessas situações, se estava perante realidades individuais, muito concretas, e em que subsistia conhecimento do contexto próprio de cada uma. Foi, assim, possível elaborar critérios equitativamente conformados a cada caso.
Agora, porém, os critérios que me são solicitados devem aplicar-se a uma pluralidade, ainda que finita, de situações de facto, desconhecendo-se ainda, aliás, o número real de vítimas mortais, o elo concreto de relacionamento com os familiares sobrevivos, a situação própria de cada um destes e outros dados susceptíveis de relevar, caso a decisão do Provedor de Justiça fosse tomada noutro contexto.
Por isso, compreender-se-á que a pluralidade de situações e a possível complexidade de algumas delas justifiquem que a metodologia adiante apresentada deva ser entendida como o enquadramento genérico das indemnizações a pagar aos lesados.
Fica, portanto, o Provedor de Justiça disponível para, se tal se revelar necessário e a pedido da Comissão a constituir nos termos da supra referida Resolução do Conselho de Ministros, lhe proporcionar critérios para situações atípicas, que venham a revelar-se, por isso, não enquadráveis na previsão que conduziu à fixação dos parâmetros em que baseei esta decisão.
Parto também do pressuposto de que a questão da prova da morte será ultrapassada com a necessária brevidade. Se, até ao momento, apenas foram recuperados poucos cadáveres, é legítimo pensar na probabilidade de, pelo menos alguns deles, se não a maioria, nunca o virem a ser. Neste aspecto, a não querer estabelecer-se um mecanismo excepcional para o efeito, a regra estipulada no art.º 68.º, n.º 3, do CC, conjugada com uma aplicação eficaz dos mecanismos previstos no art.º 207.º, n.º 1, do Código de Registo Civil, poderá permitir uma adequada satisfação dos direitos dos familiares sobrevivos, tão logo a resposta dos vários serviços públicos envolvidos seja pronta. Reporto-me à Conservatória de Registo Civil, Delegação do Ministério Público e Tribunal competentes, permitindo-me alertar o Governo para que sejam desenvolvidos os esforços adequados nesse sentido, directamente quanto à primeira entidade, indirectamente e através dos órgãos próprios nos segundo e terceiro casos. Também as incertezas que possam surgir pela dificuldade no reconhecimento de cadáveres merecerão toda a atenção dos serviços públicos habilitados a acelerar a verificação da sua identidade, como é o caso do Instituto Nacional de Medicina Legal.
I V
Começarei por abordar as consequências danosas da derrocada da ponte de Entre-os-Rios e a forma de as reparar, encarando, em primeiro lugar:
– a indemnização devida pela morte de cada vítima; – a indemnização devida por danos não patrimoniais sofridos por cada vítima. |
Observada a última jurisprudência dos Tribunais Superiores, pese embora alguma disparidade de quantitativos arbitrados, imputável ao funcionamento do processo civil, por via do próprio pedido dos lesados, mas também resultante da posição doutrinária geralmente perfilhada de que em caso de morte a medida do dano é a que concretamente resultar da valoração da vida perdida, verifica-se que o dano-morte oscilará, na sua quantificação, nos três últimos anos, entre três milhões e meio e dez milhões de escudos, não podendo excluir-se que, em casos não apurados, tenha ultrapassado, para cima ou para baixo, estas balizas. Considerou-se, em acórdão de 1999, que a média oscilaria entre os quatro e os cinco milhões de escudos (4).
Não adiro a esta posição dominante na nossa jurisprudência (5). Mais do que, por critérios sempre falíveis, tentar-se valorar em concreto a vida perdida, é a própria dignidade humana que impõe a quantificação idêntica daquilo que é essencialmente idêntico. Assim, defendo que a indemnização do dano-morte deve ser a mesma em todos os casos. Para alcançar o valor proposto, tomo por referenciais os valores médios indicados, a prática do Provedor de Justiça nos casos pretéritos já atrás enunciados e a evolução do crescimento das indemnizações fixadas judicialmente. O facto de não perfilhar a concepção teórica que está na base da fixação de valores diferenciados impede-me de considerar como adequados os valores extremos indicados e que – sublinho uma vez mais – atendem a condições especificamente pessoais de cada vítima.
Em sede de danos não patrimoniais sofridos pelas vítimas (6), devo ainda tomar especialmente em consideração as circunstâncias particulares em que esta tragédia ocorreu, e às quais já atrás aludi. Considero bastante verosímil admitir que as vítimas tenham tido consciência da morte iminente e com isso tido um muito intenso e angustiante, ainda que eventualmente breve, sofrimento (7). Proponho também um quantitativo uniforme, por ser de todo impossível a averiguação e prova do nível e grau de conhecimento da iminência da morte e do sofrimento e angústia efectivos de cada uma das vítimas.
Os montantes médios mais recentes fixados pela jurisprudência para reparação do dano-morte (entre 5.000 a 6.000 contos) e os que se estimaram também como valor médio mais actual, resultantes de decisões judiciais, quanto à reparação do dano não patrimonial sofrido pelas próprias vítimas (2.000 a 2.500 contos) foram, como se impunha, devidamente ponderados nesta decisão.
Contudo, estes montantes médios afiguram-se-me inaderentes à equidade na situação concreta, porque, como logo ao início referi, é notório estar-se perante um acontecimento de natureza excepcional e que se espera não ver repetido no futuro.
Deverá, pois, o Provedor de Justiça relevar tal condicionalismo, até para que, também de algum modo pela via civil da indemnização, seja prevenida a repetição de situações paralelas.
Ninguém duvidará de que é extremamente falível este juízo, porque a vida de cada homem não tem preço e o preço do sofrimento de cada um, se preço tem, só cada um o saberá. Mas o Provedor de Justiça deve fixá-los, por muito que custe fazê-lo.
Afigurando-se adequado neste caso, pelas razões atrás descritas, estabelecer um quantitativo total, que englobe o dano-morte e os danos não patrimoniais próprios de cada vítima, decido fixá-lo em dez milhões de escudos (10.000 contos) por cada uma.
Este quantitativo devolve-se pelas vias sucessórias, que em cada caso caibam, aos herdeiros de cada vítima, parecendo-me ser de aplicar, em regra, o normativo do art.º 68.º, n.º 2, do CC.
V
Tratarei, agora, dos danos de terceiros que não as próprias vítimas mortais da ocorrência, principiando pelos de natureza não patrimonial.
No que toca a este tipo de danos, e face ao teor do art.º 496.º, n.º 2, do CC, a indemnização cabe, a título próprio e originário, às pessoas integradas nas classes aí sucessivamente estabelecidas. Por outro lado, tendo em consideração o modo como decorreu o óbito (cfr. art.º 496.º, n.º 3, in fine, do CC), é desnecessário enfatizar o padecimento dos familiares sobreviventes, agravado pela incerteza quanto ao destino dos corpos, pela enorme exposição mediática que a situação mereceu e, ainda, pela polémica pública gerada em torno das condições de segurança da ponte em que ocorreu o acidente.
Por estes motivos, considero adequado estabelecer, por cada uma das pessoas que, nos termos da citada norma do CC, devam ser indemnizadas a título próprio por danos não patrimoniais, a atribuição de uma quantia de quatro milhões de escudos, se cônjuges não separados judicialmente de pessoas e bens, descendentes ou ascendentes em 1.º grau; de três milhões de escudos se ascendentes ou descendentes em 2.º grau, quando tivesse ocorrido coabitação prolongada com a vítima por ausência de progenitor (8); de dois milhões de escudos para outros descendentes; e de um milhão de escudos para os demais ascendentes ou parentes colaterais (9).
Em abstracto, entende-se que pode considerar-se equiparável a dor de um cônjuge à de um progenitor ou de um filho, independentemente da classe em que cada uma destas pessoas se encontra no esquema sucessivo gizado pela norma legal acima citada, distinguindo-os dos demais parentes que porventura sejam abrangidos em concreto pela aplicação da mesma. Considera-se como compatível com o art.º 496.º, n.º 2, do CC a diferenciação proposta, já que o estabelecimento das diversas classes aí enunciadas se prende com a definição de quem recebe e não de quanto recebe (10).
