RECOMENDAÇÃO N.º 4/A/2005
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)



Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Proc.º: R-3261/99
Data: 2005/09/13
Área:
A1


 Assunto: Processo de reconversão de loteamento n.º5249/98 – Bairro Terras Queimadas – São Domingos de Rana


 I
Exposição de motivos
§1º


1. Apresentada reclamação a este órgão do Estado, em 15.08.1999, acerca da reconversão do denominado Bairro das Terras Queimadas, na freguesia de São Domingos de Rana, tem a Provedoria de Justiça vindo, desde então, a interpelar o município superiormente representado por V.Exa. e a procurar uma solução que satisfaça igualmente o interesse público e os interesses que considero legítimos do munícipe XXX, reclamante neste processo.


2. O reclamante diz-se inconformado com a posição da Câmara Municipal de Cascais, que se abstém de emitir o alvará de loteamento relativo à reconversão do referido bairro, declarada, para os devidos efeitos, como área urbana de génese ilegal.


3. Não emitido o alvará da operação, encontra-se impedida a celebração de negócios jurídicos de transmissão dos lotes a constituir, pois é condição notarial do acto de escritura pública a apresentação do alvará de loteamento e do alvará da licença de utilização da moradia unifamiliar que possui na qualidade de promitente comprador.


4. Por este motivo, o reclamante vê agravar-se o risco de incumprimento do contrato-promessa, depois de ter cumprido pontualmente os seus deveres de reconversão, contribuindo para a dotação de infra-estruturas através das suas contribuições, em conformidade com o preceituado na Lei n.º91/95, de 2 de Setembro. E encontra-se impedido, bem assim, de obter financiamento bancário, pois não pode dar como garantia o lote que formalmente continua na propriedade indivisa da AUGI.


5. Os pormenores da intervenção que a Provedoria de Justiça tem desenvolvido encontram-se abundantemente descritos na informação levada ao conhecimento de V. Ex.a pelo Senhor Provedor Adjunto de Justiça, em 11.07.2003 (1), motivo por que me limitarei a uma breve síntese.



§2º


6. Assim, depois de afixado o edital próprio, e sobre o qual não houve reclamações, a emissão do alvará de loteamento vem sendo protelada sucessivamente por condições estipuladas supervenientemente pelos serviços da Câmara Municipal, nomeadamente a apresentação de novos elementos (cfr.n.º3 a n.º22 da citada informação).


7. Solicitado V.Ex.a. para se pronunciar sobre as conclusões preliminares ali enunciadas – em que se questionava o fundamento para a recusa de emissão do alvará – viria V. Ex.a por ofício de 20.08.2003 (2), a reiterar a necessidade de entrega de elementos em falta, como condição sine qua non para ser emitido o alvará de loteamento, desta vez, a justificação dos custos das obras de urbanização, uma actualização do rol dos proprietários e nova certidão do registo predial.


8. Como nos retorquisse a Associação de Proprietários do Bairro ter já procedido ao suprimento de tais elementos, a Câmara Municipal viria, por ofício de 31.03.2004 (3), a opor que a emissão do alvará dependia, agora, da resolução de alguns diferendos de ordem financeira entre a Associação de Proprietários e a Câmara Municipal de Cascais, designadamente:








I – As comparticipações devidas ao município por alguns comproprietários (designadamente, não aderentes ao procedimento de reconversão) mas que estes, alegadamente, teriam pago à Associação de Proprietários, porquanto o cálculo desta soma seria indispensável para determinar a quantia dividenda imputável a cada ‘futuro’ lote;


II – O apuramento e a regularização do saldo referente a um subsídio concedido pelo município para execução das obras de urbanização, designadamente no que respeita à parte das obras executada pela Águas de Cascais, S.A. e ainda a documentação dos pagamentos realizados aos empreiteiros.



9. Receia a Câmara Municipal que, com a conclusão do procedimento, se extinga a Administração Conjunta, enquanto devedora e, por conseguinte, fiquem por liquidar alguns débitos ao erário municipal. Trata-se naturalmente de um motivo relevante, mas falta determinar, contudo, se o mesmo fim não será igualmente possível sem o sacrifício dos associados cumpridores de boa fé.


10. Procedemos a diligências junto da Associação de Proprietários, de modo a esclarecer a situação das quantias depositadas por terceiros e pelo saldo das quantias subvencionadas. A resposta revelar-se-ia pouco conclusiva.


11. De novo interpelámos V. Ex.a sobre o fundamento para continuar a fazer depender a conclusão do procedimento da resolução de diferendos financeiros entre o município e a Associação de Proprietários (ofício de 31.08.2004) (4).


12. Este ofício, Senhor Presidente, não obteve resposta, mais se tendo apurado informalmente junto dos serviços camarários que o assunto não conhecera evolução.


13. A conclusão do procedimento de reconversão parece indefinidamente protelada, sujeita à resolução de complexas questões de índole financeira entre o município e a Associação de Proprietários, mas sem que se encontre um canal fluido de concertação entre as partes, quando a perpétua indefinição não favorece nem o interesse público nem o interesse da Associação de Proprietários.


14. Neste impasse, nem a AUGI fica legalizada nem o município vê liquidada a dívida que considera haver a seu favor.


15. Como foi referido, a situação mostra-se extremamente prejudicial para aqueles que, tendo aderido e pago todas as suas comparticipações, com um esforço considerável na economia dos agregados familiares, vêem agora indefinidamente prolongada a clandestinidade urbanística das suas edificações, estando impedidos de celebrar negócios jurídicos sobre as mesmas ou, mesmo, de recorrer ao crédito bancário.


16. Nestes termos, haverá que proceder ao confronto dos factos com o direito aplicável e, sobretudo procurar uma resolução expedita e, como comecei por afirmar, conveniente a todas as partes, mas em especial aos associados de boa fé e ao município de Cascais.



§3º


17. Da instrução do processo, relevam os seguintes factos como determinantes:












a) A área em causa foi objecto de delimitação como área urbana de génese ilegal (AUGI), ao abrigo do disposto na Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro (5), por deliberação da Câmara Municipal de Cascais de 04.10.1995, alterada em 31.03.1999;


b) A operação, na modalidade de reconversão por iniciativa particular, sob a forma de licenciamento de loteamento, nos termos do disposto no art. 18º e segs. da Lei n.º 91/95, iniciou-se em 08.05.1998 (6);


c) O projecto de loteamento foi aprovado por deliberação camarária de 31.08.1999, atestando o seguinte:



i) Ter o processo obtido parecer favorável dos vários serviços;
ii) Ter sido realizada a vistoria a que se refere o art. 22º da citada Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro;
iii) Ter-se observado não existirem situações desconformes com as patentadas no processo de reconversão;
iv) Terem os munícipes, em sistema de auto-construção, concluído as obras de urbanização do bairro;
v) Estarem as mesmas em condições de ser aceites, dispensando-se assim a caução para boa execução;
vi) Terem todos os proprietários pago as comparticipações.



d) A par das obras de urbanização da área delimitada, a executar pelos requerentes (ponto 4. da alínea anterior), a Câmara Municipal de Cascais incumbiu a Comissão de Administração de executar obras de reforço das infra-estruturas urbanísticas exteriores, atribuindo-lhe diversos subsídios para o efeito;


e) Estes subsídios foram pagos sob a forma de ‘comparticipações’, sem a celebração, porém, de um contrato de urbanização;


f) A Câmara Municipal atribuiu ainda à Comissão de Administração uma outra comparticipação financeira para se subrogar aos não-aderentes;


g) Em 15.05.2001, foi determinada a publicação da aprovação, nos termos do disposto no art. 28º da Lei n.º 91/95;


h) E, depois da entrega de elementos complementares solicitados pela Câmara Municipal, foi afixado o edital, cujo teor não foi objecto de reclamações;


i) A Câmara Municipal veio a verificar que parte das obras de urbanização não tinham sido executadas pela Comissão de Administração, mas antes pela Águas de Cascais, S.A., permanecendo por esclarecer o saldo daí resultante;


j) Foram apontadas dúvidas nas contas apresentadas pela Associação de Proprietários a respeito das comparticipações devidas pelos não aderentes, uma vez que alguns afirmam peremptoriamente que liquidaram as comparticipações junto da Associação de Proprietários e não da Câmara Municipal.


k) Todavia, as contas apresentadas pela Associação de Proprietários, a respeito da comparticipação financeira referida supra, não traduzem, ao que parece, esses pagamentos.




§4º


18. O procedimento de reconversão obedece ao disposto na Lei n.º 91/95 e, por se tratar de reconversão por iniciativa particular, através de operação da loteamento, pelo regime jurídico do licenciamento municipal das operações de loteamento e de obras de urbanização, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro (7).


19. Publicitada, por edital, a deliberação de aprovação da operação de loteamento, nos termos do art. 28º da Lei n.º 91/95, e não tendo sido apresentadas reclamações, manda o art. 29º que seja emitido o alvará de loteamento, de cujo teor devem constar os seguintes elementos:








I – A lista dos factos sujeitos a registo predial;
II – O valor da quota de comparticipação de cada lote nos custos de obras de urbanização (8);
III – A relação dos co-proprietários e a listagem de identificação dos lotes.



20. Encontrando-se preenchidos os requisitos das alíneas a) e c), falta apenas calcular o valor da comparticipação devida por cada lote nos custos das obras de urbanização.


21. A questão que se suscita é a de saber em que medida se pode estribar a recusa da emissão do alvará nas razões actualmente apontadas pela Câmara Municipal, designadamente:








I – O esclarecimento de dúvidas a respeito do pagamento das comparticipações devidas por alguns dos não aderentes, os quais porém alegam ter pago as suas contribuições à Associação de Proprietários;


II – A justificação da execução do subsídio atribuído para a execução de obras de urbanização exteriores á área delimitada, designadamente, no que respeita à parte das obras executada pela Águas de Cascais, S.A. e à documentação dos pagamentos aos empreiteiros.




§5º
(A)


22. Vejamos a exigência do prévio esclarecimento dos pagamentos efectuados pelos comproprietários, designadamente, pelos não aderentes.


23. O município adiantou à Associação de Proprietários, para suprir a falta das comparticipações dos não aderentes as quantias respectivas.


24. Segundo decorre das informações prestadas pela Câmara Municipal, alguns dos comproprietários, pagaram as suas comparticipações, não à Câmara Municipal, mas à Associação de Proprietários.


25. Todavia, as contas prestadas por esta Associação não revelam tais pagamentos, o que gera dúvidas, seja quanto à efectividade dos pagamentos, seja quanto à prestação de contas da Associação e à consequente devolução à autarquia das quantias correspondentes a tais pagamentos.


26. Esta questão encerra, portanto, duas componentes:








I – A da prova dos pagamentos efectuados pelos comproprietários, necessária para calcular a sua dívida relativa à comparticipação nas despesas de reconversão;


II – A da regularidade das contas prestadas pela Associação de Proprietários e da dívida que daí possa, eventualmente, apurar-se.



27. A prova dos pagamentos pelos comproprietários não aderentes é necessária para calcular a sua dívida relativa à sua comparticipação e, portanto, para desimpedir, como vimos, a emissão do alvará de loteamento, nos termos do disposto na alínea b) do art. 29º da Lei n.º 91/95.


28. Todavia, o facto de esta questão não ter sido inteiramente esclarecida pela Associação de Proprietários não impede a Câmara Municipal de proceder oficiosamente ao seu apuramento, promovendo as diligências instrutórias necessárias (artigos 56º e 87º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo), até porque é do interesse municipal reaver quanto antes a despesa pública e, de uma vez por todas, acelerar e findar a pesada herança dos bairros clandestinos que prejudica o território do município há cerca de 30 anos.


29. Mas, a intervenção oficiosa do município justifica-se, não só pelo interesse público na conclusão do procedimento de reconversão, como para corrigir as situações de lesão grave dos direitos dos comproprietários cumpridores.


30. Por conseguinte, na falta de elementos conclusivos, a Câmara Municipal pode solicitá-los aos próprios interessados (aos comproprietários de cujas dívidas se trate), ao abrigo do disposto no art. 89º, n.º 1, do CPA.


31. E, caso estes não façam prova do pagamento das suas contribuições (ainda que à Associação de Proprietários), poderá a Câmara Municipal deliberar de acordo com os elementos disponíveis (art. 91º, n.º 2, do CPA) e valer-se posteriormente do procedimento executivo para o pagamento de quantia certa previsto no art. 155º do CPA.


32. Em todo o caso, tal decisão deve cingir-se, estritamente, à prova documental que venha a ser obtida, designadamente, junto dos comproprietários em questão, cumprindo-lhes o ónus da prova, mediante exibição da quitação (arts. 786º e seg. do Código Civil).


33. Apurados os pagamentos e calculados os valores, encontrar-se-á preenchido o requisito estabelecido na alínea b) do art. 29º da Lei n.º 91/95.


34. Assim, não se descortina por que haja de manter-se a recusa de emissão do alvará de loteamento, apenas, por irregularidade das contas prestadas pela Associação de Proprietários, ou por dívidas desta ao município de Cascais.


35. Para resolver tal questão deverá a Câmara Municipal recorrer aos meios próprios ao seu dispor, a fim de obter a prestação de contas por parte da Associação de Proprietários e, eventualmente, dos seus administradores.


(B)


36. Observo, aliás, que a não emissão do alvará de loteamento acaba por revelar-se contraditória com as finalidades da reconversão e da cobrança das dívidas dos comproprietários (sobretudo, dos não aderentes), antes servindo o interesse – ilegítimo – dos que pretendam protelar tais pagamentos e prejudicar a constituição do privilégio imobiliário estabelecido no art. 3º, n.º 5, da Lei n.º 91/95, com a alteração introduzida pela Lei n.º 64/2003.


37. E não posso deixar de fazer notar que, se algum risco houver quanto à arrecadação de quantias depositadas por não aderentes junto da Associação e por esta não reembolsadas ao município, acentua-se a menor diligência usada por ambas as partes quando, no momento próprio, deixaram de celebrar um contrato por escrito.


38. Insisto, Senhor Presidente, que, nestas circunstâncias, é particularmente injusta a retenção do alvará de loteamento, ao penalizar gravemente os comproprietários cumpridores, e não os faltosos, cujo interesse objectivo radica, precisamente, na suspensão ad aeternum do procedimento.


(C)


39. Cuidar-se-á, em seguida da exigência de regularização dos subsídios pagos à Associação de Proprietários, para execução de reforço de infra-estruturas externas à área delimitada em 1995.


40. A Câmara Municipal questiona a execução do subsídio atribuído à Associação de Proprietários para empreender benfeitorias em infra-estruturas exteriores à AUGI, considerando não terem sido devidamente documentadas todas as despesas nem restituído o excedente relativo a trabalhos que terão vindo a ser executados pela empresa pública municipal Águas de Cascais, S.A.


41. Importa, antes de mais, saber quais as obras que constituem o objecto dos subsídios e cuja regularização é exigida.


42. O regime jurídico do licenciamento de operações de loteamento e de obras de urbanização prevê, no âmbito do licenciamento de loteamentos, dois tipos de obras ao nível das infra-estruturas:








I – As obras de urbanização, em sentido próprio, previstas nos artigos 3º, alínea b), e 13º, n.º 3, segunda parte, do Decreto-Lei n.º 448/91 – todas as obras de criação e remodelação de infra-estruturas que integram a operação de loteamento;


II – As obras de realização, reforço e manutenção de infra-estruturas, previstas no art. 13º, n.º 2, alínea e), e n.º 4, do Decreto-Lei n.º 448/91, e que são obras em intra-estruturas exteriores (i.e., que não integram o loteamento) cuja realização pode ser estipulada como condição para o licenciamento da operação de loteamento, em virtude da sobrecarga induzida pela operação de loteamento nessas infra-estruturas (por exemplo, o reforço das redes gerais de distribuição de água, gás e electricidade, equipamentos de uso colectivo, tais como escolas ou centros de saúde, melhoramentos na rede viária, etc.).



43. Assim, enquanto a execução das obras de urbanização indispensáveis constitui, à partida, um dever do requerente do licenciamento de operações de loteamento (art. 13º, n.º 3, segunda parte), já as obras de reforço das infra-estruturas exteriores ao loteamento são, por regra, da responsabilidade do município, e suportadas pelo pagamento da taxa pela realização, manutenção e reforço de infra-estruturas urbanísticas ( a denominada TRIU), prevista no art.19º, alínea a), da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto (Lei das Finanças Locais).


44. Só quando a execução das obras de reforço das infra-estruturas for expressamente determinada como condição do licenciamento (art. 13º, n.º 3, primeira parte, do Decreto-Lei n.º 448/91) é que tais obras são directamente suportadas pelos requerentes, dando lugar, nesse caso, à redução proporcional da TRIU.


45. O dever de reconversão dos proprietários abrangidos por áreas urbanas de génese ilegal compreende o dever de comparticipar nas despesas de reconversão (art. 3º, n.º 3, da Lei n.º 91/95).


46. Tratando-se de um procedimento de reconversão na modalidade de iniciativa particular, por licenciamento de uma operação de loteamento, as despesas de reconversão são, necessariamente, as impostas nesse acto de licenciamento.


47. Observo, no entanto, que, no procedimento em análise, a Câmara Municipal de Cascais não estipulou, como condição do licenciamento, as denominadas obras de criação, reforço e manutenção das infra-estruturas urbanísticas, conforme lhe permitiam o disposto no art. 13º, n.º 2, alínea e), e n.º 3, primeira parte, do Decreto-Lei n.º 448/91.


48. E, na deliberação que deferiu o licenciamento, considera-se terem as obras de urbanização sido concluídas, sendo inclusivamente dispensada a prestação de caução.


49. Repare-se que não está em dúvida a necessidade de obras para reforço das infra-estruturas. Decorrendo a necessidade de tais obras da sobrecarga induzida pela urbanização em causa, seria plenamente devida a sua integração nas condições do licenciamento e, consequentemente, a sua imputação aos comproprietários.


50. Da análise das informações prestadas pela Câmara Municipal, não resulta que o tenham sido, pelo que a remuneração dessas obras apenas pode ter lugar através do pagamento da taxa correspondente (a TRIU, acima referida).


51. Assim, a realização destas obras de infra-estruturas, por parte da Associação de Proprietários, revela, não uma actuação em nome próprio, como decorreria do cumprimento das condições do licenciamento, mas uma actuação por conta de outrém (9), embora não enquadrada na forma contratual devida, e através da qual o município de Cascais terá incumbido a Associação de Proprietários de promover a execução, adjudicando as empreitadas. Para custear essas obras, a Câmara Municipal atribuiu à Associação de Proprietários os subsídios cuja execução deseja agora ver regularizada.


52. As dívidas relativas à execução desses subsídios são, por isso, apenas imputáveis à Associação de Proprietários, no âmbito da relação contratual por esta assumida com o município, mas não já no âmbito do procedimento de licenciamento da operação de reconversão, regulado pela Lei n.º 91/95, e que tem como partes interessadas outros administrados.


53. Assim, só através dos meios judiciais próprios – e nos termos jurídicos aplicáveis à relação jurídica estabelecida com a Associação de Proprietários – será legítimo, ao Município, impor a regularização do saldo da execução das referidas obras de infra-estruturas.


54. É certo que isto pode incrementar o risco de perda da garantia patrimonial das dívidas decorrentes da atribuição dos mencionados subsídios à Associação de Proprietários. Sobretudo, considerando-as excluídas do dever de reconversão dos comproprietários, por não terem ficado estipuladas no licenciamento do loteamento.


55. Em todo o caso – e uma vez mais – este risco deve ser imputado, em primeiro lugar, à falta das providências adequadas que o dever de boa administração sugeriria a montante, designadamente, a estipulação das obras em questão como condição do licenciamento, ao abrigo do disposto no art. 13º, n.º 2, alínea e), e n.º 3, do Decreto-Lei n.º 448/91, integrando a dívida de todos os comproprietários e beneficiando, nessa medida, das garantias conferidas pelo artigo 3º, n.º 5 e n.º 6, da Lei n.º 91/95, ou, no mínimo, a celebração de contrato por escrito.


56. A Câmara Municipal parece ver na retenção do alvará de loteamento a última forma de proteger os créditos que reclama da Associação de Proprietários, desconhecendo-se na lei, todavia, um fundamento bastante que lhe confira um tal direito de retenção.


57. Para além de carecer de fundamento legal e de se revelar, mesmo, estranha à função administrativa – na medida em que constitui uma forma de auto-tutela executiva não contemplada na lei (v. artigos 149º e segs. do CPA) – a actuação da Câmara Municipal de Cascais deixa dúvidas quanto à sua adequação ao fim em vista, pois não proporciona nenhuma vantagem, apenas fazendo protelar indefinidamente a emissão do alvará.



II
Conclusões


Em resumo, e depois de aturadamente apreciadas as questões controvertidas ao cabo de seis anos de intervenção deste órgão do Estado junto dos sucessivos executivos municipais considero que:








I –  Se a emissão do alvará de loteamento carece da liquidação da dívida imputável a cada lote, a respeito do custos das obras de urbanização, o certo é que a falta de consenso entre o município de Cascais e a Associação de Proprietários do Bairro das Terras Queimadas, a respeito do pagamento das comparticipações devidas pelos comproprietários não aderentes, não impede a autarquia de proceder oficiosamente à sua liquidação, designadamente, por solicitação directa aos interessados da prova dos pagamentos cumpridos e, na sua falta, averbando as quantias em dívida, relativamente a cada lote, no alvará de loteamento;


II – A opção por não emitir o alvará de loteamento, em alternativa à quantificação oficiosa das dívidas dos proprietários não aderentes e ao exercício dos meios de ressarcimento conferidos pelo art. 3º da Lei n.º 91/95, revela-se contrária ao princípio constitucional da justiça, dada a forma como – sem utilidade efectiva para o ressarcimento das dívidas – se penalizam gravemente os cumpridores do dever de reconversão, beneficiando aqueles que não cumprem e cujo interesse objectivo radica, precisamente, na paragem do procedimento;


III – Importa, contudo, que tal decisão se baseie na prova documental apresentada, reconhecendo-se os pagamentos de comparticipações comprovadamente entregues à Associação de Proprietários;


IV – A execução das infra-estruturas urbanísticas externas à AUGI constitui uma relação jurídica informal, de natureza comissiva, entre a Câmara Municipal e a Associação de Proprietários;


V – Tal relação jurídica é distinta do licenciamento da operação de reconversão e deve ser apurada e dirimida, nesses termos, e por exorbitar da gestão pública, por acordo entre as partes ou, na sua falta, junto dos tribunais comuns;


VI – Não devem, por outro lado, ser imputadas aos proprietários dos lotes, directamente, a título de custos das obras de urbanização, as verbas relativas à execução de trabalhos em infra-estruturas exteriores, quando tais trabalhos não foram prescritos na deliberação que licenciou o loteamento;


VII – Mostra-se ilegal, por contrária à lei e, eventualmente, por usurpação de poderes, a retenção do alvará de loteamento enquanto meio compulsório de ressarcimento de dívidas alheias às condições estabelecidas da licença de loteamento, sejam elas relativas ao adiantamento em substituição dos co-proprietários não-aderentes, sejam as demais, reportadas a subsídios concedidos de modo algo imprudente para execução e reforço de infra-estruturas externas;


VIII – Tal actuação revela-se, por fim, inadequada e injusta, na medida em que não constitui meio idóneo para a obtenção do fim de ressarcimento visado – prejudicando mesmo a constituição de garantias patrimoniais – e na medida em que prejudica gravemente os co-proprietários cumpridores, em benefício dos inadimplentes.


IX – O sentido da minha intervenção resulta, Senhor Presidente, de um imperativo de justiça que, como creio ter demonstrado, obtém o claro apoio da ordem jurídica e que aforisticamente podemos reconhecer no velho brocardo de Horácio: nemo alieno prægravari debet.



Assim, nos termos do disposto no artigo 20º, n.º1, alínea a), da Lei n.º9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente expostas, recomendo:








1 – A pronta adopção das providências necessárias para a emissão do alvará de loteamento relativo ao procedimento de reconversão do Bairro das Terras Queimadas, na freguesia de São Domingos de Rana, designadamente por apuramento das comparticipações efectivamente pagas pelos comproprietários, solicitando-lhes prova do cumprimento, de modo a calcular as dívidas imputáveis a cada lote, para os efeitos estabelecidos no art. 29º alínea b), da Lei n.º 91/95.


2 – Se, porventura, tiverem ficado desactualizados os dados ou documentos necessários para a emissão do alvará de loteamento – designadamente, os referidos na alínea a) do art. 29º da Lei n.º 91/95, deverá a Câmara Municipal de Cascais providenciar, com urgência, pela sua actualização, evitando novos encargos sobre os administrados.



Recordo, por fim, a V. Ex.a. o ónus contido no art. 38º, nº2, do citado Estatuto do Provedor de Justiça, para o qual me permito pedir a melhor atenção.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 





Notas de rodapé:


(1) Of.º 10.960.
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(2) Of.º 39.029.
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(3) Of.º 16.646.
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(4) Of.º 14.819.
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(5) A lei n.º 91/95 viria a ser alterada pela Lei n.º 165/99, de 14 de Setembro, e, mais recentemente, pela Lei n.º 64/2003, de 23 de Agosto. Será adiante designada como Lei n.º 91/95, identificando-se as suas versões posteriores apenas quando sejam relevantes.
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(6) Proc.º 5219/98.
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(7) Diplomas aplicáveis à data do início do procedimento. O Decreto-Lei n.º 448/91 foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28 de Dezembro e pela Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto, vindo a ser revogado pelo Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro e alterado pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho.
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(8) A redacção original do art. 29º, alínea b), da Lei n.º 91/95, vigente à data da instauração do procedimento de reconversão, parecia admitir a inscrição de um valor abstracto, referente à quota. Todavia, a norma viria a ser alterada pela Lei n.º 64/2003, no sentido de se exigir o “valor absoluto e a quota de comparticipação de cada lote”, clarificando a exigência, não apenas da indicação de uma quota parte, mas do valor absoluto correspondente.
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(9) Não cumpre aqui proceder à qualificação jurídica desta relação contratual de facto, muito embora se observe alguma proximidade com o mandato sem representação, previsto nos art.s 1157º e 1180º, do Código Civil.
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