RECOMENDAÇÃO N.º 2/A/05 (Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)
Entidade visada: Presidente Conselho Directivo do Instituto da Segurança Social, IP |
Procº: R-3381/03 |
Data: 2005/03/18 |
Assunto: Lar de Idosos … |
Área: A4 |
I. INTRODUÇÃO
1. Em 23.09.2003, foi aberto o presente processo na Provedoria de Justiça em virtude de uma reclamação apresentada contra a expulsão de um utente (o Senhor… do Lar de Idosos (LI)), alegadamente com base na circunstância de ele ser portador de VIH/SIDA.
2. Importando ter presentes os factos computados no decurso da instrução, começo por sumariar os principais acontecimentos (1) , nos seguintes termos:
2.1. O Senhor… foi acolhido no LI (e não no … como, erradamente, era dito no texto da reclamação) em 23 de Julho e saiu em 1 de Agosto de 2003. No dia 2 de Agosto de 2003, deu entrada no Hospital…, onde viria a falecer em Outubro do mesmo ano;
2.2. O LI em causa não tinha acordo de cooperação com a segurança social e funcionava ilegalmente, na medida em que não possuía nem autorização provisória nem, tão pouco, alvará de funcionamento, nos termos previstos nas disposições do Decreto-Lei nº 133-A/97, de 30 de Maio;
2.3. O utente havia sido inscrito no LI por um sobrinho que não prestou qualquer informação sobre o estado de saúde do Senhor…, até porque, naquela data, desconhecia a doença do tio e dela só teve conhecimento quando foi chamado para o retirar do Lar;
2.4. Assim, no momento da institucionalização, também nenhuma informação foi dada sobre a medicação que o utente deveria tomar;
2.5. Por outro lado, uma vez que não se fazia acompanhar do relatório clínico do Senhor…, o familiar que o acompanhou terá ficado de fazer a entrega, posteriormente, o que veio a acontecer apenas no dia 31 de Julho. Por aquela razão, o médico da instituição apenas tomou conhecimento da situação clínica do utente no 1 de Agosto e, até aquela data, o Lar não facultou ao utente os cuidados médicos especiais de que ele carecia, porque desconhecia, em absoluto, o seu estado de saúde (contudo, como se veio a verificar, no dia 2 de Agosto, o Senhor… necessitava, efectivamente, de cuidados médicos especiais, tendo ficado internado no Hospital…);
2.6. Quando teve conhecimento da doença do interessado, o médico do estabelecimento terá dado instruções a uma voluntária, a Senhora D…., para que fossem tomadas precauções relativamente ao facto do Senhor… padecer de uma doença infecto-contagiosa, ainda que nunca tenha revelado a natureza da doença do interessado;
2.7. À revelia do médico, e do próprio utente, a Senhora D…. terá consultado o processo clínico do interessado;
2.8. Depois, e ainda por sua exclusiva iniciativa, a mesma Senhora D…. iniciou diligências tendentes a entregar o interessado à respectiva família (o que veio a acontecer), por entender que o LI não tinha condições para acolher um doente com aquele tipo de patologia;
2.9. Quando, mais tarde, o Presidente da…, Senhor…, teve conhecimento da atitude da Senhora D…., manifestou plena concordância pelo que, nem o comportamento de consulta do documento médico, nem a decisão de afastar o utente do estabelecimento nem, tão pouco, a divulgação das informações reservadas contidas no processo clínico, sofreram qualquer censura. |
II. EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
3. O Decreto-Lei nº 133-A/97, de 30 de Maio, que disciplina o regime de licenciamento e de fiscalização dos estabelecimentos em que são exercidos serviços de apoio social do âmbito da segurança social dispõe, na alínea a) do respectivo artigo 3º, sobre a não aplicação do diploma aos estabelecimentos das instituições particulares de solidariedade social (IPSS) em relação aos quais hajam sido celebrados acordos de cooperação. Ora, uma vez que, como foi já aflorado, o LI não tinha celebrado qualquer acordo de cooperação com a segurança social, conclui-se, até por um juízo a contrario , que ele estava submetido ao âmbito da aplicação do Decreto-Lei nº 133-A/97, designadamente na parte relativa ao licenciamento e à fiscalização da prestação de serviços.
4. Assim sendo, eram-lhe aplicáveis, do mesmo passo, as Normas Reguladoras das Condições de Instalação e Funcionamento dos LI, aprovadas, ao abrigo do disposto no artigo 46º do Decreto-Lei nº 133-A/97 (2) , em anexo ao despacho normativo nº 12/98, de 25 de Fevereiro.
5. No que concerne, em especial, às situações que são objecto do presente processo, deve atender-se ao disposto no Norma X (3) , que regula as matérias da higiene e dos cuidados de saúde nos estabelecimentos de acolhimento de idosos, e que prevê:
5.1. Por um lado, que no acto de admissão deve ser exigido um atestado comprovativo de que o idoso a institucionalizar não sofre de doença infecto-contagiosa ou mental aguda ou, quando exista um passado clínico, um relatório médico; e,
5.2. Por outro lado, que, relativamente ao processo individual de saúde de cada utente, a possibilidade de consulta está confinada ao pessoal médico e de enfermagem. |
6. Para a primeira injunção, e quanto à comprovação da inexistência de patologias associadas a doenças infecto-contagiosas, não será despiciendo o perigo de contágio, para a saúde dos outros idosos e para a saúde pública, em geral, potenciado pelas características próprias da vida em instituição de acolhimento. Já quanto às doenças mentais agudas, as preocupações são semelhantes, mas já não estarão associadas ao perigo de contágio mas resultarão do desajustamento da solução de internamento em LI.
7. Sobre a 1ª parte do nº 5 da Norma X, refira-se que a utilização da expressão “ no acto de admissão do idoso pode ser exigido um atestado comprovativo (…) e (…) um relatório médico” não deve indiciar que o Legislador remeteu para o livre critério das direcções dos LI a escolha dos documentos que devem ser exigidos para a organização dos processo de acolhimento mas, diferentemente, que pretendeu permitir a exigência daqueles documentos de carácter íntimo e reservado, em função da necessidade de assegurar a saúde dos demais idosos acolhidos.
8. Até por denotar aquela particular preocupação, intui-se que, em alternativa à imediata entrega de exames , o acolhimento pode ser precedido de consulta, levada a cabo pelo médico do estabelecimento, eventualmente até com recurso aos exames complementares de diagnóstico cuja realização o clínico entender serem convenientes.
9. Quanto à liberdade conferida aos médicos para solicitar a realização de análises, pode trazer-se à colação o parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas, da Ordem dos Médicos, colhido em outro processo tratado na Provedoria de Justiça (R-177/03), transcrevendo, parcialmente, o respectivo teor:
“(…)
No âmbito [do] exame médico o clínico é livre de solicitar as análises que entenda necessárias para o seu juízo médico. Tem, no entanto, de informar [o interessado] das análises que vai mandar fazer e das consequências às quais o resultado pode conduzir, se a pessoa interessada der o seu consentimento, depois de informada, estão cumpridas as exigências éticas e deontológicas (e as disposições do Código Penal pertinentes na matéria).
(…)” |
10. De qualquer modo, não pode aceitar-se que, ao mesmo tempo, não se realize a consulta médica e, também, não se exija a entrega de relatório médico actualizado, uma vez que esta dúplice dispensa descura, em absoluto, a preocupação de evitar o perigo de contágio para a saúde dos outros idosos, e para a saúde pública, em geral.
11. No caso em apreço, porém, verificou-se que, não obstante o utente não ter sido submetido a consulta logo no acto de acolhimento, nem ter feito logo a entrega do relatório médico, também não foram suprimidas as obrigações de comprovação do estado clínico do idoso. De facto, o que aconteceu foi que a obrigação de entrega do documento médico acabou convertida em uma modalidade de autorização de entrega cum potuerit (o familiar entregaria o relatório logo que lhe fosse possível obtê-lo), tendo aquela facilidade sido decidida por quem não tinha legitimidade para o fazer, uma vez que foi determinada por uma pessoa sem habilitações médicas.
12. A consequência, como se veio a verificar, foi a institucionalização de um indivíduo sem a prévia comprovação da inexistência de doença infecto-contagiosa. Contudo, devo esclarecer, para que não subsistam quaisquer dúvidas, que a relevância desta circunstância em nada está ligada ao facto do utente em questão ser portador de VIH, uma vez que, como é consabido, todas as evidências científicas esclarecem que inexistem justificações para o impedimento ou para a limitação do acolhimento de pessoas infectadas pelo vírus da Imunodeficiência Humana.
13. A questão da consulta do processo clínico do interessado por pessoa não autorizada justifica mais alguns comentários, ainda que o facto de os crimes contra a reserva da vida privada serem crimes semi-públicos e, com tal, dependerem de queixa, nos termos do disposto no artigo 198º do Código Penal (CP), desmotivarem demoras excessivas nas eventuais implicações penais. Ainda assim, não devo deixar sem referência o crime de devassa da vida privada , p.p. no artigo 192º do CP, porquanto o que a Senhora D…. foi “ divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa ”.
14. Detenho-me, então, no inultrapassável respeito pelo right to privacy (4) , aqui na sua vertente predominantemente médica, até porque, como vimos, a consulta do processo individual de saúde dos utentes não é livre, nem sequer para os respectivos familiares ou representantes, e deve submeter-se, sempre, ao critério do médico. Com efeito, como refere COSTA ANDRADE (5) , se a lei portuguesa presta homenagem à chamada teoria dos três degraus ou das três esferas , estamos aqui no âmbito da verdadeira esfera de intimidade (que é bem mais restrita que a área da publicidade ou a esfera da privacidade stricto sensu ).
15. Por esta razões, devo frisar a gravidade da atitude de devassar o processo clínico do interessado e, bem assim, a necessidade de serem tomadas medidas tendentes a impedir, em absoluto e definitivamente, que tais situações se possam repetir no LI em questão.
16. Abordados, ainda que sucintamente, os assuntos ligados, por um lado, às preocupações médico-sanitárias inerentes ao acolhimento dos utentes em instituições e, por outro, ao respeito pela intimidade e vida privada dos idosos, chego à questão da actuação do Instituto da Segurança Social, IP (ISS,IP) em face do funcionamento ilegal do LI e à luz do disposto no nº 1 do artigo 29º, do Código do Procedimento Administrativo (6) (CPA) e, bem assim, dos demais princípios constitucionais relativos à Administração Pública, que vêm enunciados no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição (CRP). Com efeito, estes últimos, pese embora terem um domínio primacial de aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários (introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei), não esgotam aí a sua aplicabilidade, e estendem-se, também, ao domínio dos poderes vinculados.
17. No caso em apreço, como é bom de ver, não só não existem evidências de que se esteja no campo de aplicação privilegiado do domínio do poder discricionário (por não haver, de facto, margem de livre apreciação da administração) como não parece, sequer, que o caso se situe na chamada discricionariedade técnica ou no preenchimento de conceitos indeterminados. Ao contrário, atendendo ao disposto no artigo 43º (7) , do Decreto-Lei nº 133-A/97, a instauração de um processo de contra-ordenação constituía um poder vinculado do ISS, IP (8) , logo que foi verificado que o LI… funcionava sem licença e incumpria diversos outros requisitos materiais e formais, até porque, complementarmente, os artigos 30º (9) e 36º (10) concretizam que a abertura ou o funcionamento de estabelecimento não licenciado constitui contra-ordenação passível de coima a aplicar pelo centro regional territorialmente competente.
18. Além do mais, importa chamar a atenção para a circunstância das condições mínimas de funcionamento de um estabelecimento onde são desenvolvidas actividades de apoio social a pessoas idosas, nomeadamente, facultando o alojamento, fornecendo a alimentação, prestando cuidados de saúde e de higiene, ou proporcionando a ocupação dos tempos livres através de actividades de animação social e outras consideradas indispensáveis, não estarem cumpridas. De facto, na parte específica da organização e regulação interna, falhava, desde logo, o regulamento interno, a celebração de contratos escritos (e a explicitação dos serviços compreendidos e excluídos) e a manutenção dos processos individuais dos utentes; quanto às comparticipações os utentes, não era respeitada a fórmula de apuramento do rendimento relevante; sobre o pessoal, notou-se a inexistência de direcção técnica e o desconhecimento do quadro de pessoal.
19. Em face destes elementos, esperar-se-ia que, sem delongas, o ISS tivesse determinado a instauração de procedimento contra-ordenacional, uma vez que todos os aspectos particulares descritos na informação nº 33/02, de 21.05.02, do Centro Distrital de Beja (11) , correspondiam a parâmetros que estavam integralmente determinados na lei.
20. Aliás, atrevo-me a considerar que as notórias dificuldades sentidas no processo de legalização do estabelecimento, designadamente por deficiente colaboração da … podiam ter sido obviadas caso a Administração tivesse, desde logo, actuado como a lei estipula.
21. Acrescente-se, ainda, que, de acordo com a informação nº 11, de 17.04.2002, do Departamento de Fiscalização dos Serviços Regionais do Alentejo, a lotação do LI abrangia 75 idosos, facto que contrariava a norma nos termos da qual a capacidade dos lares não pode exceder 40 pessoas, apenas se admitindo que, em casos excepcionais, devidamente justificados e avaliados, possa atingir os 60.
III. CONCLUSÕES
22. Em face do que fica dito, e sumariando, são três as situações que me motivam na formulação da presente Recomendação, a saber:
22.1. Em primeiro lugar, a circunstância do funcionamento ilegal do LI ser um facto conhecido da Administração, devidamente sinalizado, pelo menos, desde 7.3.2002 (12) , sem que, contudo, tenha sido ponderada a instauração do competente procedimento contra-ordenacional;
22.2. Depois, o facto de ter sido institucionalizado um utente sem o prévio conhecimento do respectivo processo clínico, circunstância que denota, para além de novo incumprimento dos procedimentos legais, desorganização e alguma injustificada irreflexão e descuido, designadamente em face da necessidade de resguardo da saúde dos demais idosos acolhidos;
23.3. Finalmente, a questão, que reputo de muito grave (e que a lei qualifica como crime), da consulta do processo clínico, à revelia do visado/interessado e do próprio médico do LI, por parte de um pessoa, que não era sequer trabalhadora da instituição, e da posterior divulgação do respectivo conteúdo. |
IV. RECOMENDAÇÕES
24. Em face do que deixei exposto e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO, a V.Exa., Senhor Presidente do Conselho Directivo do Instituto da Segurança Social, IP, que:
Sejam divulgadas orientações aos serviços do Instituto e, em especial, aos Departamentos de Fiscalização e aos Centros Distritais da Segurança Social, no sentido de que
A) No exercício das competências fiscalizadoras previstas no artigo 43º do Decreto-Lei nº 133-A/97, de 30 de Maio, sejam desencadeados os pertinentes procedimentos de contra-ordenação sempre que, como na situação objecto do presente processo, a sua promoção constitua um poder vinculado da Administração, designadamente por corresponder à verificação objectiva de uma situação de funcionamento ilegal de um LI;
B) Naquelas situações, os Departamentos de Fiscalização e os Centros Distritais de Segurança Social apurem, logo, se os estabelecimentos são, ou não, susceptíveis de legalização;
C) Em caso de insusceptibilidade de legalização dos estabelecimentos, seja logo desencadeado o procedimento tendente aos encerramentos e/ou à transferência dos utentes acolhidos para outros LI;
D) No caso de ser possível legalizar os LI, sejam imediatamente desencadeados os procedimentos de acompanhamento das direcções dos estabelecimentos na resolução dos problemas nucleares, designadamente os relativos à organização e regulação interna; às comparticipações dos utentes; à direcção técnica e ao quadro de pessoal; à adequação dos alojamentos; à segurança dos edifícios contra incêndios; à alimentação; à assistência médico-sanitária e à vigilância nocturna. |
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25. Finalmente, permito-me chamar a atenção de V.Exa. Excelência para a circunstância de, nos termos do disposto no artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a presente recomendação não dispensar a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues |