PARECER DO PROVEDOR DE JUSTIÇA
Entidade visada: Ministério da Justiça
Proc.º: R-170/02 (A6)
Data: 25/07/2003
Assunto: Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Situação jurídica plurilocalizada. Reconhecimento. Direito internacional privado e estatuto pessoal. Noção de casamento. Ordem pública internacional. Direito a contrair casamento.
1. Solicitou V. Ex.ª a intervenção do Provedor de Justiça relativamente à questão do reconhecimento, pelos Estados-Membros da União Europeia (UE), de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, celebrado ao abrigo da lei de um desses Estados-Membros, alegando que o não reconhecimento sinonimiza “uma nova forma de poligamia permitida” aos cidadãos da UE.
2. Cumpre, antes de mais, advertir que, por força do enquadramento jurídico-normativo que delimita as competências do Provedor de Justiça, a actuação deste órgão do Estado, para além dos casos em que lhe é permitido intervir nas relações entre particulares, apenas pode visar poderes públicos nacionais. Significa isto que, no presente caso, o problema exposto apenas poderá ser analisado na perspectiva da conduta das autoridades portuguesas, já não, obviamente, na das autoridades de outros Estados-Membros da UE, nem das instituições e órgãos comunitários. Quanto a estes últimos, gostaria de informá-lo que o Provedor de Justiça Europeu é o órgão homólogo, no seio da UE, com competência para apreciar queixas relativas a casos de má administração por parte dos mesmos (cf. art.os 21.º e 195.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia (Tratado CE)).
3. Informou V. Ex.ª que, sendo cidadão português residente nos Países Baixos, celebrou neste país, em …, casamento civil com cidadão neerlandês do mesmo sexo, ao abrigo da legislação civil neerlandesa em vigor desde 1 de Abril de 2001 – a Lei de 21 de Dezembro de 2000 modificando o Livro I do Código Civil, sobre a abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo (Staatsblad van het Koninkrijk der Nederladen, 2001, N.º 9) -, a primeira no mundo a permitir essa forma de comunhão não heterossexual, exemplo entretanto já seguido também na Bélgica (Lei de 13 de Fevereiro de 2003 abrindo o casamento a pessoas do mesmo sexo e modificando certas disposições do Código Civil, que entrou em vigor em 1 de Junho de 2003).
Ao abrigo do direito neerlandês, um dos requisitos para a celebração do casamento entre pessoas do mesmo sexo consiste na exigência de que pelo menos um dos nubentes tenha um vínculo de ligação aos Países Baixos, revelado seja pela nacionalidade neerlandesa seja pela residência neste país; em relação ao nubente que não seja cidadão neerlandês, é considerado irrelevante que a lei da respectiva nacionalidade permita ou não o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aspecto este do direito neerlandês que encerra uma certa noção de favor matrimonis (já não, assim, no direito belga, ao abrigo do qual o casamento entre pessoas do mesmo sexo apenas é possível se ambas as partes satisfizerem os requisitos de fundo postos pela respectiva lei nacional para poderem contrair casamento, o que traduz uma opção clara por um regime jurídico autolimitado).
4. Tendo V. Ex.ª efectuado, junto do Consulado-Geral de Portugal em Roterdão, pedido de alteração do estado civil no seu Bilhete de Identidade – pedido este supostamente oral, uma vez ter relatado não possuir qualquer tipo de comprovação do mesmo -, terá sido verbalmente informado que, nos termos da legislação portuguesa, o casamento contraído por pessoas do mesmo sexo é juridicamente inexistente, não podendo, como tal, ser registado pelo agente consular. Instado a pronunciar-se sobre o assunto, veio o Exm.º Senhor Cônsul-Geral, em Roterdão, informar não ter V. Ex.ª «efectuado qualquer diligência com vista à transcrição do seu casamento ao abrigo da lei holandesa que permite o matrimónio entre pessoas do mesmo sexo». Subentenda-se: qualquer diligência formal, como, aliás, é comprovado pela afirmação de V. Ex.ª de que apenas solicitou e obteve uma informação oral.
5. Independentemente da questão em torno das diligências efectivamente realizadas – as quais podem, a todo o tempo, ser renovadas/desencadeadas, desde logo, por escrito, se assim o entender (para esse efeito, cf. o disposto nos art.os 184.º, n.º 3, e 185.º do Código do Registo Civil (CRC) sobre a transcrição de casamento civil celebrado no estrangeiro entre portugueses ou entre português e estrangeiro) -, e na medida em que considero relevar, no presente caso, o problema de fundo que está na sua base – isto é, a questão do reconhecimento em Portugal de casamento civil entre duas pessoas do mesmo sexo, celebrado ao abrigo da legislação vigente noutro Estado – entendi não deixar de proceder ao estudo do mesmo, ligado que está a uma indubitável novel realidade jurídica.
Com efeito, é patente, nos últimos anos, uma evolução, consubstanciada na multiplicação de instrumentos jurídicos dirigidos à tutela da comunhão de vida entre duas pessoas do mesmo sexo (alguns dos quais, consoante as legislações pertinentes, abrangem também as uniões heterossexuais).
Assim, se nos ativermos geograficamente ao espaço da UE, verificamos, por um lado, que essa tutela passa por institutos como o da união de facto (Portugal – v. Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que adopta medidas de protecção das uniões de facto), da “pareja estable” ou “union de hecho” de algumas comunidades autónomas espanholas, da “cohabitation légale” (Bélgica), da “Lebensgemeinschaft” (Áustria), da “Lebenspartnerschaft” (Alemanha), do “pacte civil de solidarité” (França) ou das chamadas uniões registadas (“registered partnerships”) dos países nórdicos (Dinamarca, Países Baixos e Finlândia). Não obstante as diferenças que possam existir na regulação de cada um destes institutos, ao nível dos respectivos efeitos jurídicos, sempre é de registar que alguns deles – como é o caso do modelo das uniões registadas (“registered partnerships”) de pessoas do mesmo sexo – produzem efeitos jurídicos em quase tudo similares aos do casamento, afigurando-se como um “sucedâneo” deste último, para utilizarmos a expressão de Nuno de Salter Cid (Nuno de Salter Cid, «Direitos Humanos e Família: Quando os homossexuais querem casar», Economia e Sociologia, N.º 66 (1998), p. 222).
Por outro lado, a evolução referida não se limitou ao enquadramento normativo das uniões de pessoas do mesmo sexo através de institutos juridicamente distintos do casamento (ainda que nalguns casos próximos deste no plano dos efeitos jurídicos, como acabado de referir) e, tal como ocorrido, de forma paradigmática nos Países Baixos – e agora, também, na Bélgica -, comportou mesmo a abertura do casamento civil a casais não heterossexuais. Não será, por conseguinte, de estranhar que os juristas se vejam confrontados com novos desafios, desde logo ao nível das consequências jurídicas, postos por semelhante evolução legislativa.
Neste contexto, é da análise feita da questão apresentada por V. Ex.ª que venho, agora, dar-lhe conhecimento, pedindo, desde já, escusa por a mesma ter sido algo morosa, circunstância que decorre da complexidade do estudo jurídico a que teve de se proceder e da necessidade de tomar em linha de consideração os últimos desenvolvimentos jurídicos, pertinentes para a apreciação da matéria.
6. Importa salientar, em primeiro lugar, que o próprio legislador neerlandês, ao introduzir as necessárias alterações ao respectivo Código Civil, por forma a permitir a celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo, teve plena consciência das dificuldades que outros Estados poderiam colocar quanto ao seu reconhecimento, nas respectivas ordens jurídicas.
Com efeito, como se expôs no Relatório Parlamentar da Segunda Câmara, de 8 de Julho de 1999, sobre a proposta de lei originalmente apresentada pelo Governo dos Países Baixos, «a questão relativa ao completamente novo fenómeno jurídico do casamento entre pessoas do mesmo sexo relaciona-se com a interpretação da noção de ordem pública que possa esperar-se noutros países. (…) O resultado de um exame pelo (…) Comité [Kortmann] entre Estados-Membros do Conselho da Europa é o de que reconhecimento apenas pode ser esperado em muito poucos países. O que não é surpreendente».
Em consonância com semelhante conjectura, na informação disponibilizada pelo Ministério da Justiça dos Países Baixos sobre a matéria, chama-se a atenção para o facto de os casamentos em questão, bem como as suas consequências jurídicas, nem sempre serem aceites noutros países e, em conformidade, para os possíveis problemas com que os casais de pessoas do mesmo sexo podem defrontar-se no estrangeiro, no que concerne ao reconhecimento do respectivo casamento (cf. Same-sex mariages Fact Sheet, disponível em <www.ministerievanjustitie.nl/english>).
7. Com efeito, no caso de V. Ex.ª, infere-se da situação descrita que a mesma está conectada com diferentes ordens jurídicas – in casu, a portuguesa (dada a sua nacionalidade) e a neerlandesa (atendendo ao local da celebração do seu casamento, à nacionalidade da pessoa com quem o celebrou e ao domicílio comum). Trata-se, por conseguinte, do que se designa de uma situação jurídica plurilocalizada, o que, na perspectiva do aplicador do Direito, coloca, à partida, o problema da lei aplicável ou da lei competente para a respectiva regulação.
A resolução deste problema implica, por seu turno, chamar à colação as normas do chamado direito internacional privado (DIP) ou direito dos conflitos, justamente o ramo do Direito que integra os princípios e regras conducentes à designação da lei aplicável, que deva resolver uma dada questão jurídica, não encerrada numa única ordem jurídica. Note-se que, enquanto normas de carácter instrumental, as normas de DIP (as chamadas “normas de conflitos”) não se propõem fixar a disciplina que rege, materialmente, determinada relação ou situação jurídica plurilocalizada (o regime aplicável), mas tão-somente indicar, através do chamado elemento de conexão, a lei em cujas normas tal disciplina há-de procurar-se (a lei que se aplica). Serão, por conseguinte, nesta medida, normas “localizadoras”.
8. Neste contexto, de acordo com as normas de DIP vigentes na ordem jurídica portuguesa, releva, em matéria de estatuto pessoal, o elemento de conexão pessoal ou subjectivo, ou seja, atende-se ao sujeito da relação, considerando-se como factor decisivo a respectiva ligação a determinado Estado, revelada seja pela nacionalidade (lex patriae) seja pelo domicílio ou residência habitual (lex domicilii).
Assim, dispõe o art.º 25.º do Código Civil (CC) português que as relações de família – incluindo a condição jurídica (i.e., o estado) da pessoa relacionada com a sua situação jurídico-familiar, desde logo, no que para o presente caso interessa, por força do casamento – «são regulad[a]s pela lei pessoal dos respectivos sujeitos, salvas as restrições estabelecidas na presente secção». Determina o n.º 1 do art.º 31.º do mesmo Código que «a lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo». Em conformidade com as disposições citadas, e como princípio geral, os actos que se afigurem como os mais relevantes da vida jurídica de um cidadão português ficam, pois, sujeitos à lei portuguesa.
No que especificamente concerne à constituição do estado de casado, conforme o preceituado no art.º 49.º do CC, as condições de validade intrínseca do casamento – ou seja, a capacidade para contrair casamento ou celebrar convenção antenupcial, o regime da falta e dos vícios da vontade dos contraentes e, por maioria de razão, os próprios requisitos de existência do próprio casamento – são regulados, em relação a cada nubente, pela respectiva lei pessoal, ou seja, a lei da sua nacionalidade. Nestes termos, estando em causa, no caso em apreço, um casamento entre cidadão português e cidadão estrangeiro, a verificação das condições de validade intrínseca desse casamento em relação ao nubente português há-de ser feita à luz da lei portuguesa. Tendo o casamento já sido celebrado, as consequências da eventual violação de alguma das disposições de fundo são regidas pela mesma lei que fixa essas condições de validade, incluindo a sanção pelo seu desrespeito.
9. Ora, segundo a lei portuguesa, o «casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida (…)» (art.º 1577.º do CC), estatuindo expressamente a mesma lei que é juridicamente inexistente – não produzindo, por conseguinte, qualquer efeito jurídico – o casamento contraído por duas pessoas do mesmo sexo (cf. art.os 1628.º, al. e), e 1630.º do CC).
Decorre, por conseguinte, do exposto que a heterossexualidade permanece, na legislação portuguesa, como característica fundamental do casamento, sendo requisito da sua própria existência, pelo que, nos termos do direito português vigente, um contrato de comunhão de vida celebrado entre pessoas do mesmo sexo não poderá ser “cognoscível” como casamento.
Recorde-se, aliás, que uma das características comummente apontadas ao direito da família se traduz na preponderância, nesta matéria, de normas imperativas, isto é, de normas inderrogáveis pela vontade das partes (entre as quais, as relativas aos requisitos de fundo do casamento), circunstância «que revela o interesse público atinente à organização da vida familiar» (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 163; cf., também, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª ed. rev. e actual., Coimbra: Coimbra Editora, 1992, pp.13-14).
Nesta medida se compreende, pois, que o casamento surja envolto em formalidades específicas, previstas na lei, e que incluem, entre outras, a organização de um processo preliminar de publicações (regulado no art.º 134.º e seg. do CRC). No caso de casamento contraído por cidadão português no estrangeiro, a lei portuguesa admite que o mesmo possa ser celebrado perante as autoridades locais competentes, pela forma prevista na lei do lugar da celebração (cf. art.º 161.º do CRC). Dispõe, ainda, o art.º 163.º, n.º 4.º, do CRC que «o português residente no estrangeiro que pretenda casar perante as autoridades locais pode requerer a verificação da sua capacidade matrimonial à Conservatória dos Registos Centrais ou aos agentes diplomáticos ou consulares competentes para a organização do processo de publicações para casamento, devendo o duplicado do certificado ser remetido à conservatória [competente para lavrar o assento do casamento]».
No caso de V. Ex.ª não houve lugar a organização de processo preliminar de publicações, o que aliás bem se compreende. Por um lado, porque – tal como teve a gentileza de esclarecer este órgão do Estado – enquanto cidadão residente nos Países Baixos, constava já obrigatoriamente do Registo de População desse país, para o que teve de juntar, entre outros documentos, certidão internacional de nascimento, comprovando o seu estado civil; por outro lado, porquanto o direito neerlandês desconsidera o facto de, no caso de um dos nubentes ser cidadão estrangeiro, a respectiva lex patriae admitir ou não o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
De todo o modo, mesmo nos casos em que o Estado português seja solicitado a emitir um certificado de capacidade matrimonial, à luz da Convenção Relativa à Emissão de um Certificado de Capacidade Matrimonial (adoptada em 5 de Setembro de 1980, no seio da Comissão Internacional do Estado Civil, e em que Portugal é parte), o mesmo só fica obrigado à sua emissão «sempre que um dos seus nacionais o solicite para o fim de celebrar o seu casamento no estrangeiro e preencha as condições para contrair esse casamento segundo a lei do Estado que emite o certificado» (art.º 1 da Convenção, sublinhado nosso), ou seja, neste caso, a lei portuguesa.
Por último, em matéria de formalidades do casamento, quanto ao registo do casamento, no caso de casamento celebrado no estrangeiro na forma prevista do lugar da celebração, perante as autoridades locais competentes, o mesmo é registado «por transcrição do documento comprovativo do casamento, passado de harmonia com a lei do lugar da celebração» (art.º 184.º, n.º 2, in fine, do CRC). Este registo pode ser feito no livro próprio do consulado competente ou directamente na conservatória competente (neste caso, v. art.º 187.º do CRC). Em todo o caso, a transcrição apenas pode ter lugar mediante prévia organização do processo preliminar, determinando a lei que a mesma deve ser recusada caso se verifique «que o casamento foi celebrado com algum impedimento que o torne anulável» (art.os 185.º, n.º 3, e 187.º, n.º 3, do CRC). Se assim é perante as causas de anulação de um casamento, por maioria de razão se compreende que a mesma não opere perante circunstâncias que tornam o casamento juridicamente inexistente.
10. Perante tudo quanto precede, sendo juridicamente inexistente na ordem jurídica portuguesa o casamento que celebrou nos Países Baixos, por força da aplicação da lei portuguesa, que é a lei da sua nacionalidade, importará, contudo, indagar se a outra conclusão chegaríamos em virtude da relevância da sua ligação àquele país revelada pelo seu domicílio no mesmo.
Ou seja, como já deixámos expresso noutro momento (supra § 8), em matéria pertencente à esfera do estatuto pessoal, o legislador português considerou, a par da nacionalidade, o domicílio dos sujeitos de determinada situação plurilocalizada para efeitos de designação do direito aplicável, que regule essa mesma situação.
No presente caso, a circunstância de V. Ex.ª residir, desde …, nos Países Baixos conduz-nos a apurar se e em que medida a situação que expôs deverá ou não ser apreciada, nos seus contornos jurídicos, sob o ponto de vista, já não da lei da sua nacionalidade (a lei portuguesa), mas antes do da lei do seu domicílio (a lei neerlandesa), à luz da qual, justamente, são permitidos os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, daí se retirando as necessárias consequências em termos de reconhecimento desses casamentos na nossa ordem jurídica interna.
Na verdade, o art.º 31.º do CC, depois de determinar que a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo, franqueia, no n.º 2, em derrogação a essa regra, o reconhecimento em Portugal dos «negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente». Inequivocamente, o legislador aflorou aqui o princípio do favor negotii ou da conservação dos negócios jurídicos, numa solução que favorece o reconhecimento de negócios jurídicos, do âmbito do estatuto pessoal dos indivíduos, celebrados no estrangeiro, por força da aplicação de lei diferente da da nacionalidade das partes – justamente, a lei da sua residência habitual (lex domicilii).
Por outras palavras, para que situação jurídica pessoal criada no estrangeiro seja tida como válida (favor validitatis) em Portugal é suficiente que a mesma tenha sido constituída em conformidade com as disposições da residência habitual dos respectivos sujeitos, mesmo ainda que a relação pertença à esfera de competência da lei portuguesa, enquanto lei nacional do interessado, desde que a lex domicilii se considere competente para disciplinar a questão sub judice.
Sem embargo, sempre há que fazer notar que a validade ou eficácia na nossa ordem jurídica de situação decorrente da celebração, no país do domicílio e em conformidade com a lei desse país, de dado negócio jurídico, por esta via se tutelando as expectativas das partes, implica ainda a verificação de uma outra condição: que o reconhecimento do acto não seja contrário à ordem pública internacional do Estado português. Importa, pois, esclarecer em que consiste a chamada excepção de ordem pública internacional.
11. Com esse intuito, chamemos à colação o elucidativo esclarecimento de Ferrer Correia. Nas palavras do emérito Professor, «cada Estado tem naturalmente os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe incumbe proteger. A preservação desses valores e a tutela desses interesses exigem que a todo o acto de atribuição de competência a um ordenamento jurídico estrangeiro vá anexa uma ressalva: a lei definida por competente não será aplicada na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local» (A. Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado I, Coimbra: Livraria Almedina, 2002, p. 406).
A ressalva da ordem pública internacional encontra-se consagrada, entre nós, no art.º 22.º do CC, com a seguinte formulação: «não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português» (n.º 1 daquele preceito); neste caso, determina o n.º 2 serem aplicáveis «as normas mais apropriadas da legislação estrangeira competente ou, subsidiariamente, as regras do direito interno português».
Esta reserva de ordem pública limita, por conseguinte, a aplicação, a determinada factualidade concreta, da lei estrangeira tida como competente segundo as normas de conflitos da ordem jurídica nacional, delineando como que um baluarte intangível desta última. Ora, como nota Baptista Machado, é, justamente, «em matéria do direito de família que mais acusadas são as divergências e particularismos das legislações nacionais. (…) Daí (…) que o direito de família seja o terreno de eleição da reserva de ordem pública» (João Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 4.ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1990, p. 393).
Assim, na situação exposta por V. Ex.ª, aceitar a aplicação da lei neerlandesa atinente ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, para efeitos do reconhecimento em Portugal, como plenamente válido e eficaz, de semelhante casamento, poderá conduzir a um resultado não consentâneo, no momento actual, com a consciência jurídica geral dominante na matéria. Ou seja, de jure constituto, o casamento apresenta-se, no nosso sistema jurídico, como instituto marcado inexoravelmente pela característica da heterossexualidade, pelo que esta concepção ético-jurídica ainda reinante poderá ser mobilizada, por forma a obstaculizar – reiteremo-lo, segundo o direito constituído e ao abrigo da excepção de ordem pública – o reconhecimento em Portugal do casamento, enquanto tal, entre pessoas do mesmo sexo.
Note-se que, o tornar operativa, na situação em apreço, a ressalva da ordem pública, nos termos aventados, não significa de modo algum ajuizar da bondade da solução do direito neerlandês, nem promover activamente as concepções do direito interno ou, sequer, agitar uma compreensão subjectiva de justiça, mas tão-somente verificar a compatibilidade daquela solução, num caso concreto, com concepções fundamentais que estão na base da ordem jurídica portuguesa vigente, em plena consonância com o que a doutrina designa de “concepção aposteriorística” da ordem pública internacional.
Por outro lado, é certo que os conceitos jurídicos não são imutáveis, pelo que semelhante comparação sempre será relativa, na medida em que se encontra espácio-temporalmente condicionada, e, portanto, sempre será susceptível de actualização, em função da evolução dos princípios fundamentais que informam o Estado do foro. Em suma, o que pode ser hoje considerada uma intolerável ofensa a concepções fundamentais que estão na base da ordem jurídica desse Estado, justificando a inaplicabilidade da lei estrangeira designada pela norma de conflitos em determinada situação concreta, pode não o ser amanhã.
Perante tudo quanto precede, face a uma recusa das autoridades portuguesas, fundada na lei portuguesa vigente, em reconhecer, no nosso país, o casamento que contraiu com pessoa do mesmo sexo, recusando a transcrição desse acto para efeitos de registo civil, a mesma pode, em último termo, ser contenciosamente contestada perante os tribunais, aos quais competirá decidir acerca da aplicabilidade ou não da lei indicada pela norma de conflitos como competente para regular a relação jurídica plurilocalizada descrita, de que V. Ex.ª é sujeito, em função da determinação que, no caso concreto sub judice, façam do conceito indeterminado de ordem pública. Presumo, porém, que os tribunais portugueses não decidiriam de forma diferente àquela que referenciei.
12. Sem prejuízo de uma dilucidação, em última instância, pelos tribunais, relativamente à sua pretensão, permito-me, ainda, tecer, neste ponto, a seguinte consideração.
Ainda que em situações, como a que expõe, seja invocada a excepção da ordem pública, esta deverá limitar-se às disposições do direito estrangeiro incompatíveis com os princípios fundamentais do Estado do foro, sendo naquela ordem jurídica que devem em primeira linha ser procuradas outras disposições não lesivas daqueles princípios (cf. o disposto no supracitado art.º 22.º, n.º 2, do CC), solução que salvaguarda o princípio, entre nós vigente, da igualdade ou paridade de tratamento entre a lei do foro e as leis estrangeiras.
Nesta linha de raciocínio, mesmo que a sua comunhão de vida com pessoa do mesmo sexo não seja reconhecida em Portugal como casamento (nomeadamente, para efeitos de alteração do seu estado civil), tal não significa, porém, que, na medida em que tenha sido constituída validamente à luz do direito neerlandês, a mesma não possa produzir quaisquer efeitos jurídicos no nosso ordenamento jurídico, como, por hipótese, efeitos patrimoniais. Neste caso, não estará em causa o reconhecimento directo do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas tão-somente o reconhecimento, na nossa ordem jurídica, de um concreto efeito jurídico decorrente da celebração, no estrangeiro, daquele casamento, sempre, porém, com a ressalva dos limites da ordem pública internacional portuguesa, ou seja, na medida em que o efeito jurídico a tutelar seja ainda admissível à luz das concepções ético-jurídicas fundamentais que estruturam o nosso sistema de direito.
13. Chegados aqui, não gostaria de esgotar a abordagem da questão em análise sem antes, e numa tentativa de equacionar outras vias argumentativas, perspectivar a situação exposta, partindo da seguinte interrogação: constituirá ou não o reconhecimento em Portugal, por força da operatividade da excepção da ordem pública do DIP, nos termos expostos, de um casamento entre pessoas do mesmo sexo, validamente celebrado no estrangeiro um resultado legítimo à luz das normas constitucionais respeitantes aos direitos fundamentais, bem como das normas internacionais sobre direitos humanos que vinculam o Estado português? Por outras palavras, mantendo o legislador português a heterossexualidade como condição sine qua non da própria existência do casamento, cumpre indagar se esta é uma solução consentânea com os standards contemporâneos de protecção da dignidade da pessoa humana.
Esta análise sob o ponto de vista do respeito dos direitos humanos é tanto mais relevante quanto é certo que o “corpus iuris” composto pela normas consagradoras desses direitos, pelo seu significado material fundamentante, se impõe, ele próprio, ao aplicador do Direito, mesmo quando invoca a ressalva de ordem pública internacional.
14. No que tange à protecção constitucional dos direitos fundamentais, releva, desde logo, o disposto no art.º 36.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), preceito que consagra, no seu n.º 1, o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade, remetendo, no seu n.º 2, para a lei civil a disciplina jurídica do casamento, no que toca aos seus requisitos, efeitos e dissolução, independentemente da forma de celebração.
Nestes termos, o legislador constituinte, ainda que garantindo a todos, em condições de igualdade, o direito de contrair casamento, admitiu que o mesmo ficasse «subordinado a limites» (assim J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 3.ª ed. revista, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 221), aspecto que se relaciona com a definição pelo legislador ordinário dos respectivos requisitos, para o que dispõe de liberdade de conformação, a exercer sempre dentro dos limites constitucionais.
Os mesmos constitucionalistas, no seu comentário de 1993 à Constituição portuguesa, afirmam ainda, em relação ao art.º 36.º, o seguinte: «fora do programa normativo directo deste preceito afiguram-se estar (…) as uniões homossexuais. Seguramente que basta o princípio do Estado de direito democrático e o princípio da liberdade e autonomia pessoal que lhe vai naturalmente associado para garantir o direito individual de cada pessoa a estabelecer vida em comum com qualquer parceiro da sua escolha. Mas uma coisa é a sua protecção ao nível da liberdade e da autonomia individual, outra coisa é o seu reconhecimento e garantia específica a título de direito à constituição de família ou de celebração de casamento» (id., ibid., p. 223).
Independentemente da posição que se perfilhe quanto à questão de saber se a união de facto, tutelada pela legislação portuguesa, cai no âmbito de protecção do direito a constituir família (na doutrina portuguesa, em sentido positivo e no quadro legislativo existente no início da década de 90, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira (op. cit., p. 220); em sentido negativo, mas sem deixar de qualificar como parafamiliares as relações que decorremda união de facto, v. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso…, cit., pp. 87-91 e138-143); encarando as uniões de facto heterossexuais, mas já não as homossexuais, como forma de constituir família, v. França Pitão (Uniões de Facto e Economia Comum, Coimbra: Livraria Almedina, 2002, v.g. a pp. 26, 56 e 71)), independentemente dessa questão, dizia, dúvidas parecem não existir quanto à interpretação do art.º 36.º da CRP no sentido de não impor, de per si, a abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo.
Neste mesmo sentido, aliás, apontam os pertinentes instrumentos internacionais sobre direitos humanos.
15. Com efeito, em sede de protecção internacional dos direitos humanos, merece destaque o sistema instituído no seio do Conselho da Europa, com especial referência à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950 – abreviadamente, Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) -, em que Portugal é parte, estando, por conseguinte, internacionalmente vinculado pelas obrigações que da mesma decorrem, além de que essa convenção internacional faz parte integrante da ordem jurídica interna, por força do art.º 8.º, n.º 2, da CRP.
Na redacção do art.º 12.º da CEDH, «a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar-se e de constituir família, segundo as leis nacionais que regem o exercício deste direito».
Ainda que a letra da presente norma aponte para a característica da heteressexualidade do casamento – o que, aliás, tem sido confirmado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) -, o elemento que se nos afigura verdadeiramente decisivo, com vista a aferir o respeito pelas obrigações decorrentes da CEDH, é o da margem ainda concedida aos Estados nesta matéria e as limitações que, sem atingir o direito em causa no seu “núcleo essencial”, os direitos internos possam impor ao seu exercício. Nas palavras dos juízes de Estrasburgo, «o exercício do direito a casar acarreta consequências sociais, pessoais e jurídicas. Ele obedece às leis nacionais dos Estados contratantes, mas as limitações daí resultantes não o devem restringir ou reduzir de uma maneira ou num grau que o afectem na sua própria substância» (v., na jurisprudência mais recente do TEDH, Christine Goodwin v. Reino Unido, Acórdão de 11 de Julho de 2002, § 99, e acórdãos aí citados).
Neste contexto, e com relevo para a delimitação do âmbito de protecção das normas recortadas no art.º 12.º da CEDH, atendendo, especificamente, ao que seja o reduto inviolável do direito a contrair casamento, o TEDH começou por firmar jurisprudência no sentido de que o impedimento jurídico relativo a casamento entre pessoas que não são do sexo biológico oposto não contende com a essência do direito reconhecido no art.º 12.º da CEDH, conclusão que procedia do raciocínio segundo o qual o direito em apreço visava o casamento tradicional entre pessoas de sexo biológico diferente (cf. Rees v. Reino Unido, Acórdão de 17 de Outubro de 1986, §§ 49-50). Ou seja, e na leitura que Ireneu Cabral Barreto faz deste Acórdão, «os Estados podem proibir os casamentos de homossexuais» (Ireneu Cabral Barreto, A Convenção dos Direitos do Homem: Anotada, 2.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 220).
Mais recentemente, no já célebre acórdão Goodwin – e estando aqui em debate, tal como no caso Rees, acabado de citar, a situação de uma pessoa transexual que pretende casar com pessoa de sexo oposto àquele que resultou da sua operação de conversão sexual, inexistindo reconhecimento jurídico da sua nova identidade sexual – o TEDH, depois de afirmar que o art.º 12.º da CEDH garante «o direito fundamental, para um homem e uma mulher, de casar-se e de constituir família» (sem que o segundo aspecto seja uma condição do primeiro, note-se) e de reiterar que o direito a casar obedece às leis nacionais dos Estados partes na CEDH, com salvaguarda da sua própria “substância” (Christine Goodwin v. Reino Unido, cit., §§ 98 e 99), o que o TEDH veio reconhecer foi não estar convencido de que os termos “homem” e “mulher”, no preceito em questão, «impliquem que o sexo deva ser determinado de acordo com critérios estritamente biológicos» (id., § 100). Com efeito, continua o TEDH, «depois da adopção da Convenção [CEDH], a instituição do casamento foi profundamente alterada pela evolução da sociedade, e os progressos da medicina e da ciência conduziram a alterações radicais no domínio da transexualidade» (id., ibid.). Em face destas considerações, o Tribunal de Estrasburgo concluiu não considerar justificado que as pessoas transexuais sejam privadas, em todas as circunstâncias, do direito a casar, na medida em que a lei nacional considere, para efeitos do casamento, o sexo registado à nascença.
Sem pretender obnubilar o significado desta inflexão na jurisprudência do TEDH e do seu potencial para arvorar eventuais futuras evoluções na interpretação do art.º 12.º da CEDH – maxime, através da consideração que o TEDH venha a tomar dos efeitos da evolução da sociedade na instituição do casamento -, há que, contudo, situá-la, no presente, no seu preciso sentido.
No fundo, o que deflui do caso Goodwin é a abertura ao reconhecimento do direito de pessoa transexual, após operação de conversão do seu sexo, a casar com pessoa de sexo cromossomaticamente (i.e. o sexo biológico, determinado à nascença) idêntico mas distinto do sexo pós-conversão da pessoa transexual. Por outras palavras, apenas fundou, por ora, uma concepção mais abrangente para efeitos de definição do sexo de dada pessoa, não a cingindo a critérios puramente biológicos, por forma a contornar a impossibilidade de duas pessoas do mesmo sexo biológico casarem, quando é certo que uma delas, sendo transexual pós-conversão sexual, afigura-se como tendo sexo diferente, juridicamente não reconhecido, do(a) parceiro(a).
Ou seja, fora da questão específica das pessoas transexuais, nada nesse acórdão permite concluir que o não reconhecimento, pelos Estados partes, do direito de uma pessoa a casar com outra do mesmo sexo constitua uma violação da CEDH e, mais concretamente, do seu art.º 12.º. Aliás, registe-se que, na mesma altura em que o acórdão Goodwin era proferido, o Comité dos Direitos do Homem (instituído no seio da ONU, ao abrigo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 (PIDCP), em que Portugal é também parte) sustentava, no caso Joslin, que a negação, pelo direito neozelandês, de autorização de casamento civil a duas pessoas do mesmo sexo não constituía violação do PIDCP (cf. Comité dos Direitos do Homem, Joslin et al. v. Nova Zelândia (Comunicação N.º 902/1999), 30 de Julho de 2002, Doc. NU CCPR/C/75/D/902/1999 (2002)).
16. Não colhendo a obrigatoriedade de abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo arrimo na protecção conferida, no momento presente, pela CEDH e pelo respectivo órgão de controlo, não será despiciendo esgotar uma outra via argumentativa, atinente aos standards de protecção, em matéria de casamento, no quadro da UE.
Como organização supranacional, a UE consubstancia, maxime através da Comunidade Europeia (CE), o exercício em comum dos poderes necessários ao processo de integração europeia. Neste quadro, os Estados-Membros consentem na limitação da sua soberania e na correspondente transferência de poderes para a esfera da União. Não obstante, não é forçoso que tal restrição de soberania opere em todos os domínios de actividade. Na verdade, a UE não dispõe, formalmente, de uma competência no domínio da regulação das relações jurídicas familiares e do estado civil das pessoas, matérias que permanecem essencialmente na esfera da competência dos Estados-Membros.
Afirmar isto, contudo, não significa que a ordem jurídica da UE permaneça imune a dimensões que relevam do direito da família ou que a mesma não tenha refracções em semelhante domínio. Desde logo, as relações jurídicas familiares dos cidadãos da União interessam ao direito comunitário, nomeadamente, no que respeita à livre circulação desses cidadãos e dos membros da suas famílias, ou ainda em matéria de emprego e da função pública comunitária.
Tendo como destinatários as instituições e órgãos da UE, assim como os Estados-Membros quando apliquem o direito da União, a solenemente proclamada em 7 de Dezembro de 2000, sem carácter jurídico-formal vinculativo, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a Carta, de agora em diante) incluiu disposição – o art.º 9.º – nos termos da qual «o direito de contrair casamento e o direito de constituir família são garantidos pelas legislações nacionais que regem o respectivo exercício».
Esta disposição confirma, pois – na linha, aliás, da CEDH, em cujo correspondente preceito se baseia -, a reserva das legislações internas em relação à conformação dos termos em que aqueles direitos podem ser exercidos. A eliminação no citado preceito da Carta, e ainda em cotejo com o art.º 12.º da CEDH, da expressão “o homem e a mulher” parece-nos consentânea com a evolução jurídica-normativa que cada Estado-Membro da UE entenda dever prosseguir nesta matéria (consubstanciada, inclusive, como nos casos da Bélgica e dos Países Baixos, na abertura do casamento civil a pessoas do mesmo sexo), sem significar, contudo, uma vez mais, a imposição para os Estados de uma definição do casamento que contemple necessariamente a situação de uma comunhão não heterossexual.
Esta mesma percepção é corroborada pelas Anotações à Carta, da responsabilidade do Præsidium (Comité de Redacção respectivo), porquanto aí se clarifica – sem pretensão de juridicidade, é certo, mas com irrecusável valor hermenêutico – ter a redacção do art.º 9.º sido «modernizada de modo a abranger os casos em que as legislações nacionais reconhecem outras formas de constituir família além do casamento», em seguida se esclarecendo que o mesmo preceito «não proíbe nem impõe a concessão do estatuto de casamento a uniões entre pessoas do mesmo sexo» (Conselho da União Europeia, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: Anotações relativas ao texto integral da Carta, Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 2001, p. 27).
Neste contexto, mesmo à luz do mais moderno catálogo internacional de direitos fundamentais, continuam a relevar as soluções legislativas plasmadas ao nível das ordens jurídicas internas, mais uma vez se deixando margem de conformação ao legislador nacional, muito especialmente em relação ao estatuto jurídico que se confira às formas de comunhão entre pessoas do mesmo sexo, matéria que permanece, por conseguinte, inserta na esfera da reserva de soberania dos Estados-Membros da UE, continuando as leis nacionais a ser a fonte de direito na matéria.
Afirmar o que procede não significa negar que a relevância jurídica da plena comunhão de vida entre pessoas do mesmo sexo possa evidenciar-se em domínios clássicos do direito da UE, alguns dos quais supra mencionados.
Assim, por exemplo, em sede de protecção social no quadro da função pública comunitária, a Comissão Europeia, perante a alteração do Código Civil neerlandês, permitindo a celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo, logo manifestou que o casamento de um funcionário comunitário reconhecido por aquele Código seria tratado de igual forma que qualquer outro casamento reconhecido num Estado-Membro (cf. Resposta da Comissão à Pergunta Escrita E-3261/01 apresentada por Joke Swiebel (PSE), sobre a abertura do matrimónio civil e da adopção nos Países Baixos a pessoas do mesmo sexo, disponível em <http://europa.eu.int/eur-lex>). Esta solução não é difícil de compreender, porquanto a mesma, respeitando a domínio que se esgota na esfera comunitária, não tem implicações nas legislações internas dos restantes Estados-Membros.
Já não assim no debate em curso, no quadro do procedimento legislativo comunitário sobre o direito à livre circulação e residência dos cidadãos da União e membros das suas famílias – cf. Proposta alterada de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao direito à livre circulação e residência dos cidadãos da União e membros das suas famílias no território dos Estados-Membros (COM(2003) 199final, 15 de Abril de 2003). Com efeito, tendo o Parlamento Europeu proposto alterações no preceito que define as pessoas que são consideradas como membros da família para efeitos daquela directiva, no sentido, nomeadamente, de ser reconhecido como membro da família o cônjuge do mesmo sexo ao mesmo título que o cônjuge de sexo diferente, entendeu a Comissão não poder aceitar tal alteração.A justificação invocada residiu na consideração de que «a harmonização das condições de residência dos cidadãos da União nos Estados-Membros de que não têm a nacionalidade não pode implicar a imposição, a certos Estados-Membros, de alterações legislativas que tenham repercussões no direito de família, domínio em que a Comunidade não dispõe de competência legislativa» (COM(2003) 199final, cit., p. 3). E mais adiante, acrescentou: «no que diz respeito ao casamento, a Comissão não pretende adoptar uma definição do termo cônjuge que introduza uma referência expressa ao cônjuge do mesmo sexo. Por enquanto, só dois Estados-Membros prevêem na sua legislação o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, o Tribunal de Justiça indicou na sua jurisprudência [D e Reino da Suécia v. Conselho, Acórdão de 31 de Maio de 2001] que o termo casamento, segundo a definição comummente aceite pelos Estados-Membros, designa uma união entre pessoas de sexo diferente. O Tribunal de Justiça declarou também que uma interpretação de noções jurídicas baseada na evolução da sociedade e com consequências em todos os Estados-Membros deve fazer-se através de um exame da situação em toda a Comunidade [Reed, Acórdão de 17 de Abril de 1986]. Por conseguinte, a Comissão prefere limitar a proposta a uma noção de cônjuge que se entenda, em princípio, como cônjuge de sexo diferente, salvo evolução futura» (id., p. 11). Por último, a Comissão advertiu que «o reconhecimento de direitos que não são reconhecidos aos nacionais a casais provenientes de outros Estados-Membros poderia criar situações de discriminação invertida, que a Comissão pretende evitar» (ibid.).
Em suma, sejam quais forem as soluções normativas que o direito da UE venha a contemplar na matéria, a actuação do Provedor de Justiça fica reservada aos casos em que o Estado português seja chamado a aplicar o direito comunitário, hipótese que, ainda assim, não se recorta no objecto da presente queixa, na parte atinente à pretensão de alteração do seu estado civil, por força do casamento que celebrou no estrangeiro com pessoa do mesmo sexo.
17. Por último, não se perde igualmente de vista que a evolução normativa recente, no plano do direito internacional e em termos de direito comparado, incluindo na ordem jurídica portuguesa, atesta a tendência para a orientação sexual relevar para efeitos da igualdade de tratamento, designadamente pela via da sua consagração expressa como factor ilegítimo de discriminação, como ocorre, em termos marcantes, no quadro da UE, dentro dos limites das competências que lhe estão conferidas (cf. art.º 13.º do Tratado CE e art.º 21.º, n.º 1, da supracitada Carta).
Assim, no que toca à CEDH, não obstante a orientação sexual não estar explicitamente mencionada no seu art.º 14.º, nem no art.º 1.º do Protocolo N.º 12 à mesma Convenção, de 4 de Novembro de 2000 (1), para além de não ser exaustiva a enumeração dos motivos de discriminação ilegítimos constantes, em termos idênticos, de ambos os preceitos, o próprio TEDH teve já a oportunidade de explicitar que a noção de orientação sexual está indubitavelmente coberta pelo art.º 14.º da CEDH (cf. Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal, Acórdão de 21 de Dezembro de 1999, § 28). Em todo o caso, tal factor não relevou ainda na jurisprudência do TEDH em sede de protecção da vida familiar de um indivíduo por forma a ser-lhe reconhecido o direito a casar com pessoa do mesmo sexo.
Também a ordem jurídico-constitucional consagra expressamente, no art.º 13.º, n.º 2, da CRP, a proibição de discriminação, contendo igualmente um elenco não taxativo de motivos ilícitos de diferenciação, abertura esta consentânea com a consideração, neste plano, de outros tantos motivos, entre os quais a orientação sexual. Importante é, contudo, reter que o princípio da igualdade não expressa uma obrigação de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento, desde que não arbitrárias, entendimento este bem sedimentado pela doutrina e jurisprudência constitucionais.
Neste contexto, o que se me afigura verdadeiramente decisivo é que as relações de plena convivência entre indivíduos do mesmo sexo não permaneçam à margem do Direito, merecendo deste a tutela adequada. No momento presente, essa tutela jurídica passa por formas distintas, mais ou menos oficializadas, consoante os países. Elencámos já, noutra ocasião, distintos modos de regulação jurídica das relações em causa em países que integram a UE (cf. supra § 5), pelo que, perante essa realidade incontornável, pareça prejudicado o argumento de que a heterossexualidade constitua, neste plano e no presente, o único referente social juridicamente “encorajado” (semelhante argumento é, por exemplo, agitado, em França, pelo académico Daniel Borrillo, in «Pluralisme conjugal ou hiérarchie des sexualités: la reconnaissance juridique des couples homosexuels dans l’Union européenne», McGill Law Journal, Vol.46 (2001), p. 875).
Aliás, na sua Resolução sobre a igualdade de direitos dos homens e mulheres homossexuais na Comunidade Europeia (A3-0028/94), de 8 de Fevereiro de 1994, o Parlamento Europeu, ao instar a Comissão a apresentar um projecto de recomendação naquela matéria, não concebeu a abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo como a única via de pôr termo ao que considerava ser uma discriminação dos pares homossexuais, ao entender que tal recomendação deveria procurar pôr termo à «exclusão de pares homossexuais da instituição do casamento ou de um enquadramento jurídico equivalente, devendo igualmente salvaguardar todos os direitos e benefícios do casamento, incluindo a possibilidade de registo de uniões» (§ 14 da resolução, sublinhado nosso).
18. Em suma, de tudo quanto ficou expresso, a principal conclusão a retirar é a de que estamos a assistir a um processo lento de mudança.
A abertura do casamento civil a pessoas do mesmo sexo constitui uma opção ainda geograficamente bem localizada, em domínio sensível a diferentes concepções jurídicas e sociais, que são também o húmus do próprio Direito. É indubitável que na esmagadora maioria dos sistemas jurídicos perpassa ainda a noção de que o casamento é um acordo entre um homem e uma mulher, apresentando-se, pois, a heteressexualidade como requisito de validade, senão mesmo de existência, do casamento nas respectivas legislações.
É certa, porém, tal como os cultores do direito da família não deixam de sublinhar, a permeabilidade deste ramo do jurídico às mutações na sociedade. Aliás, a evolução, nas últimas décadas, do direito da família português, no que especificamente respeita à matéria do casamento, atesta bem essa permeabilidade e capacidade de adaptação. Assim sendo, o sentimento jurídico dominante em determinado momento, assim como as opções que prevaleçam num dado Estado, estando intrinsecamente associadas a determinada conjuntura social, política, económica e cultural, estão em permanente evolução, acompanhando o desenvolvimento dessa mesma conjuntura.
Acresce que assistimos à intensificação da mobilidade de pessoas no plano internacional – e, desde logo, no espaço da UE, que se afirma como um espaço de liberdade -, o que, por seu turno, favorece o estabelecimento de relações pessoais conectadas com várias ordens jurídicas, cuja variedade se relaciona decisivamente com a evolução acima apontada, em termos de direito comparado, da regulação de uma relação de convivência afectiva entre duas pessoas, incluindo entre pessoas do mesmo sexo.
Na esfera comunitária, onde a questão se coloca de uma forma mais premente, o Parlamento Europeu tem estado particularmente atento à questão. Com efeito, na sua Resolução sobre o respeito pelos direitos humanos na União Europeia (1998-1999) (A5-0050/2000), de 16 de Março de 2000, afirmou entender «ser necessário conseguir rapidamente progressos quanto ao reconhecimento mútuo na UE [das] diversas formas legais de uniões de facto e de matrimónios legais entre pessoas do mesmo sexo» (§ 57 da Resolução), e, mais recentemente, na sua Resolução sobre a situação dos direitos fundamentais na União Europeia (2001) (A5-0451/2002), de 15 de Janeiro de 2003, exortou «a União Europeia a inscrever na agenda política o reconhecimento mútuo de uniões não conjugais e a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como a elaborar propostas específicas nessa matéria» (§ 103 da Resolução).
A solução desta questão no espaço da UE – dimensão em que entroncam, a final, as preocupações manifestadas por V. Ex.ª -, nos termos equacionados pelo Parlamento Europeu, representa, no momento, uma opção política, que, como tal, escapa de todo à esfera de actuação do Provedor de Justiça. Sempre creio, todavia, que esta é uma questão que exigirá reflexão, debate público e consenso alargado no seio das nossas sociedades.
19. Tendo partilhado com V. Ex.ª os aspectos que julgo pertinentes na análise da situação exposta, na perspectiva deste órgão do Estado, mais informo que determinei o arquivamento do respectivo processo, por não ser possível ao Provedor de Justiça, no caso, qualquer intervenção.
(1) Este Protocolo não entrou ainda em vigor.
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