Também não obsta à valoração proposta o facto de, porventura no caso de lesados de escassa idade (por exemplo, filhos), essa circunstância poder fazer presumir que terão sentido menos a dor do que os seus familiares adultos. De facto, tal como se escreveu na Recomendação do Provedor formulada a propósito do caso ocorrido no posto da GNR de Sacavém, tarde ou cedo essas crianças aperceber-se-ão do sucedido, encontrando também o valor indemnizatório proposto apoio na jurisprudência. Com efeito, esta salienta nos seus arestos que “há que não fazer tábua rasa, na matéria, de que o desgosto de um filho que perde o pai se irá agravando com o seu crescimento, sobretudo por se ver privado do amparo daquele, relativamente à sua criação e educação.” (11)
V I
Passarei a abordar, por último, a questão relativa à quantificação dos danos patrimoniais. Neste âmbito, tem natural pertinência a aplicação do art.º 495.º, n.º 3, do CC (12), não sendo possível antever, neste momento, toda a gama de situações específicas que poderão surgir.
Interessa fixar o âmbito desta questão como coincidente com a citada norma legal, nela cabendo, desde logo, o cônjuge sobrevivo e filhos menores a cargo. Não se pode, contudo, deixar de abranger as situações em que a vítima satisfazia ou deveria satisfazer obrigações de alimentos, quer no cumprimento de obrigação legal (existindo ou não decisão judicial nesse sentido, por exemplo, a ascendentes ou a ex-cônjuge), quer no cumprimento de obrigação natural (13), num e noutro caso carecendo-se sempre de prova bastante. De notar ainda, conforme a jurisprudência, que “o n.º 3 do artº 495º do CC não concede às pessoas que podiam exigir alimentos da vítima mortal do sinistro o direito de indemnização por hipotéticos, eventuais e ainda não previsíveis danos patrimoniais que lhes poderiam vir a ser causados em momento futuro e incerto; há que fazer a prova, além do mais, da previsibilidade da necessidade futura de alimentos.” (14)
Nestes termos, será, pois, necessário, em primeira linha, apurar quais os rendimentos perdidos em consequência do decesso, aqui entrando naturalmente os rendimentos do trabalho e, eventualmente, de pensões porventura auferidas. Em caso de inexistência de rendimentos, por exemplo, por motivo de desemprego ou por trabalho doméstico, julgo adequado presumir como valor base, na primeira situação o salário mínimo nacional, ressarcindo a perda da capacidade potencial de ganho, na segunda estabelecendo um sucedâneo para a contribuição de indústria da vítima para o orçamento familiar (15).
Sem prejuízo da tomada em consideração dos montantes reais que se provar que vinham sendo efectivamente pagos a título de alimentos, quer no cumprimento de sentença, quer noutra situação atendível das já enunciadas, mas sempre fora do agregado familiar nuclear, julga-se de adoptar, na falta de critério globalmente mais seguro, a regra jurisprudencial de considerar um terço dos rendimentos como afecto a despesas pessoais (16), sendo a demasia repartida em partes iguais entre os demais elementos do agregado familiar. Tal como se procedeu num dos casos concretos já tratados pelo Provedor de Justiça, importa temperar este critério no caso de famílias numerosas, como as que possuíssem três ou mais filhos a cargo, situação em que se considera mais conforme com a equidade considerar apenas ¼ do rendimento como quota respeitante a gastos pessoais. Pelo contrário, em caso de agregados familiares que contassem apenas com os cônjuges, será de reduzir a metade o montante afecto a despesas familiares.
Devo debruçar-me também sobre os critérios mais pertinentes para fixar qual é o termo final da obrigação de alimentos.
Aqui, será de atender-se:
a) no caso dos cônjuges ou ascendentes a quem fossem devidos alimentos, à data mais próxima que decorra da aplicação dos últimos dados disponibilizados pelo INE (17) em termos de esperança de vida da vítima e do beneficiário da obrigação de alimentos, calculada, não à nascença (18), mas sim com base no escalão etário em que se inseriam no momento do óbito;
b) no caso dos filhos, ou de outros descendentes a cargo, menores, até à data da sua maioridade. Exceptuo deste limite as situações seguintes:
1) o caso em que o lesado esteja, no momento da maioridade, a frequentar estabelecimento de ensino, sendo então a indemnização devida, persistindo a frequência, até ao termo do ano lectivo a que corresponderia, sem reprovação de ano, a conclusão do curso de formação profissional em que esteja inscrito ou do ensino secundário, salvo, neste último caso, matrícula imediatamente subsequente em curso do ensino superior, circunstância em que se aplicará a solução prevista em d), infra (19);
2) o caso de filhos, ou outros descendentes a cargo, portadores, aquando do evento, de deficiência de natureza física, orgânica, sensorial, motora ou mental, que torne necessário o apoio pedagógico ou terapêutico – até à data em que perfizerem 24 anos (20);
3) o caso de filhos ou descendentes a cargo, portadores, aquando do evento, de deficiência de natureza física, orgânica, sensorial, motora ou mental, que os impossibilite de proverem normalmente à sua subsistência pelo exercício de actividade profissional – até à data que resultar da aplicação do critério fixado na alínea a);
4) o caso de requerimento pendente de interdição, nos termos do art.º 138.º, n.º 2, do CC, até à decisão que negue ou decrete essa incapacidade; |
c) no caso de filhos interditados – até à data que resultar da aplicação do critério fixado na alínea a);
d) no caso de filhos, ou de outros descendentes maiores que, nos termos do art.º 1880.º do CC, estivessem ainda a cargo da vítima e a frequentar curso de formação profissional ou superior, oficialmente reconhecido – até à data correspondente ao termo do ano lectivo em que devessem concluí-lo, sem reprovação de ano, segundo o plano curricular do curso em que estão inscritos, e se persistir a sua frequência. |
Como acima referi (cf. nºs 36 e 37 desta decisão), terão de ser apurados os rendimentos perdidos em consequência do decesso, os quais constituem a base fundamental de cálculo para a concretização da indemnização por danos patrimoniais. Há que deduzir aos montantes que venham a ser provados nesses termos os quantitativos que sejam devidos aos lesados a título de pensão de sobrevivência. Esta pensão tem por fim, precisamente, compensar os familiares sobrevivos da perda de rendimento causada pela morte, por isso que não se justificará a duplicação de ressarcimento, o que redundaria em enriquecimento sem causa (21). Não desconheço alguma jurisprudência contrária, que faz radicar a fonte da pensão de sobrevivência nos descontos efectuados pela vítima. Porém, o facto de o nosso sistema de segurança social assentar numa base de repartição e não de capitalização preclude, a meu ver, a pertinência desta construção teórica. Pelo contrário, já considero como irrelevante qualquer seguro de vida que cobrisse o risco de morte das vítimas, pelas mesmas contratado, por ser de raiz voluntária e individualizada.
O critério fulcral que fundamenta o ressarcimento dos danos patrimoniais de que estou a tratar aponta para se estabelecer um capital necessário para que, “produzindo o rendimento perdido”, venha esse mesmo capital a encontrar-se esgotado no fim do período considerado relevante (22), evitando, porém, o enriquecimento sem causa.
Esse foi o critério perfilhado pelo Provedor de Justiça nos casos anteriores a que já me referi e é, hoje, provavelmente, unânime na nossa jurisprudência.
Para fixação desse capital, nos termos de fórmulas que adiante se descreverão e que constituem uma das opções possíveis a várias outras também empregues pela jurisprudência, é necessário prognosticar uma taxa de inflação média futura e uma taxa de juro que previsivelmente proporcione uma remuneração média provável do capital entregue, a título de indemnização.
Por outro lado, um factor de ponderação adicional, que vejo presente nas preocupações da jurisprudência recente, é a do possível aumento da capacidade de ganho da vítima (23). Trata-se de aspecto nela amiúde aflorado mas raramente quantificado, por se revelar muito complexo traduzi-lo sob indicadores indiscutíveis (24).
Na situação presente, que envolve uma pluralidade de vítimas, em relação à quase totalidade das quais não se sabe, neste momento, que situação “sócio-salarial” detinham, torna-se manifestamente inviável estimar, sequer por presunção ou aproximação, qual seria a evolução remuneratória ( ou de ganho previsível de outros rendimentos) de cada uma. E, todavia, entendo que este vector não deve ser postergado só porque se antolhou como extremamente difícil ou aleatório enquadrá-lo em fórmulas de avaliação.
O arrimo jurisprudencial que, neste aspecto, se poderá recolher, assenta num recente acórdão do STJ (25), no qual se estabelece um crescimento anual de 1% como “um mínimo seguro e previsível, aos padrões actuais de desenvolvimento”. No mesmo sentido, alcançando um valor de 2% (decomposto em partes iguais para ganhos de produtividade e para progressão na carreira profissional), encontra-se uma decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Abril de 1995 (26).
Deste modo, considero equilibrado quantificar para a generalidade das situações – ciente, embora, de que é inevitável, à data desta decisão, alguma arbitrariedade decorrente do desconhecimento da profissão ou actividade profissional específicas exercidas por cada vítima – o referido aumento potencial de capacidade de ganho em 2% ao ano, até ao momento em que ela atingiria os sessenta e cinco anos de idade (por ser esta a regra geral para a reforma/aposentação).
Em consequência, defino os seguintes critérios, diferenciando as situações acima enunciadas no nº 38, consoante se insiram nas alíneas a), b) n.º 3 e c), por um lado, ou nas restantes, por outro.
Para os casos das alíneas a), b) nº 3, e c) do nº 38, proponho o pagamento aos lesados de um montante único , calculado segundo uma das seguintes fórmulas: (27)
A) Se a vítima já tinha atingido os sessenta e cinco anos de idade:
,
em que:
C – Capital pi – prestação inicial h – coeficiente mensal de crescimento da prestação e que é obtido pela fórmula h = (1 + i), onde i representa a inflação; jm – taxa de juro mensal, e n = número de meses em que é devida a prestação mensal. |
B) Se a vítima ainda não tinha atingido os sessenta e cinco anos de idade:
onde, mantendo-se as correspondências já descritas em A), temos ainda
h’ – coeficiente mensal de crescimento da prestação, assumindo o aumento da capacidade de ganho, e que é obtido pela fórmula , onde i representa a inflação e a a taxa de crescimento considerada para os ganhos de produtividade e de progressão profissional;
n’ – número de meses desde o momento da morte até àquele em que a vítima completaria 65 anos de idade, inclusive; e
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Como acima disse, o valor de n (número de meses total) será variável em cada caso, calculando-se a esperança de vida para o respectivo escalão etário da vítima e do beneficiário e tomando como bom o menor destes dois números [cf. nº 38 a) desta decisão].
A taxa de inflação anual, de acordo com os critérios jurisprudenciais, levando em linha de conta o pacto de estabilidade na zona euro, deve ser fixada em 2%.
A taxa de juro para operações passivas, na impossibilidade de outro critério, deve ser fixada como correspondente à taxa líquida média, segundo a última informação do Banco de Portugal, em Fevereiro deste ano apresentando um valor aproximado de 2,9% (28).
Na linha da jurisprudência atrás citada (29), toma-se em consideração para o valor de a (ou seja, a taxa de crescimento considerada para ganhos de produtividade e de progressão salarial), uma taxa anual de 2%, reflectindo a segunda fórmula o facto de esta majoração só ser devida até ao mês em que a vítima completaria 65 anos de idade.
No que diz respeito aos lesados com direito a indemnização referenciados nas alíneas b) nºs 1, 2 e 4 e d) do n.º 38, opto pelo pagamento de uma indemnização em renda, mecanismo adequado a quem tem o direito a alimentos sujeito a termo incerto, como é o caso em apreciação. Com efeito, por se tratar, aqui, essencialmente de filhos (ou outros descendentes) menores, ou em situação de frequência escolar/académica ou, ainda, portadores de deficiência, são essas mesmas condições que justificam dever a indemnização por danos patrimoniais revestir a forma de renda, e não a de montante único em capital, pago de uma só vez – exactamente para os resguardar na fragilidade inerente à condição que detêm.
Em consequência, depois de se apurar o montante mensal inicial devido em caso de não produção do evento danoso (30), deve ser paga, em cada mês, a mesma quantia, actualizada no início de cada ano civil pela aplicação da percentagem estabelecida para as pensões de aposentação, que tem sido ultimamente paralela à do aumento dos funcionários públicos no activo. Entende-se como adequada a referência a este mecanismo de actualização, por expressar uma avaliação do Estado não só da taxa de inflação estimada como também da possibilidade de evolução dos salários reais, sendo, ademais, notório o efeito ordenador que esta definição pública tem para o sector privado. Neste reflexo da evolução dos salários reais está também uma vertente não despicienda da melhor adaptação do mecanismo da renda à efectiva reparação do dano. Em todo o caso, e para salvaguarda dos beneficiários desta renda, deve ressalvar-se que esta percentagem de actualização nunca poderá ser inferior à taxa de inflação média apurada no ano civil anterior, de acordo com os índices oficiais do Instituto Nacional de Estatística.
Evidentemente, caberá à Comissão instituída pelo nº 5 da Resolução do Conselho de Ministros nº 29-A/2001 apurar, para os casos concretos que lhe forem apresentados, o valor indemnizatório resultante das fórmulas estabelecidas no ponto 46, ou o valor da renda mensal a que se refere o número anterior desta decisão.
V I I
O pagamento a menores das quantias que sejam devidas quer a título sucessório, quer por danos não patrimoniais, deve ser feito em certificados de aforro, com possibilidade de mobilização anterior à maioridade apenas com consentimento judicial, mecanismo cuja razão de ser julgo dispensável enunciar.
Recordo apenas que prossigo, assim, a orientação traçada pelo Provedor de Justiça nos três casos concretos a que já me reportei, e que perfilho.
Não obstante, se, no que toca ao valor pago a título sucessório aos menores (quantias provindas da indemnização do dano-morte e dos danos não patrimoniais de de cujus), bem como ao valor dos danos não patrimoniais próprios, o pagamento através de certificados de aforro traduz cautela apropriada, já não diria o mesmo quanto ao pagamento do valor da indemnização por danos patrimoniais devidos.
Esta indemnização tem por fim ressarcir o “valor alimentar” que seria destinado ao sustento corrente do menor, e que é o mais necessário por natureza. Portanto, admito ser mais equitativo que esta parcela de indemnização lhe seja atribuída em renda mensal, assim permitindo a sua utilização para o sustento corrente do menor lesado.
V I I I
Em resumo, de acordo com tudo o que fica exposto, decide o Provedor de Justiça, nos termos do n.º 3 da Resolução do Conselho de Ministros 29-A/2001, de 9 de Março, o ressarcimento dos lesados pela queda da ponte de Entre-os-Rios, ocorrida em 4 de Março p. p., através de:
I. Atribuição aos herdeiros de cada vítima da quantia global de Esc. 10.000 000$, por via do dano-morte e do sofrimento gerado nos momentos anteriores ao decesso.
II. Atribuição a cônjuge sobrevivo e a cada um dos outros familiares das vítimas, de acordo com o previsto no art.º 496.º, n.º 2, do Código Civil, de Esc. 4.000.000$ por danos não patrimoniais próprios, se a cônjuges, descendentes ou ascendentes em 1.º grau; de Esc. 3.000.000$ se a descendentes ou ascendentes em 2.º grau quando tivesse ocorrido coabitação prolongada com a vítima por ausência de progenitor; de Esc. 2.000.000$ se aos demais descendentes ou ascendentes e de Esc. 1.000.000$ se a parentes colaterais.
III. Atribuição a cônjuges, filhos interditados e ascendentes que demonstrem o seu direito a alimentos, de um capital calculado com base na aplicação da fórmula pertinente, referida no nº 46 desta decisão.
IV. Atribuição aos filhos ou descendentes a cargo, nos termos previstos no n.º 38, de uma renda mensal, de montante e duração variável, a título de danos patrimoniais, actualizada anualmente de acordo com os critérios fixados.
V. Entrega directamente a cada herdeiro da quota-parte que lhe caiba do quantitativo estabelecido em I.
VI. Cumprimento da indemnização ou sua quota, prevista em I e II, no caso de se tratar de menor, através de certificados de aforro, apenas mobilizáveis pelo próprio na maioridade, salvo autorização judicial a requerimento de quem exercer o poder paternal ou a tutela. |
Lisboa, 19 de Março de 2001
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues |